sábado, 30 de novembro de 2013

Winston Churchill

"(...) não perder tempo na vida, não nos contentarmos com as coisas como elas são,não nos sentirmos resignados perante um fracasso, pois o mundo só existe e gira para ser conquistado." (1)

Winston Churchill é uma figura essencial para a História do século XX. Nascido no seio da aristocracia inglesa, em 30 de Novembro de 1874, marcou o século XX com um percurso político de dimensão que importa não esquecer, sobretudo pela pouca valorização que a sociedade dá à memória.
Nascido na época vitoriana, conheceu sucessos e fracassos sucessivos, mas sempre acreditou na possibilidade de transformar os dias com base nas convições mais genuínas, suportada por uma ética de valores humanos. Poucos perceberam no momento exato a continuidade suicidária que evoluiu do nazismo para o bolchevismo e para o estalinismo. 
Do Almintarado na 1ª Guerra Mundial, a deputado na Câmara dos Comuns, a primeiro-ministro, a Prémio Nobel da Literatura em 1953, a pintor, foi um político de virtudes e defeitos. Um homem que no espaço público exibia esses defeitos como parte de uma humanidade, muito longe da "brancura programada" de gerações seguintes que se apresentam sem história e sem valor. 

O papel de Churchill na 2ª Grande Guerra é essencial e vemos na sua ação muito da construção temerária que o período vitoriano ensaiou no seu diálogo com o mundo. Associado  a uma Nação, à capacidade de resistir, por um valor supremo, oscilou entre o optimismo conquistador e algum desânimo a que associasmos a fragilidade humana. No fim o preço da vitória foi elevado com uma Inglaterra devastada, nesse marco essencial de vitória sobre o mal absoluto tão difícil de entender que foi o nazismo. 

Apesar da sua ligação à vitória dos aliados, Churchill nos anos que se seguiram era já uma figura fora do tempo. É uma figura de uma imensa riqueza que importa conhecer. O Metropolitan Art Museum em Nova Iorque disponibiliza um conjunto significativo de quadros de Churchill, sendo possível fazer puzzles sobre as suas obras. Aqui fica, para quem quiser explorar.

(1) Winston Churchill, My Early Life, p.68

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

William Blake

Ondulam sombras de desconsolo? (...)

Diz-me onde moram os pensamentos esquecidos antes de os
invocares,
Diz-me onde moram as alegrias de outrora? E onde os amores 
antigos?
E quando se hão-de eles renovar e a noite do esquecimento
passar?
Para que eu possa atravessar tempos e espaços remotos e trazer
Consolo à pena presente e à noite dolorosa?
Onde vais tu, Ó pensamento? A que terras remotas diriges teu
voo?

William Blake, Visions of the Daughters of Albion, Gravura 7
...

Memória de Erico Veríssimo

«(...) Quero falar de ti. Lembras-te daquela tarde em que nos encontramos nas escadas da Faculdade? Mal nos conhecemos, tu me cumprimentaste atrapalhado, eu te sorri um pouco desajeitada e cada qual continuou o seu caminho. Tu naturalmente me esqueceste no instante seguinte, mas eu continuei pensando em ti, e não sei porquê, fiquei com a certeza de que havias de ter uma grande, uma imensa importância na minha vida. São pressentimentos misteriosos que ninguém consegue explicar.

Hoje tens tudo quanto sonhavas: posição social, dinheiro, conforto, mas no fundo te sentes ainda bem como aquele Eugénio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo subindo as escadas do edifício da Faculdade, envergonhado da sua roupa surrada. Continua em ti a sensação de inferioridade (perdoa que te fale assim…), o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no passado com uma pontinha de saudade, com um pouquinho de remorso. Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há-de nascer o novo Eugénio.

Uma noite me disseste que Deus não existe,que em mais de vinte anos de vida não o pudeste encontrar. Crê que nisso se manifesta a magia de Deus. Um Ser que existe mas é invisível para uns, e mal perceptível para outros e de uma nitidez maravilhosa para os que nasceram simples ou para os que adquiriram simplicidade por meio do sofrimento ou da profunda compreensão da vida. (...)
Quero que abras os olhos, Eugénio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues na minha Bíblia, que está na estante de livros, perto do rádio, e leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e meditar nesse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo, que não trabalham nem fiam e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu com um deles. Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar de papo para o ar, esperando que tudo nos caia do Céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do Céu. (...)
Há na Terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão. Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de acção e não um puro contemplativo. Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, do espírito de cooperação. E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do Mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há-de levar. Precisamos, portanto, de criaturas de boa vontade».
in Erico VeríssimoOlhai os Lírios do Campo
(A memória de um grande escritor, pleno de humanidade, num dos grandes livros do património em língua portuguesa, aqui pela mão e voz de um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX).

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

José Maria...

