domingo, 27 de abril de 2014

O pastor - Madredeus

O Pastor

Ai que ninguém volta
ao que já deixou
ninguém larga a grande roda
ninguém sabe onde é que andou

Ai que ninguém lembra
nem o que sonhou
(e) aquele menino canta
a cantiga do pastor

Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
deixa a alma de vigia
Ao largo
ainda arde
a barca
da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
acordar é que eu não queria.

Memória de Fernão de Magalhães

"A partir de Magalhães, todas as viagens  de exploração  limitaram-se apenas  a reduzir os  limites, a distância e o mistério do mundo." 

A cultura ainda ...

“Andava eu no liceu: no salão nobre
 dos paços do concelho em matosinhos,
 um professor, o óscar lopes, vinha
 mostrar à noite que a literatura
 importa a toda a dignidade humana (…)” - (1)

A corte dos que ocupam os media e circundam o poder estabelecido farão o seu desfile de modéstia por tão bem compreenderem o que é a participação cívica, o que representa a palavra para a construção de uma comunidade, o papel relevante da memória e da cultura.

Vasco Graça Moura é uma dessas expressões de como uma vida pode ser construída com a tradução de clássicos, com a produção de narrativas diversas, de poemas, dos ensaios para melhor compreender o mundo, pois o que um homem e um espírito nascido na ideia renascentista tenta compreender é sempre a dúvida que o conhecimento lhe coloca.

A sociedade que as figuras do poder financeiro, mediático e político estabelecido promovem em sessões diárias de inteligência cósmica é a negação do valor da cultura, do pensamento, da memória, da possibilidade de trazer para linhas novas o que nos disseram Dante, Rilke, Walter Benjamin, Frederico Lorca ou Petrarca. O que os eruditos do pensamento utilitário que abundam nos media nos inudam em bytes de impassividade é a negação deste valor civilizacional essencial.

Muitos escreverão sobre o valor de Vasco Graça Moura como poeta e tradutor. Importa reconhecer-lhe a sua defesa da língua, a sua luta contra a institucionalização de uma estupidez sem explicação. Não sei se o podemos chamar de intelectual, palavra de significado hoje pouco relevante, mas devemos-lhe essa noção de procura do conhecimento, da ideia de que saberemos sempre pouco. A ideia de que somos transmissores temporários de uma cultura, de uma humanidade que devemos passar a outros e ajudar a transformar. O conhecimento da nossa efemeridade é uma forma de nos dedicarmos ao essencial e percebermos sempre com o outro os gestos que nos redimem.

"quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

 tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão." (2)

(1)  “Um senhor de matosinhos”, in Uma Carta no Inverno (1997) 
(2) Soneto do amor e da morte

sábado, 26 de abril de 2014

The day after ... just forty years

«Estamos ainda longe de praticar a democracia». (1)
As sociedades mais saudáveis, capazes de se avaliar nas suas dificuldades e nas suas superações interiorizam aquilo que é o seu percurso histórico. Passaram quarenta anos sobre o 25 de Abril. É importante, indispensável analisá-lo como memória do passado, mas também como elemento essencial da História Contemporânea, em que vivemos.

O movimento dos capitães representou o grande acontecimento da História Contemporânea portuguesa do século XX. A evolução foi imensa em aspectos tão essenciais como o acesso à escolarização, a mortalidade infantil, as condições materiais de vida são incomparáveis. Mas é evidente que se vive, que se sente um imenso desânimo, um ar de fim de regime pela junção de factores muito preocupantes.

Do processo revolucionário não saiu um estado Democrático plenamente erguido em alicerces de soberania na justiça, de coesão social, de valores educativos sólidos. O contrato eleitoral, base de eleição num sistema democrático tem-se tornado irrelevante. Sente-se que qualquer promessa vale, independentemente da sua veracidade, da sua oportunidade e da sua justiça para os dias das pessoas.

A integração europeia deu-lhe uma aparente sustentabilidade económica, alguma formulação jurídica, mas o conteúdo revelou-se limitado. Não temos um verdadeiro espaço público que fundamente ideias. As associações culturais têm pouca influência no arco da governação. Os empresários não assumem projectos de risco e de integração social. A sociedade civil não tem mecanismos para fazer valer os seus direitos de forma plena. Os valores humanistas foram substituídos por uma legião de tecnocratas que apenas admite como valor o aspecto utilitário das acções quotidianas.

