domingo, 29 de junho de 2014

Na memória dos nossos sonhos

Tu afinal és via e passagem, e só podes viver realmente daquilo que transformas. A árvore, a terra em ramos. A abelha, a flor em mel. E a tua lavoura, a terra negra em incêndio de trigo». (1)

É uma figura universal da nossa memória. Participou nesse momento único do século XX, em que a dignidade humana procurava recuperar dessa noite sem consciência, que foi a luta contra o nazismo. E foi um autor que nos deixou essa obra aparentemente simples, que é o Principezinho. Deu-nos um conjunto de ideias tão necessárias à nossa vivência quotidiana.Ensinou-nos com a simplicidade das crianças que existe no quotidiano dos crescidos um mar de inutilidades, uma luta por uma conquista de objectos que nos afastam do coração, da essência dos sonhos. E é essa ausência que nos afasta dos outros, conduzindo a uma solidão, longe dessa representação da fantasia, que nas crianças está tão presente. Chama-se Antoine de Saint-Exupéry e faz hoje justamente cento e catorze anos que nasceu em Lyon para nos encantar com a sua fantasia tão necessária na espuma dos dias.

(1) Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Leituras - Os Níveis de vida

"Perdemos o mundo por um olhar? Claro que sim. É para isso que o mundo existe: para se perder na altura certa." (1)

Um livro sobre nós, sobre os gestos que nos fazem juntar os objectos, os caminhos, na transformação do mundo que acabamos por contribuir. Dos níveis de vida que de modo diferente vivemos. Nos sonhos dos espaços, onde a liberdade é maior que qualquer convenção ou poder político.

Na descoberta por encontrar novas ideias, novos artefactos, novas formas de compreender o espaço que nos rodeia, novas possibilidades de nos vermos. Na normalidade dos hábitos, do que aspiramos, da levitação que ensaiamos chegar a pontos de eternidade efémera, seja no amor, na arte, na viagem.

Níveis de vida onde nos tentamos encontrar, redigir padrões, manter-mos a suspensão nas nuvens, mesmo quando a realidade é concretização da imaginação. Nesses pontos onde tentamos criar um mundo moral feito de verdade, de magia, de cintilação. E também de perda, dessa ausência incompreensível do rosto. E do universo, sempre e só na sua construção funcional.

terça-feira, 24 de junho de 2014

À procura de Peter Pan

Partiu há quatro anos, mas houve nele algo de intemporal. As múltiplas personagens, no desencontro de uma infância que parece lhe ter fugido na construção de um sucesso precoce. O exagero da imagem para o sucesso que o tornaria refém desse mito de eterna juventude que espera nunca crescer, numa eternidade construída sempre jovem.

Protagonizou imensa controvérsia, numa vida em que a Terra do Nunca e uma eterna rebeldia nos faz recordar esse livro extraordinário, de Barrie, Peter Pan. 

O eterno ícone, que parece não ter idade, onde aventuras múltiplas constroem um imaginário onde as regras se comprometem a uma vontade de mudança. E onde ainda se afirma a procura pela graça única das crianças, por esse mundo onde a imaginação parece permitir construir um mundo próprio.

Chamou-se Michael Jackson. Partiu para essa Terra, onde a memória e a imaginação não têm cores, há já quatro anos e pela diferença que protagonizou merece esta palavra de lembrança que aqui deixamos.

O roubo do presente

“Há pelo menos uma década e meia está a ser planeada e experimentada quer a nível do nosso país, quer na Europa e no mundo uma nova ditadura - não tem armas, não tem aparência de assalto, não tem bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se deixarmos andar, é também um golpe de estado e terá um só partido e um só governo - ditadura psicológica.Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro. 

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.

O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stress, depressões, patologias, border-line, enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).

O presente não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direcções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público. Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais.O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». 

A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efectiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. 

Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.

Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português.Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria­-nos do nosso poder de acção. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país."