«Uma nação vive, próspera, é respeitada, não pelo seu corpo diplomático, não pelo seu aparato de secretarias, não pelas recepções oficiais,(...); isto nada vale, nada constrói, nada sustenta;(...). Uma nação vale pelos seus sábios, pelas suas escolas, pelos seus génios, pela sua literatura, pelos seus exploradores científicos, pelos seus artistas». (1)

   José Maria de Eça de Queiroz, o nosso Eça, nasceu a vinte e cinco de Novembro de 1845 na Póvoa do Varzim, justamente há cento e sessenta e oito anos. É um dos autores mais importantes para o estudo da sociedade contemporânea portuguesa. A sua obra continua imensamente actual.
  Eça de Queiroz estudou entre o colégio da Lapa, na cidade do Porto e a Universidade de Coimbra, onde entra no primeiro ano, em 1861. Em 1866 forma-se em Direito e passa a viver em Lisboa, onde exerce a profissão de advogado. Nesse mesmo ano inicia a publicação de folhetins que são publicados na Gazeta de Portugal e mais tarde reunidos nas Crónicas Bárbaras.
  Entre 1869 e 1870 publica diferentes obras, como os versos de Fradique Mendes, O Mistério da Serra de Sintra em parceria com Ramalho Ortigão e inicia a publicação das Farpas. Em 1871 é nomeado 1º Cônsul nas Antilhas espanholas, transitando depois para Cuba onde permanece dois  anos. Em 1874, passa a desempenhar a sua actividade em Inglaterra e é em Newcastle que termina o Crime do Padre Amaro. Entre 1883 e 1887 refaz algumas das suas obras e publica o Conde D’Abranhos e Alves & Companhia. Em 1888 publica a sua grande obra, Os Maias e é nomeado Cônsul em Paris. Continuará a escrever diferentes textos e obras, como A Ilustre Casa de Ramires ou a publicação na Revista Moderna, em Paris.
  Eça de Queirós tendo vivido na parte final do século XIX soube pela sua capacidade de análise do quotidiano e da organização social, traçar com humor algumas das características deste País.
  O diagnóstico de uma classe política naufragada onde os interesses particulares parecem não ser capazes de organizar institucionalmente o País, onde as ideias tantas vezes decididas em circunstâncias de acaso parecem ameaçar um País de oito séculos de história à sua sobrevivência.
  Vindo do século XIX é um modernista na escrita e no pensamento que nos deixou. A sua obra tem a marca dos grandes escritores que pretendeu agitar nos cidadãos de um País a ambição não só de existir, mas de acompanhar a civilização nos seus aspectos mais modernos e transformadores da vida. 
  A utilização do humor, como forma superior de caricatura do mais banal e trivial no quotidiano deu-lhe uma dimensão quase intemporal pela afirmação da cultura e da arte como formas de exprimir uma sociedade. Sociedade cuja espuma dos dias é diferente pelos mais evidentes motivos, mas cujas ondas ainda se organizam em princípios que Eça explicitou há mais de um século.

(1) Eça de QueirozDistrito de Évora
Imagem, in contosdocovil.wordpress.com

domingo, 24 de novembro de 2013

Memórias de um mestre

"Aqui, e em todo o mundo (civilizado, é claro) a humanidade foi submetida a uma operação ditatorial que todos acolhem voluntariamente. Que estarão a fazer as pessoas nas suas casas, segregadas, com as janelas fechadas, sem darem sinais de vida?"

Quem o conheceu sente-lhe a saudade da sua presença imensa, da sua voz ligeiramente grave adoçada de gestos de simpatia. Sente a falta de uma companhia que ensinava tanto, numa humildade inesquecível. Com ele aprendemos tanto e deixou-nos lições de vida sobre o que significa a cidadania, o que podemos individualmente fazer com as ideias, com o que sentimos em eternas viagens entre a Ciência e a Poesia, a nossa humanidade. E ensinou-mos com o seu exemplo, as suas palavras que somos o que fazemos, o que pensamos, sem grande esperança por uma condição humana que tantas vezes se deixa governar por um conjunto de ilusões. 

Memórias é um pouco tudo isto. Raras vezes a leitura de um livro nos concedeu a respiração da liberdade de quem se guiou pela dignidade e pela beleza, servidas pela ironia e simplicidade. Na leitura, fração limitada das palavras aspiramos docemente a grandeza humilde de um grande ser. O renascimento nas ideias, a experimentação material do real em lições de simplicidade e saber. 

Se as palavras podem "transcrever" o real, poucas vezes elas nos deram o saber natural de um mestre. Dos que ensinam pelo simples prazer de conhecer e questionar o que não sabemos. O conhecimento e o saber como meditação e testemunho da nossa "humanidade" é a memória que Rómulo nos deixa, enquadrado numa ética natural de uma raridade que nos contempla e nos engrandece.

Ser um pensador, um poeta, um homem de conhecimento e de cultura, sem ser um intelectual, onde adivinhamos uma curiosidade pela descoberta, foi o seu grande testemunho. Descobrimos nas suas Memórias um retrato de um País cinzento e uma contemplação pelas misérias humanas, na mesma grandeza com que descobria os átomos. Em Memórias Rómulo de Carvalho estabelece com o leitor uma conversação, num "movimento perpétuo" pelo prazer imenso de saber e conhecer.

sábado, 23 de novembro de 2013

No nascimento de Herberto Helder

Um poema cresce inseguramente (...)

