sábado, 29 de junho de 2013

Adormecer a noite

" (...)
all the love
all the love inside them
got locked away
for its own protection
for so long
became just a memory

and all the love
all the love inside them
twisted into hate
they have no choice to
pass on the fear
pass on the pain
they pour it down into the child
into the man
into the world
that learned to love
the gun that's in his hand" (All The love - Tindersticks)

quinta-feira, 27 de junho de 2013

o tempo

O tempo passa ? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.


Carlos Drummond de Andrade; Antologia

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Nos sonhos de Peter Pan

Houve nele algo de intemporal. As múltiplas personagens, no desencontro de uma infância que parece lhe ter fugido na construção de um sucesso precoce. O exagero da imagem para o sucesso que o tornaria refém desse mito de eterna juventude que espera nunca crescer, numa eternidade construída sempre jovem.

Protagonizou imensa controvérsia, numa vida em que a Terra do Nunca e uma eterna rebeldia nos faz recordar esse livro extraordinário, de Barrie, Peter Pan. O eterno ícone, que parece não ter idade, onde aventuras múltiplas constroem um imaginário onde as regras se comprometem a uma vontade de mudança. E onde ainda se afirma a procura pela graça única das crianças, por esse mundo onde a imaginação parece permitir construir um mundo próprio.

Chamou-se Michael Jackson. Partiu para essa Terra, onde a memória e a imaginação não têm cores, há já quatro anos e pela diferença que protagonizou merece esta palavra de lembrança que aqui deixamos.

Os sonhos... lembrando o Bernardo


E há sempre sonhos
sonhos doces, tão mágicos, tão desejáveis
mas tão longe do que somos e temos.

Há sempre outros
sempre esses outros que nos avaliam
que nos fazem corar, sorrir, amar, chorar.

E há sempre nós...
nós bonitos, nós feios,
nós sozinhos, nós amados...

Quem me dera que houvesse
sempre uma imagem de nós nos
sonhos dos outros!"

Bernardo Sassetti escreveu estas palavras e estes sons a pensar na Rita. Nós, mesmo no efémero movimento dos dias pensamos nele, muito por essa busca de perfeição de escutar o silêncio com que construímos os sonhos que nos movem. 


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Adormecer a noite

"I feel like I'm in heaven when your with me
I Know that I'm heaven when you smile"

                                         Tom Waits - Little Trip to Heaven

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Força Brasil!

(...)
Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de "desinventar"
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria

Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa
Apesar de você (...)

Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente... - Chico, Apesar de Você

A destruição do Tua ...



A Unesco numa decisão que todos compreenderão pela sua imparcialidade e sabedoria decidiu que a construção de uma barragem não causará problemas de maior a um conjunto humano, natural e patrimonial. A arrogância dos gestos impensáveis, nos que bem vestidos usam palavras vazias já se integrou em instituições que eram uma reserva de justiça pela memória das culturas. A bondade dos que apenas procuram respirar e velar por um património autêntico não tem quem os defenda. As promessas de modernidade continuarão a ser oferecidas pelos feiticeiros que nas generosas empresas da capital construirão em sorrisos encantados de modernidade a destruição de culturas. O capital mergulha a sua nobreza moral em largas avenidas de sucesso.

Imagem Almadotua (o que foi o sonho de uma respiração de beleza)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Adormecer a noite


Uma carta ao Miguel ... sobre os professores

Há anos que  o leio, e sempre achei que exercia o papel que numa sociedade aberta carecia, de muitas mais vozes. Isto é a participação num espaço público de ideias, onde a literatura, as artes, a ciência, a cultura poderiam ajudar a transformar uma sociedade, a imaginar uma cidade de possíveis. Admiro a sua identidade por uma ideia de liberdade que nasce com um espírito livre e com o movimento que todas as imagens nos permitem fazer. Os seus livros têm-nos dado tempos diferentes no desencontro que algumas das suas personagens, referências de tempos históricos, têm vivido no quotidiano das suas existências.

Se o que somos é o que lemos, o que vivemos e convivemos, o seu é muito daquilo que também nos fascina, que são as palavras de Sophia, a sua procura pela depuração das ideias e da linguagem, sempre com  a ideia de saber olhar. Um dia, há muitos anos, por Lisboa, no decurso de uma campanha eleitoral, num cinema velho e ainda com ilusões na respiração, ouvi-a a dizer estas palavras "A Política é um capítulo da moral" e é por esta dramática ausência de consciência no espaço público que o convido a reflectir sobre as suas palavras, sobre os professores.