(São muitas as formas de biopoder ensaiadas e concretizadas com a amnésia institucional que circunscreve os privilégios da minoria financeira e partidária instalada. Todos os dias vemos dos oficiais comentadores à artitmética do privilégio, uma mentira, como forma institucional de ser uma aparência de dignidade. É preciso lutar e denunciar os yupies desta convulsão moral.)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

A destruição do Tua ou a hipocrisia por um reino de silêncio

«Havia um tempo em que, por estas colinas (sobretudo acompanhando o derradeiro fio de água do Tua, a caminho do Douro), descia um comboio vagaroso e pobre, sujo, com as madeiras ressequidas a desfazerem-se, os varandis das carruagens enferrujados, os tectos corroídos pelo tempo. Chovia lá dentro. Os vidros, em muitas composições, tinham sido quebrados - ou, pura e simplesmente, quebraram-se com o tempo, o uso, a idade. Nos carris, o comboio chiava até encontrar as primeiras vinhas do Douro, relembrando ainda a última paisagem do planalto. 

Quando o crepúsculo se despedia em Bragança, partia o derradeiro comboio que chegava ao Tua já noite alta, a tempo do transbordo para a linha do Douro, na direcção de Barca D'Alva. O percurso que desenhara no mapa, de Bragança a Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Cachão e Tua, só era conhecido por esse traçado ronceiro, lento, demorado (...) entre uma paisagem de oliveiras, azinheiras e falésias caindo sobre o que restava do rio. (...) O caso da linha do Tua evoca tragédias recentes; mais do que «tragédias», no entanto, evoca o isolamento da região.

Nada disto interessa em Lisboa, tirando excepções muito localizadas. A indústria do asfalto que tomou conta do País, acompanhada pela indústria da camionagem, pela indústria das portagens e pela indústria do esquecimento, não tem a ver com as velhas linhas férreas que desenharam a geografaia de um país onde os carris acompanhavam rios, fronteiras de província, planaltos áridos e solitários - e uma enumeração caótica de designações fora de moda. Ao longo dos anos, destruindo metódica e paulatinamente os comboios, desprezando as populações que os utilizavam e beneficiando os intersses da camionagem e dos combustíveis, o Estado preparou este cenário contra o qual há, hoje, pouco a fazer.

Uns, mais conformados, recordam; outros, menos conformados, resistem e combatem o quase inevitável fim destas linhas perdidas. Um resto de dignidade e de memória devia fazer-nos correr até onde o último comboio regional ainda corre - para o defender. O País - o Estado, os empresários, a indústria - dá o assunto como encerrado e abre auto-estradas, suja a paisagem, promove o grande progresso (...). Por isso, defender o último comboio regional, seja onde for, é combater este país abjecto que destruiu a nossa paisagem, a nossa memória e a geografia do tempo» (1).

(É um dos reinos de beleza que tivemos e que uma esclarecida classe política soube vender em arranjos de hipocrisia. O território é para alguns duas ou três avenidas do litoral, por onde uma arrogância dos bem vestidos proclamam as suas palavras vazias. Podemos sempre dizer, para os sucessivos desastres que foram alguns ignorantes que viveram acima das suas possibilidades, os que trabalhavam, os que tinham o privilégio de um salário por um trabalho, os que escandalosamente queriam uma reforma no fim de uma vida de trabalho. Estes servem! Isso explica tudo. Para alguma coisa somos mestres da não inscrição.
(1) Francisco José Viegas, in Revista Ler Maio de 2010

sábado, 21 de junho de 2014

Sobre Chico

"Chico chega aos setenta (e até agosto sou apenas um ano mais velho do que ele, prazer de dois meses a cada ano).
 O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. 
Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque gaúcho, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. 

Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado por Chico e transformado em coloquialismo sem esforço. 

Vimos melhor e com mais calma o quanto já tínhamos Noel, Haroldo Barbosa, Caymmi, Wilson Batista, Ary, Sinhô, Herivelto. A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos.”

(Um texto de uma profunda beleza de Caetano sobre Chico, retirado da sua página e que nos devolve esse amor profundo ao essencial, por tantas emoções, tantos anseios, tantos desencontros, tantos nós que nos cantou para embalar o sonho e o coração).

Dia Europeu da Música

Raindrops

Conselho de turma. 7º ano. Lisboa. 2014. Oito meses de comportamento inadequado por todos analisado, taxa de insucesso elevadíssima, falta de esforço, raro estudo, transformado no dia final num sucesso de 100%. Todos sabemos ali, nos diálogos não traduzidos em palavras impressas que não é verdadeiro. 
Adivinha-se o processo. No decurso do processo de qualquer coisa parecida com uma avaliação, notas de três podem ser dois, conforme o aluno já esteja passado ou não. Avaliamos o quê?