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento (...)
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sortida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo (...)»

(Na celebração dos oitenta e três anos de um grande poeta, o maior deste século ainda tão novo e já tão velho, ou a miragem de perder um pouco a beleza no esforço humano em construir "as torrentes infindáveis de rosas". Natural da Madeira, de lá nos tem enviado as palavras de uma condição humana sempre interrogada e esquecida dos holofotes onde os gestos vãos enchem a virtualidade de um quotidiano sem brilho. Aquele que faz deste País, um território de sombras, onde a sabedoria dos poetas é irrelevante.


Herberto Helder, "Sobre um Poema", in Ofício Cantante

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Os silêncios...



"Mantenho, no entanto, o direito de dizer sempre aquilo que sei sobre mim e sobre os outros, na condição única de que tal não sirva para aumentar a insuportável infelicidade do mundo, mas sim para designar, nos muros obscuros que vamos tacteando, os lugares ainda invisíveis ou as portas que podem ser abertas". (Albert Camus, Cahiers)

Entro na sala de professores e adivinha-se uma separação entre o cansaço dos menos novos e uma galhofa dos que perto da meia idade ainda parecem acreditar na ilusão com que o real se faz nas escolas. E vê-se os mais jovens incomodados com esta estupidez censória de levar o jardim de infância ao que os professores devem saber. A infantilidade continua o seu caminhar em exércitos de servidões.

E vê-se um riso, uma graça jocosa dos que achando tudo indefenível, incapaz de ser sério se perdem por esse ridículo na forma e insubstantivo no conteúdo. E os que nada tendo a ver com aquilo remetem o problema para as calendas gregas, para os tempos do convencional e do institucional, nas reuniões de sábios que sindicatos e governo sempre nos brindam.

Olho-os e apresso-me a ir para a aula, para um sistema educativo que se organiza como um imenso ATL de criatividade, onde ler e contar é suficiente, onde a arte e a capacidade tecnológica são já formas gastas e pouco possíveis de respirar. Saio e deixo-lhes a pergunta, se tanta jovialidade se manteria se a prova, a eficiente prova de capacidades fosse para todos? Ninguém liga. O problema diz respeito a uns poucos, aos que não tiveram a sorte, apenas a sorte de entrar num qualquer esquecido lugar com paredes e onde habitam alunos e que ainda se chama escola.

Cá fora, no café da esquina as mesmas senhoras reformadas tentam nas suas perguntas compreender como trabalharam toda a vida e agora já não podem ter o que lhes faz falta para o supermercado, para a farmácia, para os netos...Os polícias manifestaram-se diz uma - agora vão ser poupados! Como se estivéssemos a ser julgados ou condenados e a sorte de uns se medisse por qualquer coisa irrelevante. 

E dou-lhes razão. Os imperadores, no palácio, mesmo os medíocres, costumam vigiar quem guarda a porta. É uma virtude de saber. A que nos ilumina. Essa e o esquecimento, o encolher de ombros que nunca nos incomoda, que nunca nos faz gritar, nem unir pela decência! Lembro-me das palavras de Sophia, o valor da linguagem e o significado das palavras. Já vivemos nessa ditadura mental do conformismo! Que escola se pode construir com tantos silêncios? E que sociedade pode existir onde a razão e o valor humano já desapareceram? Chove lá fora! O país triste emerge da sua longa duração!

                               © Imagem, Dirk Eidner (via http://1x.com/)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Recomeçar...todos os dias

Vejo-a chegar à Biblioteca. É jovem. Traz a filha pela mão. Pede para ficar até as aulas começarem. Apresento-me. Ela fala de si, do desemprego, do trabalho que fazia, das ideias que concretizou, das empresas que pagavam mal, tarde e que lhe negaram uma certificação em tempo útil do que de si deu. Tem um ar meio perdido, à procura de um equilíbrio. Fala-me das ideias, dos projectos, das crianças pequenas e encontro-lhe acima do abandono, ainda a vitalidade de quem acredita,mas já não aqui, neste bocado de qualquer coisa.

Revela uma clareza e precaridade de tantos esforços, tanta formação para quase nada, a burocracia ineficaz, imbecil e incapaz de revelar o que cada um deu. Revejo nela tanta dádiva que tantos têm dado à educação, pela cidadania, à espera da esmola que um conjunto de indiferentes, os sábios do costume, saibam reconhecer em gestos perdidos de decência.

Percebo nela, na sua geração como somos colectivamente qualquer coisa indigna, sem valor, ao serviço da mentira com que os media e os seus actores vestem o mito sem identidade, o país dos fantasmas com que os bem falantes inundam o espaço público. E nas praias tristes do conformismo mora persistentemente qualquer coisa muito distante do que possa ser chamado um País.

domingo, 17 de novembro de 2013

Livros e Leituras - Os Enamoramentos

Há livros que aspiram a ser uma revelação sobre a própria vida, condensá-la nos seus silêncios, nos espaços em que sonhamos o amor com alguém, em que perdemos quem amávamos, estando sobre o foco das sombras, da memória, do que queríamos ainda sentir e que já não é possível. 