Também cresci numa aldeia abandonada na serra, em Trás-os-Montes e não me parece aceitável que se procure na memória, no esforço e na pobreza seculares qualquer motivo para o que hoje ou não fazemos ou o progresso realizado em contornos contraditórios com o que poderia ser o presente. A História não nos serve para isso. Mas o exemplo é útil, porque ele dá-nos algo que o seu artigo carece. Não é possível falar da educação sem enquadramento sociológico e a escola que existe desde o 25 de Abril foi uma formulação ideológica dos partidos políticos, não dos professores. Não se  pode falar dos professores, sem perceber os ensaios de romantismo que foi o padrão geral,  o populismo da classe política ou o abandono das universidades ao mundo real.

Ouve-se frequentemente falar nas suas crónicas de que todos os professores são contra a avaliação. e que todos pretendem ser considerados excelentes, defendo-se como corporação. As corporações em Portugal são as que rodeiam o poder político e económico. A avaliação montada desde os dias iluminados pelo governo socialista do senhor engenheiro Sócrates, foi um mecanismo de controle de poder, não assegurava qualquer verificação de conhecimentos e de desempenho. Uma escola, um sistema educativo só pode avaliar, depois de reconhecer o papel do professor na transformação da sociedade. E é por isso, por silêncio que as suas palavras que outros também repetem que os resultados e os gastos comparativos com a Finlândia mostram a incompetência dos professores portugueses, é uma imensa e profunda inverdade. Para conhecer a simplicidade que não sabemos praticar, mas que importa conhecer no concreto.

Se consultar o funcionamento, a gestão das escolas, os espaços e a sua apresentação, a maleabilidade das opções, a cumplicidade das estruturas intermédias de tutela e o sentido de responsabilidade na Finlândia verá como o seu texto tem em muitos aspectos uma limitada abordagem. 
O que os professores, os que fizeram greve aos exames quiseram mostrar foi o canto de cisne de uma sociedade onde a diferença ainda importa, onde as dificuldades podem ser compensadas com partilha e apoio. Foi a tentativa de mostrar o perigo de criar uma sociedade em que as pessoas nada valem, onde qualquer poder político sem legitimidade de soberania pode enriquecer uma minoria, por opção ideológica e vazio cultural e civilizacional das instituições.

Perguntava há alguns dias, se um lunático dominado pelo fundamentalismo podia destruir um País com oito séculos de História? A greve dos professores foi também isso, porque e embora os sindicatos não o expliquem, não é só uma questão de horários. É o combate à destruição de um sentido público de cidadania, à subversão da natureza humana de uma a participação social. Foi esse o sentido daqueles, pelo menos alguns muitos, que não tendo assinado a folha de presenças, estiveram no próprio dia a apoiar alunos para outros exames de outras disciplinas.

A realidade é mais profunda e se aspiramos a uma sociedade participativa não podemos apenas considerar a indignação, entre as fronteiras incolores do sono. A ausência de exemplo e de justeza na administração do espaço público, o enriquecimento ilícito, entre tantas histórias leva-nos a alguns versos que deve conhecer: "novos ratos procuram a avidez antiga".

(Imagem, uma escola da Finlândia)

O Comissário


Acreditámos um dia que seria possível ter uma construção europeia, que se tornasse a pátria da afirmação da liberdade capaz de devolver aos cidadões a esperança que os seus antepassados ajudaram a construir. Imaginando-se um bloco económico e aspirando a um sonho irreal de se constituir uns Estados Unidos da América, a Europa abandonou o pragmatismo de defesa dos direitos concretos dos cidadãos e dos indivíduos.

A Europa preocupa-se imenso, infinitamente com o modo como os castores fazem os seus ninhos, como as focas mergulham no Árctico, mas é incapaz de dicutir com os seus cidadãos a realidade concreta, a vida quotidiana de milhões. É incapaz de pensar o modo de concorrer com a emergência de novas economias, apenas soletrando direitos e raramente os afirmando. A Europa não tem dimensão política e trata a História como uma estranha.

A Europa tornou-se uma inutilidade. A sua postura na invasão russa da Geórgia limitou-se a garantir água quente no conforto das suas casas. Os ideais já não são suportáveis neste tempo de economia política, onde o dinheiro e o interesse económico subjugam tudo o resto. A Europa quer criar um estado político do Atlântico aos Urais e ao Mar Negro mas não sabe defender com energia e com diplomacia os que nesses cantos a leste e a sudoeste querem ter direito aos valores europeus.