Transições ou trabalho, sucesso, ou conhecimento, empenho ou faz-de-conta? Cadernos de letras redondas e melhores atitudes justificam os milagres desta anunciação. Reprovar não faz bem a ninguém. O mundo está à venda,  a qualquer preço. É só pegar. Queixamo-nos muito, mas na verdade os professores não se respeitam. Assombro final. A acta está muito bem escrita. É demasiado pequena. A Gestão gosta de actas de bom tamanho, como os desertos em dias de suão, vento a rimar nas margens. É um desconsolo. O que é que eu faço aqui?

Poderemos ensinar pensamento crítico em sistemas dominados pelo centralismo democrático, empenado de burocracia sem ideias. É uma excepção. Todos conhecemos demasiadas excepções. Fiquemos com a saudade de onde ainda se pensa a avaliação como um processo de crescimento, de aprendizagem de significados. Regresso ao Porto.

Reencontro alunos. O edifício que alguns ainda chamam educação revela-me mais elementos dessa arquitectura do desastre. Nono ano: Camões e Gil Vicente ficaram na memória do caminho.São muito antigos dirão os novos habitantes nos media da ilusão. Não são mercedores do esforço dos alunos, do seu estudo.

Décimo segundo ano: Pessoa nas brumas do esquecimento, um dos que os alunos mais apreciam, pelas reconstruções e possibilidades de cada pessoa. O mestre da língua, Vieira saiu em perguntas de concurso televisivo. Basta ler. Nada é preciso saber. Tema de escrita: na globalidade do universo, sem referências. Os alunos encontrá-la-ão. O MInistério sabe o que faz.

A "educação" não é pois uma ferramenta para a cidadania. A destruição da sociedade como construção comum de um património tem os seus laboriosos operários iluminados no mais simples utilitarismo. É uma pena, que a escola, não seja, com os professores, uma outra conquista de saber e valor. As maravilhosas palavras de Mandela, "a educação como arma transformadora da sociedade" vale aqui muito pouco. É possível percorrer as estrelas, ainda imaginando que a Terra é o centro do Universo. Poderemos nós como sociedade fazer mais do que murmurar gotas perdidas que não se revelam no real?

Nas linhas do caminho...

"- Os pássaros - assegurou-lhe - voam por convicção". (1)

 Caminhamos, respiramos, viajamos entre espaços pelo pelo que somos, pelos mecanismos biológico ou pelo espírito que nos anima? Somos pessoas porque voamos entre linhas desenhadas na imaginação, caminhamos fisicamente pelo que nos é dado ou é a convicção que nos alimenta o caminho?
No contínuo caminhar que fazemos reside o nosso empenho na forma como o fazemos, nas opções que colocamos no caminho, nos instrumentos que concebemos para o sonho, ficamo-nos na crença cega do modo como andamos, ou estimamos as possibilidades de chegar ao crepúsculo da tarde?

Na viagem que construímos é o rio que corre em nós, que nos alimenta a definição do caminho, nos faz criar os instrumentos capazes de superar os limites físicos, operacionais do corpo, para conquistar esses momentos de superação, de uma epifania de vontade e determinação. Na errância com que nos vemos, são essas cores com que pintamos o real que embelezam a respiração das auroras amanhecidas na alegria da viagem, como elemento essenial do sonho vivido.
(Jose´Eduardo Agualusa, "O quarto anjo", in A Educação Sentimantal dos Pássaros).

terça-feira, 17 de junho de 2014

Saramago - A substância das palavras

«Não me peçam razões, que as não tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

 
Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não o aceito.

 
Não me peçam razões, ou que as desculpe;
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor da Primavera que há-de vir.» (1)


(1) José Saramago, «Não me peçam razões» ,in Os Poemas Possíveis

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia.
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
 
Um dia serei eu o mar e a sereia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como um beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia, De Mar (Antologia), Caminho 

 

sexta-feira, 13 de junho de 2014

As identidades de Pessoa

Quem mais do que ele era ele? Foi o que se perdeu em si mesmo, por uns copos a mais ou pelas alucinações opiáceas muito em voga naquela altura? Fosse como fosse ou porque fosse, para além do poeta imergiu o filósofo da identidade perdida que por acaso até era a sua. Nota-se em toda a obra uma profunda angústia depressiva, uma ruptura do Eu com o mundo exterior e o inevitável refúgio num mundo alucinatoriamente centrado em si mesmo. Todos os heterónimos reforçam a ideia do isolamento, num universo humano de incompreensão e vazio de atitudes reflexivas.    
 