Os partidos políticos alimentados por uma visão pouco crítica do País, remando em facilidades de curto prazo, o horizonte da eleição, preocupam-se com a reprodução do poder, sem olhar para a identidade, para as necessidades das pessoas, para o território onde vivem. Sem grande representatividade social, são alimentados por pessoas que acedem aos cargos mais importantes sem terem dado prova das suas ideias, ou de as terem executado em qualquer comunidade.

 O casting feito pelos partidos é imposto à sociedade com regras que a maioria não compreende. É verdade que se ganhou a Liberdade, que não é possível ser preso sem culpa formada, sem a intervenção de um tribunal. É verdade que podemos ler os jornais livremente, adquirir um livro sem restrições. Mas sente-se que podia, deveria ter sido possível criar uma Democracia em que os políticos em vez de proclamarem ideias como quem dá rebuçados, tivessem um plano, uma ideia de País. 

Em cada aniversário de Abril depositam-se umas flores, vêem-se umas imagens, organizam-se uns desfiles, mas nada disso é essencial. O 25 de Abril tem de valer ser recordado pelo que permitiu construir, não pelos frutos amargos que desapareceram. E para isso é preciso construir a memória. É indispensável não apenas apelar ao voto de modo circunstancial, mas ter uma atitude que seja um exemplo para o País. 

Para tal, não basta propor frases vazias ao sabor de circunstâncias, mas olhar com inteligência para aquilo que é a sua identidade. As sociedades não são um mar plano, definido, previsível. O País caminha perigosamente para uma falta de credibilidade das suas instituições, onde os valores parecem uma miragem. Sem eles arriscamos aquilo que Eça dizia há algumas décadas. Existir apenas, «isto é viver, numa civilização, sem verdadeiramente fazer parte dela e do seu desenvolvimento.» (2)
(1) José Gil, Em Busca da Identidade
(2) Eça de Queiroz, O Distrito de Évora citado de Miguel Real, A Morte de Portugal

25 de Abril ... os dias construídos

4o anos de 25 de Abril 

Ricardo Araújo Pereira mais uma vez deu-nos pela voz de uma actriz de grande valor o significado humano, vivido, respirado de um país bloqueado. Em poucos minutos está ali tudo, muito mais que anos de comentadores e de spindoctors alguma vez saberão explicar
(Acesso através do clique na imagem).

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Abril ... as brumas do futuro




Sim, foi assim que a minha mão
Surgiu de entre o silêncio obscuro
E com cuidado, guardou lugar
À flor da Primavera e a tudo


Manhã de Abril
E um gesto puro
Coincidiu com a multidão
Que tudo esperava e descobriu
Que a razão de um povo inteiro
Leva tempo a construir


Ficámos nós Só a pensar Se o gesto fora bem seguro

Ficámos nós A hesitar
Por entre as brumas do futuro


A outra acção prudente
Que termo dava
À solidão da gente
Que deseperava
Na calada e fria noite
De uma terra inconsolável
Adormeci
Com a sensação
Que tinhamos mudado o mundo
Na madrugada
A multidão
Gritava os sonhos mais profundos


Mas além disso
Um outro breve início
Deixou palavras de ordem
Nos muros da cidade
Quebrando as leis do medo
Foi mostrando os caminhos
E a cada um a voz
Que a voz de cada era
A sua voz
A sua voz - "As brumas do futuro" - Madredeus (do filme - Capitães de Abril)

Leituras - Uma escuridão bonita

 "o escuro às vezes não é falta de luz
mas a presença de um sonho..." - velho muito velho que inventa as palavras

“a beleza às vezes é um lugar

onde o olhar já sabe aquilo que não quer esquecer...” - velha muito velha que destrói as palavras

"O silêncio é uma esteira onde nos podemos deitar.

Esteira de poeira cósmica, se eu olhar de novo o céu escuro. Esse azul do céu me lembra o chão do mar. Um mar, afinal, é só um deserto molhado, em vez de homens e camelos, tem peixes e canoas a passear nele. O deserto é parecido com o mar, o mar é parecido com o universo cheio de estrelas pirilampas.