A Europa vive uma crise económica profundíssima ao nível do crescimento económico e da sua realidade social. Ouvimos alguma ideia, alguma estratégia da actual Comissão para atenuar as dificuldades, para criar oportunidades de desenvolvimento? Um silêncio que soluça apenas as mais ineficazes banalidades do politicamente correcto.

O Presidente da Comissão Europeia deu-nos ontem mais um exemplo do elevado valor com que a Comissão Europeia olha para a civilização europeia e a sua memória. Usando a terminologia dos seus tempos em que se achava revolucionário, imagina que é a Torre de Babel o paradigma da cultura universal. O srº comissário desconhece que a cultura é uma conversação entre povos e que é na voz individual que atinge a universalidade da nossa finitude. Com esta Comissão Europeia não se vislumbrou nenhuma atitude ou ideia para com essa missão da Europa, nem na defesa do seu património civilizacional, nem do seu futuro como sociedade de pessoas. A cultura francesa estará sempre muito acima dos suspiros ideológicos do Srº Barroso.

A decadência da Europa é, antes de mais consequência de lideranças medíocres. Fruto da ideia de que o futuro está conquistado pela genialidade das instituições europeias, que dispensam os próprios cidadãos de ter opinião. Os arranjos políticos nos grandes salões não garantem nem a tranquilidade no presente, nem a manutenção do conforto material. Eles dependem de líderes substantivos que a Europa não pretende ter. 

A centralidade da globalização e a sua dependência de uma minoria sentada em privilégios descura a universalidade de culturas e é um instrumento para o atraso civilizacional que a União europeia corporiza. À semelhança dos dias perdidos em que vendeu revoluções de encomenda, assinala hoje um vazio cultural que se entrega sem a alma que importava incentivar - a do enriquecimento cultural de uma civilização.

Um dia de greve...


Um dia de Greve
Chego à escola cedo. Diz-se ser este um dia de greve. Levo um livro sobre A Casa Amarela e o encontro entre Gauguin e Van Goh. Percebem-se apenas desencontros. Os alunos fizeram os exames. Assiste-se a uma adesão esmagadora. Pouco relevante. As notícias chegam. Também em muitas cidades muitos se indignaram. E há aqui um cansaço.O da ideologia, a da imoral política que reconhece a lei apenas em proveito próprio. Chove ao fim da tarde. Mais um dia cinzento. Pela noite, o mesmo espectáculo de sempre. Os eleitos para reflectirem sobre o dia, fazem o discurso de sempre. Os professores grevistas são uns irresponsáveis. Na Democracia, os direitos são inalienáveis, só os dos alunos. As greves só são justas se forem a brincar, como quando se do sai do sono, quando as consciências estão a dormir. Até o representante do bispo de Roma fala em consultar a consciência, mas, não de todos. É por isso que somos esta nobreza de País, onde tudo é aceitável, onde as instituições deixam o cidadão à organização feroz dos interesses privados. O comboio das autárquicas e dos candidatos dos partidos do poder esclarecido e votado dá-nos a luz da condução das reais possibilidades de uma sociedade digna, capaz de existir fora do espectáculo neoliberal. Resta-nos estas vozes, esta conversão da cultura finita, que a arte e a cultura nos deixam, as dispensáveis preciosidades na voz dos que nos media todos os dias nos esclarecem da nosso mitológica memória.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Adormecer a noite...


Memória de Vieira da Silva...

Maria Helena não tem a simpatia pronta, por isso as entrevistas que dá embatem contra uma superfície lisa, um espelho onde tremem reflexos, onde se procuram teoremas. O repórter tenta desdobrá-la como um pano cuidadosamente enrolado, e sucedem-se os espaços neutros e, de certa maneira, as evasivas. Ela não confia nesse intuito de divulgação, porque o espírito humano não se divulga. A paz e o sofrimento não se divulgam; são fluidos depois de usados, e, no momento em que se praticam, não têm rosto e, assim, não se podem descrever. 

Por isso, para ajuizar da Vieira da Silva, para medir os seus passos no mundo, as entrevistas que ela dá não me servem de nada. É verdade que os nossos encontros se passam mais ou menos como as entrevistas. Não é uma mulher íntima, é uma mulher sócia da emoção e para quem as paixões significaram talvez uma cumplicidade com uma outra realidade que não está presente. Não Deus, porque se confessa ateia ou, pelo menos, anti-clerical. Mas o Deus dos ateus não é menos Deus do que qualquer outro. Esta breve malícia para com a independência física e intelectual das pessoas parece o sintoma duma qualquer profecia, dessas que eu amo, um pouco ameaçadoras, sim, é isso: um pouco como uma ária retumbante, à Verdi, que exige coros amplos e sonoríssimos."