Por breves instantes, talvez mais em Álvaro de Campos, nota-se um verdadeiro esforço para valorizar o Outro «És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?». Mas mesmo aqui a sua escrita é decerto uma admoestação ao próprio e aos seus súbitos delírios de insatisfação. Em Alberto Caeiro, a mesma descrença nos outros continua presente «Falaram-me os homens em humanidade. Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. Cada um separado do outro por um espaço sem homens.» Ricardo Reis revela um Pessoa em constante combate com Deus e com a ideia da existência de um ser superior. Para «calar» esse Deus, desenrola a sua vasta cultura clássica, criando uma tal Lídia para o guiar no percurso dessa revolta «Da verdade não quero mais que a vida; que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.» Bernardo Soares é na minha perspectiva, o expoente da desilusão de Pessoa em relação tudo e todos «A mais vil de todas as necessidades - a da confidência, a da confissão é a necessidade da alma de ser exterior.
 
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos teus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos  que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.» 

 
Fernando Pessoa foi e continua a ser o paradigma da identidade perdida. Muitos psicólogos e psiquiatras se debruçaram sobre a sua vasta obra, descortinando nos poemas, uma possível esquizofrenia do poeta ou a tão famosa hoje, doença bipolar. Muitos chamam-lhe génio, outros consideram-no o maior poeta português de todos os tempos e ainda outros nunca o leram. Gostando ou não da sua obra, a verdade é que hoje, ela é, mais actual do que nunca. Leva-nos a reflectir sobre o individualismo que caracteriza a nossa sociedade, o consumismo versus o despojamento, os centros comerciais versus o contacto com a natureza, a legitimidade das acções versus os valores éticos das mesmas e o Eu versus os Outros.
 
Numa sociedade em que se conjuga o verbo sempre na primeira pessoa do singular está na altura de parar e reflectir: E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?»

(Texto de uma amiga, que pela vida passou, num texto partilhado de outros caminhos. Na lembrança da Profª Ana Cristina Oliveira)

Qualquer coisa entre a Sé de Braga e Nova Iorque

«Que me importa o que serei? Quero é viver. Amanhã. Espero sempre um amanhã. E a vida é sempre uma curiosidade.» (1)
 
António Joaquim Rodrigues Ribeiro, nasceu a três de Dezembro de 1944 e partiu, faz hoje exactamente trinta anos, a treze de Junho de 1984. Portador de uma vontade interior que o faria viver para Lisboa, onde desenhou, ele próprio o seu espectáculo, suportado pela liberdade e pelo mistério.

O Portugal do início dos anos oitenta era do ponto de vista cultural uma paisagem medíocre e António, para o futuro, António Variações pretendeu fazer esse esforço de tentar criar qualquer coisa onde nada parecia acontecer. À semelhança da sua geração tentou dar a sua voz a um tempo que parecia esquecido dos mais jovens. Numa sociedade que garantia ao valores estrangeiros a categoria de vanguarda e aos nacionais o peso exclusivo da tradição, António representou a síntese entre os dois, com olhos para o futuro.

Autodidacta, quis construir uma ideia musical que ligasse a tradição e a modernidade. Interrogou na sua curta carreira e vida todas as inquietações que nos assombram. Foi um homem antes do seu tempo. Do tempo das limitações tecnológicas, mas que sabia construir com determinação, com curiosidade, com alma as ideias do quotidiano. António foi um exercício humano, uma respiração de ideias e de entusiasmo pela vida. 

Muita da nova música portuguesa dos anos recentes é-lhe devedor do espírito que soube criar. Manter as raízes e abrir o olhar ao que vem de fora. É esse o sentido da sua música. Soube combinar a alma portuguesa, na sua tradição com a universalidade dos seus poetas, como o fez com Amália e Pessoa, dando ritmos novos, com contrastres, mas sempre  com os valores máximos da inquietação  e do respeito pelos outros. A ouvir, num dos poemas de um poeta já esquecido, justamente Pedro Homem de Mello.