A palavra perdeu como outras o simbolismo, mas usemo-la como propriedade, com honestidade, pois Os Enamoramentos é uma obra-prima. É um daqueles livros que nos chegam com raridade durante uma vida meia dúzia de vezes. A vida, a sua soberania do momento em que o real se nos oferecia no sorriso de quem amamos. Somos essa fragilidade que o infortúnio, o acaso desperta sobre um nome e perdemo-nos no pó dos dias, até no sorriso enamorado de quem gostamos. Um livro imenso sobre a vida, sobre nós.

"Quando uma pessoa deseja uma coisa durante muito tempo, é muito difícil deixar de o desejar, isto é, de admitir ou dar-se conta de que já não a deseja ou de que prefere outra coisa. A espera alimenta e potencia esse desejo, a espera é cumulativa relativamente ao que se espera, solidifica-o e torna-o pétreo, e então resistimos a reconhecer que malbaratámos anos enquanto aguardávamos um sinal que, quando finalmente aparece, já não nos tenta, ou nos dá uma infinita preguiça de correr à sua chamada tardia de que agora desconfiamos, talvez porque não nos convém movermo-nos. Acostumamo-nos a viver dependentes da oportunidade que não chega, no fundo tranquilos, a salvo e passivos, no fundo incrédulos de que alguma vez venha a surgir. (...)

Sim, tudo se atenua, mas também é verdade que nada desaparece nunca nem se vai de todo, permanecem fracos ecos e fugidias reminiscências que surgem a qualquer instante como fragmentos de lápides na sala de um museu que ninguém visita, cadavéricos como ruínas de frontões com inscrições partidas, matéria passada, matéria muda, quase indecifráveis, quase sem sentido, absurdos restos que se conservam sem qualquer propósito, porque não poderão recompor-se nunca e já são menos iluminação que treva, e muito menos memória que esquecimento. E no entanto lá estão, sem que ninguém os destrua e os junte com os seus fragmentos esparsos ou perdidos há séculos: lá estão guardados como pequenos tesouros e superstição, como valiosos testemunhos de que alguém existiu um dia e morreu e teve nome, embora não o vejamos completo e a sua reconstrução seja impossível. e ninguém se importe para nada com esse alguém que é ninguém". 

Javier Marías, Os Enamoramentos, (págs. 170,171, 337 e 338)

sábado, 16 de novembro de 2013

Memória de Saramago

“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. Não é esse o caso daquela escolinha particular, num quarto ou quinto andar da Rua Morais Soares, onde, antes de termos ido viver para a Rua dos Cavaleiros, eu comecei a aprender as primeiras letras. Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda. É uma recordação própria, pessoal, nítida como um quadro, a que não falta a sacola em que acomodava as minhas coisas, de serapilheira castanha, com um barbante para levar a tiracolo. Escrevia-se na ardósia com um lápis de lousa que se vendia em duas qualidades nas papelarias, uma, a mais barata, dura como a pedra em que se escrevia, ao passo que a outra, mais cara, era branda, macia, e chamávamos-lhe «de leite» por causa da sua cor, um cinzento-claro, tirando a leitoso, precisamente. Só depois de ter entrado no ensino oficial, e não foi nos primeiros meses, é que os meus dedos puderam, finalmente, tocar essa pequena maravilha das técnicas de escrita mais actualizadas.”

(Recordar as palavras de Saramago, na sua memória de infância, hoje no seu 91º aniversário).

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Livros e leituras - One time, one place

"Lidamos o melhor que podemos com a nossa exposição ao mundo durante a vida, e recorremos a todos os expedientes necessários para sobreviver. No entanto, é evidente que, no fim de contas, o nosso conhecimento depende da relação viva entre aquilo que vemos à nossa frente e nós próprios. Se a exposição é essencial, ainda mais o é a reflexão. O discernimento não se alcança frequentemente no clique de um instante, como uma fotografia feliz, mas vem a seu tempo, mais lentamente, e apenas de dentro.

O reconhecimento mais nítido é certamente aquele que surge marcado pela simpatia, tal como pelo choque - trata-se de uma forma de visão humana. E claro que isso é uma dádiva. Lutamos, enfrentando qualquer dor ou escuridão, movidos apenas pela esperança de a poder receber, e enfrentamos qualquer esforço, rezando para a manter. 

Cedo descobri que tinha de procurar aquilo que precisava de descobrir sobre as pessoas e as suas vidas. [...] escrevendo histórias. [compreendi] que o meu desejo, na verdade a minha contínua paixão, seria não apontar o dedo em julgamento, mas afastar uma cortina, aquela sombra invisível que cai entre as pessoas, o véu da indiferença perante a presença de cada um, a maravilha de cada um, a tribulação humana de cada um."