(...)"Todas as vezes em que procurei Maria Helena porque eu estivesse doente, ou desanimada (como foi o caso, em 1965, de eu pensar em deixar o País), aí deparei com a verdadeira presença que não se distrai, não vagueia, não ilude. Maria Helena reage às coisas concretas e essenciais com uma prontidão admirável.

É raro que as pessoas tenham esse respeito pelo essencial. Costumam escapar ao essencial e ocupar-se pormenorizadamente do acessório. E a vida parece nelas um tumulto de confabulações e artes, sem nada de resistente ou de culto. Aproximamo-nos da Maria Helena e ela pode olhar-nos como se fôssemos um objecto mais ou menos preciso mas que não atrai a curiosidade nem o afecto. Mas se tocamos esse registo do essencial, se houver em nós um risco, um alarme, ela actua e torna-se de repente incansável; algo mais do que amizade e incorrupção da aliança humana surge, como uma flor."

A multiplicidade do Eu...

"Ainda assim sou alguém. /Sou o Descobridor da Natureza (...)

Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-próprio."

(Alberto Caeiro, "XLVI", Poesias - Heterónimos )

O apelido de Pessoa remete-nos para o teatro grego, as máscaras com que cada um pode enfrentar as dificuldades, os perigos, os desastres que envolvem a sociedade humana e que persistem acima de nós. Pessoa transporta-nos para essa noção de diversidade, de multiplicidade do individual. O poeta de que aqui falamos é uma figura marcante da cultura europeia e mundial. Representa a procura para num mundo colectivo, exprimir a voz do indivíduo, do seu olhar e das suas possibilidades. Pessoa foi influenciado por um conjunto de circunstâncias, as suas, a do seu tempo, que lhe criou um ambiente histórico onde já se determinavam as dificuldades do Portugal Contemporâneo. 

A saber, O Ultimatum inglês, a decadência da monarquia, as dificuldades de afirmação da República, a instabilidade política e social, os acontecimentos trágicos à volta de Sidónio Pais. A confirmação de um regime onde a dignidade do ser não existia assegurou-lhe um Portugal cinzento, sem visão, nem futuro. Pessoa soube criar uma poética que respondia à multiplicidade individual, oferendo-nos a dimensão moderna, universal do homem como medida de realização de um todo. Afinal o que pode ser a vida? Neste caminho em contínua aprendizagem que dimensão nos pode transportar para uma felicidade mais próxima da respiração de cada um? Um trajecto baseado em sensações, nas percepções que por si nos dão a materialidade do mundo, como em Alberto Caeiro, ou o modernismo tecnológico do mundo de Álvaro Campos, ou os constantes valores culturais da memória de Ricardo Reis?

Afinal não são os heterónimos diferentes possibilidades de olhar para a afirmação do género humano nessa aventura que é viver? Em todo este complexo modo de ser, Pessoa afirmou-nos que é pela força das ideias que o País poderá ter a sua única possibilidade de se afirmar no mundo desenvolvido. A Mensagem, mais do que um relato de feitos do passado transporta-nos para essa ideia de um Quinto Império em que Portugal para ser autónomo, diferente, melhor, só o pode concretizar se for autêntico, se souber assumir a sua verdadeira dimensão. Pessoa afirmou-se modernista pela sua tentativa de transformar o futuro do País pelas ideias, pela arte, pela cultura, no sentido de cada indivíduo poder participar na construção de uma comunidade. Quantos que governaram este País, inclusive no presente, se esqueceram deste simples princípio? 

Pessoa é um criador universal, porque soube criar as diversas possibilidades do indivíduo, a sua multiplicidade onde se encontram inscritos, os valores humanos. Afinal o que poderemos ser em cada dia, reconstruindo o futuro quotidianamente, é uma das suas grandes ideias. Partindo de uma experiência individual, as suas palavras reforçam a nossa humanidade, como valor universal. Só os homens geniais conseguem acima da espuma dos dias, verificar o movimento mais profundo e compreender como poderemos ser mais dignos como País, nas palavras de Almada. Existir é pouco para uma dimensão mais consciente da vida. A genialidade de Pessoa é essa. A de revelar a necessidade de quebrar a incerteza que reina nestas praias em sucessivas gerações. Mariano Deida afirmou há alguns anos, que o poeta de autopsicografia inventou a própria literatura, no sentido não de ter criado palavras novas, mas de nos revelar dimensões novas ao sentido humano.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A Casa Desmedida V