Copa 2014 ...

Começou ontem e durante um mês a oligarquia comandada pela Fifa organizará com a complacência do governo brasileiro algo parecido com o que poderia ser o encontro desportivo entre povos. É, todavia, tão só a construção de mecanismos capazes de manter o dinheiro e o poder nas mãos dos mesmos, a burguesia reinante que da Europa e nas Américas se difunde em gestos abnegados de heroísmo humano.

O desporto alimentado pelos bancos, dirigido pelas elites políticas, mantido pelas forças policiais fidelizadas a governos sem estrutura moral, conduzido a massas pelos media constrõem uma amnésia em que se jánão basta a si próprio. É preciso eliminar os que estão no caminho, os que não sabem deixr de existir, os que respiram. É por isso preciso expulsá-los, retirar-lhes o seu espaço de quotidiano.

As imagens falam por si e elas dizem tudo sobre o vazio das palavras que enchem os grandes feitos da finança e da política. Sabendo que o presidente do Brasil sofreu nos anos setenta com o regime militar, a consução que tem feito neste triste mundial, apenas nos pode conduzir à convicção que o poder apenas regista como critério o que o mantém  a si próprio e à oligarquia que alimenta. Vindo dos trópicos é uma triste recordação de um acontecimento que podendo ser grandioso é uma decepção pelo mal que provoca em tantos cidadãos. O resultado do campeonato e a sua coreografia não tem na cidade de mil encantos qualquer fascínio. Valia apena pensar nisso.
Fontes das imagens: Theatlantic

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Memória de Anne Frank

"I hope i will be able to confide everything to you, as I never been able to confide in anyone, and I hope you will be a great source of comfort and support." (Diary, 12 June, 1942).

É uma história antiga e nestes dias em que dominam os privilégios do pensamento utilitário é muito importante lembrar sempre e em profundidade cívica o que representou o Holocausto e como a dignidade, a esperança, a vida foi destruída em nome de nenhum valor. Primo Levi disse-o com clareza, "aconteceu aqui, na Alemanha, num país com uma cultura de referência, pode voltar a acontecer". É sobre isso, sobre o esquecimento que hoje se pratica que importa lembrar o nascimento de Anne Frank.

Sinal dos tempos é a preferência do Google em escolher como animação do dia no seu motor de busca, um campeonato de futebol, ao valor humano que representa a vida de Anne Frank. É necessário sobre essa espuma de contentamentos apressados, de interesses milionários de uma oligarquia burocrática também estar desperto para a lenta e escondida forma de esquecer a humanidade de cada um, da sua respiração.

Anne Frank nasceu em Frankfurt, neste dia no ano de 1929 e a sua história é a da coragem, da vontade e da esperança, de quem apenas tendo acabado de chegar vive já os aspectos mais dramáticos com que a natureza humana se ilude na conquista pelo domínio do seu semelhante. As suas fotografias, o seu livro, o seu memorial, o museu onde resistiu com a sua família durante largos meses é um marco para se conhecer o que os sistemas totalitários produzem à humanidade e um exemplo pela coragem, pela dedicação aos que lhe eram próximos.

O museu em Amesterdão oferece-nos um importante recurso com materiais diversos, fotografias, palavras, vídeos com linhas de tempo sobre a história da família Frank e sobre Anne, as suas palavras, a sua coragem que é também a forma de combatermos pela memória os que pretendem esquecer a nobreza de espírito, essencial a qualquer sociedade que se possa considerar digna da humanidade. 

Imagem - Copyright: Museu de Anne Frank (Amesterdão)

Da poesia

"Pois a poesia é aminha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela. ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume de tília e do orégão."


 Sophia, "Arte Poética II", in Obra Poética III, pág. 95

terça-feira, 10 de junho de 2014

Portugal ... entre equilibristas e contorcionistas ...

Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades...

Busque Amor novas artes, novo engenho
«Busque Amor novo artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal tirará o que eu não tenho!

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê».


Julga-me a Gente Toda por Perdido
«Julga-me a gente toda por perdido
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras e outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma».