Amadeo e o modernismo

"Trago ao Universo o próprio Universo
Porque trago ao universo ele próprio." (1)

Amadeo de Sousa Cardoso foi uma das figuras mais importantes da pintura portuguesa do século XX e deixou um marco expressivo na cultura portuguesa, pelas possibilidades que criou na formulação das ideias e de como estas poderiam recriar horizontes novos. Sentimos nele o valor do movimento modernista, que conhecemos com a revista Orpheu e com Pessoa, mas chegamos a fronteiras diversas, a que levaria ao expressionismo e ao cubismo. Na verdade, Amadeo inspirou-se no seu meio geográfico, de onde colheu formas e cores a que daria plasticidade com o que encontrou em Paris, para onde partiu, em 1906. 

Manuel Laranjeira, definiu-o como “um artista no significado absoluto do termo" e vemos nele uma força criadora de grande significado, uma preocupação com o trabalho produzido, a superação dos valores burgueses que ele conhecia, a dimensão artística da arte, como forma de transformar o mundo e a vida. 

Amadeo nasceu em Amarante, a 14 de Novembro de 1887, pertencendo a uma numerosa família, com bons recursos económicos. A sua passagem por Espinho permitiu-lhe conhecer Manuel Laranjeira que o incentivou na prática do desenho, que ele explorou, quando entrou em Belas Artes, em Lisboa, em 1905. Em 1906 parte para Paris, onde irá dar continuidade aos seus estudos. A ilustração que se praticava em Paris, fê-lo abandonar a arquitectura, tendo-se dedicado ao desenho de forma plena.

Esta frequência do espaço parisiense deu-lhe a conhecer figuras que o ajudarão a definir-se, como Eduardo Viana, Anglada-Camarasa, ou ainda Gertrude Stein. Em Paris, Amadeo conhece de perto o movimento modernista, aproximando-se de figuras que em diferentes geografias da cor, lhe vão permitir tornar-se o grande pintor que foi. Internacionaliza-se, realiza mostras da sua arte. Primeiro, em 1912, no Salon des Indépendents, e em 1914 no  Salon d’Automne.  

Os seus contatos permitem-lhe integrar exposições, fora do circuito de Paris. Participa no Armory ShowExposição Internacional de Arte Moderna, que se realiza em Nova Iorque, Chicago e Boston. Integra o catálogo de Arthur J. Eddy, Cubist and Post-Impressionism, onde se realça a sua plasticidade e cor. Também na Alemanha participou no  I Herbstsalon de Berlim. Passará também por Portugal, com duas exposições, onde vinha na época de verão. 

Amadeo procurou agitar o meio artístico português, com as ideias do manifesto do Futurismo, de modo a romper velhas estruturas, mas o seu sucesso foi limitado. O campo estético não lhe foi favorável e apenas contou com os apoios públicos de Pessoa e Almada, aquando de uma das suas exposições. Morreu em Espinho, em Outubro de 1918. É uma das grandes figuras da História Contemporânea, mas à semelhança dos seus amigos do Orpheu, as suas ideias não foram integradas num país ausente da si próprio. E essa é uma das chaves da permanência do País, pelo esquecimento e pela sua marginal participação numa civilização de desenvolvimento humano.

(1) Alberto Caeiro, "XLVI", Poesias - Heterónimos

Dias de ganância


                          «o amor ao próximo é o maior prazer do ser humano.» (1)


Somos aparentemente no imenso universo, a única espécie a habitar esta poeira cósmica, de matéria e sonhos. Sem compreendermos os mecanismos do seu funcionamento, oscilamos entre um sentimento de abandono e de esperança neste cosmos que flutua no espaço.

Seriam pois nas relações humanas, nas mais diversas situações que a humanidade pode encontrar um sentido para a sua existência. Neste sentido valores como a amabilidade e a generosidade têm todo o sentido em estarem no centro das relações humanas. Não sendo o que acontece, que justificação e que preço para a sociedade humana?

Adam Philips e Barbara Taylor (2) defendem que o amor ao próximo é hoje «o nosso prazer proibido». Porque temos esta incapacidade de nos identificar com os outros, com as suas dificuldades, angústias, receios e sucessos? Tendo o Ocidente, dois mil anos de cristianismo, onde o amor ao próximo organizou o seu pensamento para tantos milhões, porque assistimos à valorização do individual, como única forma de sobreviver num mundo dominado pelo egocentrismo, onde tantos parecem estar em guerra por qualquer coisa que não entendem.

Afinal, demonstrar generosidade publicamente ainda é considerado um acto de inferioridade psicológica, ou de sentimentalismo de valor duvidoso. A amabilidade não é ainda vista pela sociedade como algo natural. Com graves limitações à afectividade, a sociedade contemporânea elegeu o individualismo e a sua independência singular como critério de sucesso. A solidariedade como factor de existência humana é ainda visto como uma fraqueza. Quantos projectos de grandes empresas estão ligados a causas de igualdade social?