O deserto podia caber no peito do mar, o mar podia caber no corpo do universo, o universo só pode caber no coração das pessoas. A mão dela estava perto da minha. Senti uma comichão de ausência na proximidade daquele calor, sabia que os dedos dela estavam ali, e continuava a falar para não saber, no coração, que todo o meu corpo pedia uma carícia calada.

– Achas que pode caber o quê, no coração das pessoas?

– Muitas coisas. Um poema, uma recordação, um cheiro de infância, um «desejo de estrelas»…

– Como é um «desejo de estrelas»?
– É olhar para uma estrela e desejar uma coisa.

Num susto quase pouco, ela fez-me uma festinha lenta na mão. Ternura e gesto de amansamento.

– Vou-te contar um segredo – ela começou.

– Ainda conta – perdi o pirilampo de vista.

– Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas…

– Sim?

– É porque passou um anjo e lhes roubou a voz.

– Tu acreditas em anjos?

– Tu não acreditas em silêncios?
Fosse de esquecimento ou não, a mão dela tinha ficado ancorada na minha, concha e búzio nesse silêncio inventado pelos anjos".
Ondjaki, Uma escuridão bonita
Ilustrações de António Jorge Gonçalves
(um livro de uma beleza poética imensa).

Na alvorada ... das possibilidades

Promessa

És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante. (1)

Vinte e cinco de Abril de 1974 é uma data em que se recorda o movimento de um grupo de militares que decidiram colocar fim num regime cinzento e velho, espelho de um País pequeno. Movimento inaugurador de uma esperança em dias novos, promissores de outros sorrisos.

Neste movimento que procurou encerrar um regime medíocre, construtor de um País analfabeto onde o presente era uma prisão de todos os dias, alguém sonhou mudar as possibilidades, transformar o «estado das coisas». Alguém sonhou ser possível restaurar a dignidade das pessoas, permitir a construção de uma comunidade mais justa.

Alguém imaginou lutar sem saber o que perdia, apenas preocupado com a determinação, a força do espírito em contribuir para mudar o horizonte de vida. Sem plano para usufruir do seu gesto, ingenuamente, digamos quase romanticamnete quis ser apenas o que serve uma causa, a da liberdade.

Alguém sem qualquer ideologia, soube até quando lidava com Ditadores ser nobre e gentil, numa atitude superior, de quem luta apenas contra o vazio das ideias e a violência da opressão. Alguém que depois de executar a tarefa, resposta a liberdade, sai com um sorriso não querendo quaiquer privilégios. Alguém que sabia que não pertence à espuma dos dias em que o carreirismo emergiria contra a sua sublime dádiva.

Alguém que sabia que «revolução» é essa luta por «um dia inicial e limpo» onde se constrói o próprio tempo, como o expressou Sophia. Neste dia de gestos repetidos, de imagens em que o passado parece ser ainda um crédito para um presente por construir, recordemos a coragem do Ser de um homem muito especial.

No vinte e cinco de Abril, deixemos-lhe um agradecimento vivo. E saibamos compreender o gesto maior de fazer, de lutar, de ser só porque isso é o que está certo, independentemente das consequências. Nesta data um aplauso vivo a Salgueiro Maia. Ele compreendeu de uma forma superior o que em quarenta anos não percebemos, o 25 de Abril era uma oferta para uma nova relação connosco próprios, o dia branco de possibilidades e não só e apenas o arrumar de ideias fragmentadas sem solidariedade no olhar.
 (1) Sophia, «Promessa», in Coral

Os sons e as palavras de Abril


25 de Abril .... A iconografia de um nascimento


"(...)Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
Para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua.

Que o poema faça um poeta de cada
Funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo  acorde no lusíada
A saudade de novo o desejo de achar.

Que o poema diga o que é preciso
que chegue disfarçado ao pé de ti
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
E que o poema diga: o longe é aqui".

Manuel Alegre, "Poearma", in Poemas de Abril

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Entre os livros ... com Abril


(Com a memória do Dia do Livro e nas vésperas do que foi uma imensa esperança, um poema de Manuel Alegre relembrando a audácia do que já fomos capazes de sentir).


«É possível falar sem um nó na garganta
É possível amar sem que me venham proibir
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta

É possível andar sem olhar para o chão
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
Se te apetece gritar não, grita comigo: não.

É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre». (1)

(1) Manuel Alegre, O Canto e as Armas
Imagens, Maria Paz Silva / Fernanda Fragateiro