Luís Vaz de Camões, Busque Amor Novas Artes, Novo Engenho;
Julga-me a Gente Toda por Perdido, in Antologia Poética

Camões e a ideia de um País

«Ao longo de quatrocentos anos, de D. João III a Oliveira Salazar, Portugal criou uma forma mental e uma visão do mundo que se alimentavam exclusivamente da negativização do pensamento oposto (...) O pensador portador da diferença era encarado como inimigo a abater ou a esmagar e o povo - eterno rústico aldeão, alimentado pelas malhas da crendice e da superstição - como massa amorfa e ignorante a iluminar e a converter.» (1)

 Pode um poeta celebrar um País? Notamos acima das circunstâncias a ideia, o valor da construção de uma comunidade? Pode hoje celebrar-se o que tantas vezes se tentou? os portugueses. Pode-se hoje celebrar algum espírito, ou alguma ideia cultural? Comemora-se mais que a idolaria a um poder que ama comemorar-se?

Luís Vaz de Camões, um dos maiores poetas de língua portuguesa morreu a 10 de Junho de 1580. A sua vida foi a procura de uma felicidade, perdida entre a má fortuna e os amores vencidos, mas também o espírito de encontrar com criatividade novos horizontes. A escrita dos Lusíadas deu-lhe a posteridade e um tardio reconhecimento financeiro pela Coroa. Tem sido em diferentes períodos usado como um dos símbolos do Portugal que soube espalhar-se pelo Mundo com encanto e vitalidade.

O Estado Novo, especialista na reconstrução da História para usos políticos, fez do dia 10 de Junho a comemoração de um mundo português, na perspectiva de que a raça própria soube exprimir o seu domínio pelo mundo. A III República tem feito deste dia a celebração de uma comunidade que se espalhou pelo mundo, mas ainda a olhar para esse mar imenso, na procura de uma grandeza. A grandeza que se construiu de Mascate a Goa, de Marrocos a Mombaça, de Diu a Macau, das ilhas atlânticas a Olinda. Hoje serve-nos como memória e  já não nos pode presentear no presente, em cerimónias que nos dão discursos e práticas pouco significativos para o ânimo do país que somos.

Neste mar português, o valor do indivíduo sempre foi determinante para o êxito desta aventura por mares desconhecidos. Celebra-se demasiadas vezes um colectivo que é devedor de uma iniciativa individual, de uma coragem desconhecida dos grandes salões. É esse o grande valor de Camões. As narrativas vividas nos Lusíadas são as experiências de um pensamento que se imaginava feito de muitos homens, onde ainda a descoberta, era o que nos inspirava.

A morte de Camões em 1580 é por isso um sinal do que o Império acabaria por se tornar. Preocupado em dominar e conquistar, já não em conhecer, asfixiado pelo poder central, dominado por uma ideologia de estreitamento cultural, teríamos sinais evidentes desse declínio português. Iniciado pelo determinismo religioso de D. Manuel I e a perseguição aos judeus, a institucionalização da Inquisição com D. João III, até aos marcos significativos da nossa decadência.

Neste dia Camões serve-nos não pela aventura que naturalmente não poderemos repetir, mas sim pelo entusiasmo do valor do indivíduo em moldar novos tempos. E evidentemente que somos herdeiros de um humanismo que importa ser construído por todos, discutido para uma nova perspectiva de um sociedade que saiba integrar no espaço público os valores não apenas do existir, do consumidor apressado, mas também do que se suporta numa visão cultural.

O que Camões nos poderia dar hoje era a ideia essencial de construir uma identidade num mundo em mudança. Para isso são precisas pessoa e valores, algo que não mora nas instituições de governo do País. Nestes tempos difíceis essa reflexão ainda é mais essencial. Construir uma identidade num mundo em profunda mudança. Essa é uma das ais importantes ideias de Luís de Camões. 
Tarefa impossível quando o Poder político caminha num discurso prático contra os cidadãos, não sendo capaz de fornecer os exemplos que poderiam incentivar uma cidadania. Continuamos a não ter o que mais precisamos. Palavras insistentemente vazias e inúteis, onde faltam exemplos e valorização do elemento humanos, de consideração pelas pessoas. Hoje O Dia de Portugal é só uma cerimónia de regime, muito pouco do que são os Portugueses.
 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Leituras - A educação sentimental dos pássaros

"Caio, quase durmo.
Os pássaros voltaram a cantar. Percorro um corredor, ou um rio, umas vezes um corredor, outras um rio. Uma luz escura arrasta-me através dos salões vazios, ilhas que flutuam, noites soltando contra mim os seus insectos alados. Vejo escamas, asas, casas queimadas, e por dentro um assombro de larvas. 
Oiço a voz convulsa dos mortos.
Matei-os eu.
Porque os matei?
Porque podia."