Nos últimos anos, as ideias de um liberalismo feroz tem remetido a afectividade natural do homem à esfera do privado. No espaço público os valores dominantes são outros: competição, domínio da estatística, realidade virtual onde se compete sem valores espirituais, onde a função vale mais que a pessoa. Os últimos anos, digamos uma década de inexperiência política vincaram em Portugal esta opção. 


Muitos, mesmo os que já tinham uma vida de conforto material de elevadíssimo nível, quiseram mais e mais depressa. Enriquecer sempre. A ganância desmesurada instalou-se no sistema financeiro. O Estado desprovido de justiça incentiva pelas suas atitudes e opções esta desumanização do espaço público. A insistência em desvalorizar a efectiva segurança social das pessoas, num País que teve disso uma experiência histórica limitada e reduzida apenas agrava a redistribuição de um mal estar social evidente.

O domínio da «cultura de empresa» a todos os espaços, do infantário à fábrica, da justiça ao apoio social, da cultura à língua, impõe uma sociedade de infelicidade que se materializa no excesso de trabalho, na ansiedade, na ausência de espiritualidade, na concretização de autómatos desprovidos de pensamento e de serenidade. Esta filosofia de Liberalismo já deu mostras no campo económico de como as sociedades podem ser destruídas pela ausência de regras. No campo social é a degradação veloz da suas instituições básicas: o cidadão, a família, a escola, a empresa.

A sociedade humana tem de ser mais que um conjunto de pessoas a lutarem entre vencidos e vencedores, onde todos perdem a dignidade e alguns ganham não se sabe o quê. O sistema político tem a obrigação de oferecer mais que um disfarçado controlo democrático, onde o poder e os que lá moram tudo podem, sem respeito pela sociedade que representam. Um País tem de ter representantes que saibam dar esperança às pessoas, que as façam acreditar que a mudança se faz com base num exemplo, o seu próprio. Um governo que não sabe ter pessoas generosas no seu carácter, não conseguirá propor nada de substantivo para o País Real.

E certamente não será copiando exemplos irreflectidos, cartilhas ideológicas sem consistência histórica que se renovará a esperança. Já Pessoa tinha dito a quem o soube ouvir que este País só poderá ser qualquer coisa no campo civilizacional do seu tempo, quando for, quando o deixarem ser ele próprio. E isso só é possível com uma ideia de cultura, fazendo da governação uma gestão do acto público para as necessidades de todos e não apenas para a salvação dos tesouros pessoais de uma minoria. Propor aos cidadãos um projecto de sociedade que o torne mais do que  «quase uma Democracia que insiste em ser, dominado pela paixão proclamada pelos políticos provincianos» (3) que nos tem obliterado a qualidade na educação, na justiça, na nossa existência quotidiana.
E sobretudo saber aprender para que saibam propor qualquer ideia nobre e com futuro.

(1) Marco Aurélio, imperador Romano, in Courrier Internacional, Março de 2009
(2) Adams PhilipsBarbara TaylorThe Guardian, 3/1/09
(3) António BarretoJornal Público, 29/03/2009
(Imagem - Ariane de Maria Helena Vieira da Silva, in blog-city.com)

domingo, 10 de novembro de 2013

Memória do Mário

Foi o maior actor da sua geração.
A palavra teve no seu rosto, na sua voz, na sua expressão, a beleza do encontro e capacidade de imaginar horizontes novos. O Poema recebeu com o seu sorriso, as suas lágrimas, a sua alegria, a sua energia formas novas. Ainda o estou a ouvir, com aquele ar encantado de miúdo. 

Dele ficará sempre a doçura e a raiva na voz contra o que desejamos e não sabemos ser, contra o conformismo perante o verniz que destoa a claridade e o perfume das maçãs. Fomos com ele um sonho de manhã silvestre, por onde hoje caminhos efémeros se diluem, ainda que tenhamos nos olhos os fascinantes dias de Maio.

Dele, da sua camaradagem as palavras serão sempre poucas, raras, marginais para descrever a entrega a elas e à poesia. Saramago disse dele que "poucas pessoas valeram tanto neste País". Raras, muito raras vezes o assombro da voz, a plasticidade do rosto, a expressão dos olhos, a fúria por aquilo que consome o actor e o que o faz amar, em múltiplas cabeças, o que o torna humano e universal, quando "ornamenta Deus com simplicidades silvestres" ( Herberto Helder). A sua voz, num poema de Manuel Alegre sobre o mês das rosas, e o olhar que ele transportava nesse eterno mês dos namorados.


sábado, 9 de novembro de 2013

A queda do muro de Berlim

«Duas nações entre as quais não há relacionamento, nem simpatia; que ignoram de tal forma os hábitos, pensamentos e sentimentos da outra parte que parecem habitantes de planetas diferentes. Os ricos e os pobres.» (1)

Vivemos tempos em que a memória é pouco relevante na construção dos dias e como sociedade perdemos a noção do valor que gerações emprestaram às suas lutas por uma sociedade decente, onde os valores humanos representavam a marca de gerações pelo bem comum. Esta descontinuidade com o passado é uma das causas porque olhamos passivamente para a desigualdade social e lidamos com indiferença, perante as dificuldades dos cidadãos que nos rodeiam. É por isso essencial relembrar a História.