No rio da indiferença que consome os dias tranquilos, na respiração do quotidiano, o que conduz à construção da maldade? Na aprendizagem da dissimulação, valor tão prático, tão substantivo, na realidade política, como iludimos o essencial, a nossa precária sabedoria e nos consumimos na violência? Onde nasce a maldade? Onde se constrõem os demónios?

De "A Educação sentimental dos pássaros" a "O fogo avança", pequenos contos onde a respiração de duas formas de opressão individual, com o poder construído na ilusão da dignidade, do valor humano indiferente, numa ideia de liberdade feita apenas e só para a satisfação de privilégios pessoais.

O mal como a construção sublime, a complexidade benovelente do ser construído na admiração alegre dos que serpenteiam pela obtenção do poder que se impõe pelo lucro, pelo domínio imoral dos outros. A fragmentação da limpidez do bem tomado como incompreensível, onde um circo de personagens perversas se revelam. A guerra civil em Angola dá-nos essa dimensão, dos que acreditam nasta grandeza de construção, nesta aparência de determinação que ilumina o mal. As escamas dos mortos e a dança do siêncio são hoje o triunfo de uma classe de novos ricos. A maldade tem sempre os seus fiéis.

domingo, 8 de junho de 2014

As palavras no real


Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia. 

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento. 

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento.

Sophia, "Iremos juntos sozinhos pela areia", in No Tempo Dividido

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Operação Overlord

Foi há justamente setenta anos que nas praias da Normandia, as forças aliadas desembarcaram, de modo a pôr fim que representou de forma perfeita o mal absoluto, o nazismo. A operação pensada ao longo de dois anos, para derrubar a muralha do Atlântico, foi dirigida por David Eisenhower e Bernard Montgomery colocou no campo das praias de França cerca de cento e cinquenta e dois mil homens. O custo em vidas humanas foi enorme. Mais de cem mil mortos entre civis, forças aliadas e o lado alemão.

Nesta altura, pela sua importância o presidente americano e figuras europeias, com destaque para as inglesas, costumem deslocar-se ao local para relembrar a importância e significado dos que lutaram e perderam a vida nestas praias. Especialmente por parte da América salienta-se sempre muito junto do memorial o significado das acções pessoais e como a perda da consciência e do sentido de humanidade podem conduzir ao fim da vida humana. A grandeza daqueles foi a de realizar algo, com grande perigo pessoal, permitindo que o futuro da Humanidade mudasse. É preciso relembrar o seu exemplo de dignidade sobre a maldade que, todos precisamos de celebrar, para reconstruir a sua memória no próprio presente, contra todo o esueciemento.

São acções que o presente tem esquecido. Lições de humildade e de grandeza, onde o valor de cada pessoa pode contribuir para mudar pela sua acção aquilo que discorda com a nossa humanidade, e a de lutar, acima de qalquer cultura pelo que é digno. São ideias que a Europa esqueceu. A nomenklatura burocrática servida ao imperialismo alemão esqueceu-se da nobreza de espírito, dessa ideia que Thomas Mann pressentiu que a "democracia" esqueceria.

O exemplo daqueles homens deve ensinar-nos a construir e a exigir um caminho de respeito por todos, reconhecendo a História e tomando acções pela real defesa daquilo que há quatro anos Obama chamou "a nossa humanidade partilhada". A Europa não compreende estas palavras, ficando a União Europeia e a sua "inteligensia" fora deste futuro, que é o dos cidadãos, das pessoas, não do mercantilismo imperial de alguns. A Europa chegou a um ponto em que apenas sabe gritar sobre a derrota de sistemas totalitários. Nada sabe sobre como construir um caminho, um mundo de valores. A União europeia encaminha-se para o desastre acumulado de privilégios de uma casta política, que nada resgata à memória, à sua memória. A operação Overlord é para a União Europeia, ainda e só uma arqueologia de cidadania sem substância.
(Imagem, in Magunphotos.com)