O Muro de Berlim é um dos marcos mais importantes da História Contemporânea, pois tem nele o sombolismo de um mundo dividido, após o fim da segunda guerra mundial, onde dois modos de ver o mundo eram tão demarcados no quotidiano. Os traços essenciais.

Até 1961 os habitantes de Berlim, os Berlinenses tinham acesso a circular livremente dentro da sua cidade. Fruto da guerra fria e da migração dos habitantes de Berlim Oriental para ocidente, aquela iniciou a construção de um muro a treze de Agosto de 1961.  A sua construção dividiu ruas, prédios, separou famílias em poucas horas, tinha torres electrificadas, protegidas com arame farpado e vigiava todo o seu extenso espaço com cerca de trezentos postos guardados por soldados.

O Muro representou o pior de um mundo que não respeitava a liberdade individual das pessoas, a sua humanidade perante um Estado policial que segregava os seus cidadãos. Os anos oitenta assistiram ao colapso de uma sociedade que impedia o indivíduo de participar criativamente na organização do seu presente. A ideia de que o Estado poderia regular, tudo, do nascimento à morte veio confirmar o absurdo de um modelo social e político. Os suportes dos regimes a leste, apoiados numa indústria obsoleta e excessivamente ligada à produção de equipamentos militares não souberam resistir às mudanças que foram surgindo. Da União Soviética, à Polónia e à Hungria o sistema socialista revelou-se incapaz de impedir uma mudança.

A 9 de Novembro de 1989, o mundo assistiria à queda de um muro, consequência da vontade de tantos alemães a leste de se mudarem para a parte oeste, processo que se verificou incontrolável. O fim do muro representou o fim de uma hostilidade entre dois blocos e a abertura para um mundo mais livre e mais participativo. Em 1990 as duas Alemanhas iriam-se juntar formando um único País. Mas persistem demasiados muros, erguidos por uma cegueira fundamentalista sem memória. O Muro abriu uma porta que a classe política europeia não soube aproveitar.

Na queda do muro de Berlim participaram, lutaram, viveram e morreram gerações de homens e mulheres que acreditaram na liberdade individual como forma e expressão do desenvolvimento humano e como este é inseparável de uma procura de nivelação igualitária cultural e social. 

O Muro de Berlim é hoje, quase um vestígio do que foi a História da Europa e do Mundo, mas ainda é uma lição para os que se esquecem de como os movimentos sociais são desenvolvidos e alimentados por sonhos individuais. Importa lembrá-lo a uma Europa em decadência acelerada das suas instituições. A uma Europa burocrática, onde o seu modelo civilizacional está hipotecado aos créditos, de um fundamentalismo monetário que dominam a economia econométrica da produtividade. A uma Europa que parece pouco preocupada com os contornos do quotidiano, mesmo quando eles formalizam horizontes autoritários,incoerentes com o direito e  estranhos ao vínculo transformador dos direitos humanos.
(1) Benjamin Disraeli, citado por Jean- Pierra Lehhman

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Livros e leituras - O caderno do avô Heinrich

Título: O caderno do avô Heinrich
Autor: Conceição Dinis Tomé
Edição: 1ª
Páginas: ...
Editor: Editorial Presença
ISBN: 978-972-235130-0
CDU: 82-93


(...) há homens que são loucos  e que,  quando têm o poder nas mãos, aproveitam para concretizar todos os seus delírios e dar voz a todos os fantasmas e ódios que têm dentro de si.  

(...) uma neblina  espessa pairava sobre o parque, ocultando a capa das árvores. A chuva continuava a cair, uma carícia sobre as flores. Nas árvores despontavam as primeiras folhas, tenras e de um verde frágil, e, nos canteiros, as tulipas irrompiam coloridas e alegres, indiferentes à guerra".

" É possível acordar todas as manhãs e começar de novo. Como se a vida nos desse a possibilidade, em cada aurora, de a reinventar e de a transformar. Acho que foi sempre isso que eu tentei fazer. Houve muitos dias em que o consegui e outros em que me deixei apenas arrastar ao longo das horas, à espera de um novo amanhecer. Nesses dias, sempre soube que um livro é o melhor refúgio, como um colo quente ou um chocolate acabado de fazer. Ou um aroma  do pão a sair do forno. E que, dentro de um livro, encontraremos sempre liberdade. 

Conceição Dinis Tomé, O caderno do avô Heinrich, págs. 76, 36 e 53.

Memória de Albert Camus


"Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e digo: 'isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.' Tenho eu necessidade de falar de Dionísio para dizer que gosto de esmagar bolas de lentiscos debaixo do meu nariz?"  (1)

Há cem anos nascia um dos grandes (a palavra é pobre para o exprimir) pensadores sobre a condição humana. Foi identificado como um dos que pertenceu a um século onde alguns homens pensavam a sociedade ou para indicar possibilidades ou para forjar caminhos alternativos, os chamados intelectuais. A palavra não lhe faz completa justiça, pois ele foi sobretudo uma voz moral, acima da pequena política, das intrigas de palácio, onde soube falar sobre a natureza humana e dar-nos esse ânimo na voz que caminha entre a desistência mais passiva e o não afirmativo, comprometido, solidário por uma causa. A sua causa foi a da democracia da beleza, conceito, nobre à procura de uma revolução, sim a a da vida, como ele também expressou.

Filho de outro continente, das geografias humanas colonizadas, dessa mistura de povos e culturas, filho nas margens da sociedade, cultivou a resistência e o estudo como a verdadeira porta para se ser livre. É assim filho dessa ideia, que a França cultivou de que uma educação republicana, poderia fazer nascer um País desenvolvido. E escreveu sobre nós, as nossas ambições, a fragilidade humana na efemeridade do tempo e os valores morais que devemos vestir em qualquer contexto. Tony Judt chamou-lhe o 'Melhor homem de França' e esta sente-lhe a falta, desde que se tornou passivamente indiferente à contemporaneidade.


Escreveu O estrangeiro, A peste, O mito de Sísifo, Os discursos da Suécia, A morte feliz e O primeiro homem. Foi Prémio Nobel da Literatura em 1957 e é das poucas vozes coerentes do século XX onde podemos ainda ver o caos e a angústia dos tempos modernos como uma forma de expressão da humanidade, da nossa natureza. Compreendeu os limites das tiranias do século XX, antes de algumas das suas vozes mais sonantes e devemos-lhe isso, essa coerência pelo que somos. Caminhou sozinho, com a voz interior de um oráculo que se quer descobrir a si nos outros.

Essa felicidade que procurou, que procuramos, entre múltiplas imagens, na procura da memória mais bela a fundir no sonho, entre o universo visível que nos é dado a ver e a nossa experiência humana. Chama-se Albert Camus e nasceu há muitas décadas para que o visitemos nestes tempos obscuros que exigem um conhecimento de um homem essencial do século XX, de múltiplos séculos, nessa luta essencial entre o absurdo e a revolta, para a construção do possível humano.

(1) citado de Maria Luísa Malato, "Lumières d'Albert Camus

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Livros e leituras - Pensar a multiplicidade do Eu!


Primeiro número de uma revista editada na cultura anglo-saxónica há já alguns anos, apareceu há pouco tempo por aqui, oferecendo-nos textos diversos organizados em torno da temática do Eu. Dirigida por Carlos Vaz Marques, editada pela Tinta da China, são três centenas de folhas com palavras que destacam as variantes possibilidades do Eu, como inaugurador de um mundo inicial. Mundo revelado sobre o que somos capaz de olhar no real, nos outros e em nós.

Dulce Maria Cardoso, Hélia Correia, Daniel Blaufuks, Rachel Cusk, Valter Hugo Mãe e Pessoa inédito, assinam alguns dos mais pertinentes textos/imagens, onde os eus se reinventam, entre  os fragmentos dos dias, o corpo que habita a efémera felicidade, que procura na arte de escrever, a perenidade possível.

A arte no seu sentido mais global, como a ilusão capaz de nos redimir de um tempo que nos escapa. E a velha ideia, quase tão antiga como o homem, que na ficção aumentamos o quotidiano. A palavra é pois esse segredo por uma vida mais completa, mais cheia de possíveis. Este é pois um número para guardar pelos textos que nos revelam diferentes geografias do Eu, num nível nada inferior ao que se lia noutras latitudes atá agora. 

domingo, 3 de novembro de 2013

In Memorian - pelos sonhos do António Sérgio

«(...) Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem / Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.» (1)

   As sociedades humanas são feitas por pessoas que apostam em nos despertar para novos caminhos, onde a beleza, a poesia e a imaginação são elementos de uma vida que se procura mais bela e livre. São estas vozes que importa destacar, muito acima da mediatização de certas figuras que inundam o espaço público de comunicação com palavras vazias, contemplando a ambição cinzenta do poder. 

António Sérgio foi uma dessas vozes que procurou colorir o nosso quotidiano com sons novos, alternativos e de uma dimensão moderna. Homem da rádio, foi animador com ideias próprias de sucessivos projectos onde o som, o ritmo e as palavras foram sugeridas de um modo criativo e inteligente.

A geração que foi adolescente entre os finais da década de setenta e os anos oitenta lembrará a sua voz e os seus programas de rádio, na Comercial, na XFM e na Radar. O Som  da Frente ou a Hora do Lobo apelaram a essa diferença na música e no fundo na vida. A sua voz grave e intimista convidavam-nos a habitar uma atmosfera que soube romper com o mediano gosto que em tantas estações proliferaram. 

Foi nesse sentido um homem que abriu caminhos num País cinzento, ainda  a romper com o fechamento de décadas. A esses tempos de memória e ao seu papel formador aqui deixamos o nosso reconhecimento. Obrigado António.

(1) Sophia in Coral, Caminho

(Com o atraso de dois dias, a memória de um homem que nos deu pela música o sonho)