"Com o passar dos anos, os nossos serões iam mudando. Na adolescência, passei horas intermináveis na galeria do andar de cima a revistar os armários de livros.Lia de tudo mas sobretudo uns romances ultra-romanescos que tinham pertencido à juventude das minhas tias. Eram em francês, traduzidos do alemão, e passavam-se em castelos da Turíngia ou da Baviera e as heroínas tinham sempre uns cabelos, ora loiros, ora pretos, com maravilhosos penteados entrançados e com pérolas e diamantes, vestidos flutuantes paixões cheias de enredos, segredos e desentendimentos e deslizavam em longínquos espelhos cercados por enormes e profundas florestas sussurrantes.

Do alto da galeria olhávamos cá para baixo, para o grande quadrado do átrio quase sempre vazio todas as mesas e cadeiras e respetivas pessoas estavam distribuídas pelas galerias que o cercavam, cobertas pelo soalho das galerias do primeiro andar - onde eu procurava livros e me debruçava para ver o que se passava em baixo. No quadrado liso do átrio só se viam as longas tábuas e4nceradas do chão, as quatro colunas de mármore que suportavem nos cantos o peso das galerias, e, à frente de cada uma, os grandes pajens de bronze cujo braço direito erguia uma mtocha com campânulas de vidro baço em forma de chamas.

E além do despovoado o átrio não tinha propriamente teto, o seu espaço subia até ao cimo da casa apenas coberto pela enorme clarabóia de vidro do telhado que, durante o dia, derramava cá para baixo uma luz longínqua, espaçosa e pairante. Este quadrado desabitado no meio da casa tinha algo de teatro, de trágico, e terrível. Só às vezes as crianças o atravessavam - mas a correr. No entanto não havia nenhuma proibição explícita, nenhum medo consciente. Só uma espécie de acordo consciente.

Na minha adolescência algumas vezes - raríssimas - a meio da tarde - quando os membros da família saíam ou estavam retirados do seu quarto e o pessoal se entretinha na larga varanda das traseiras ou para os aldos da copa e da cozinha e quando a luz coada e cismadora da clarabóia convidava a todas as divagações - ousei atravessar o vazio e dançar sozinha no meio do átrio.

[Com a recuperação da casa Andersen, integrada no jardim Botânico do Porto, algumas transformações foram realizadas. A decoração na imagem relaciona-se com a exposição em 2010 sobre Darwin]


(Originais integrados na exposição da Biblioteca Nacional e disponíveis a todos a partir de 2016) 

Luís Vaz de Camões

No Mundo quis o Tempo que se achasse

«No Mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha;
E, por experimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se experimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho».

Luís Vaz de Camões,
No Mundo quis que o Tempo que se Achasse,
 in Antologia Poética

sábado, 8 de junho de 2013

A Casa Desmedida IV

Ao domingo era obrigatório jantar com a família, um jantar compridíssimo,numa mesa compridíssima. Na cabeceira, estava sentada a minha Avó, já doentíssima e que não comia nada. Nós as crianças ficávamos no outro topo da mesa e aproveitando a distracção dos adultos só comíamos o que nos apetecia. No meio da mesa a todo o comprimento havia maravilhosas compoteiras cheias de frutos secos, frutas cristalizadas e doce de ovos.

Nós começávamos o jantar por aí. Eu comia sobretudo alperces cristalizados e avelãs. Outros especializavam-se em queijinhos de ovos ou nozes ou passas. Deixávamos a sopa em meio e pouco nos interessávamos pelo primeiro prato e pela carne. Mas à sobremesa fazíamos fabulosos festins de pudim de maçãs ou castanhas com natas ou tarte de morangos ou framboesas, ou bolo de chocolate, conforme as estações. Às vezes quando nos servíamos demais o criado dava-nos uma cotovelada.

Também ríamos imenso no topo da mesa - e também nos maçávamos um tanto, fartos de estar sentados e fartos de fartura. Quando finalmente nos levantávamos e os adultos se sentavam nos cantos do átrio fugíamos para os quatro cantos da casa: ou para a sala de jogos bonde fazíamos castelos de cartas, construções feéricas com as pedras de Majong, ou para o bilhar onde os mais velhos tentavam jogar com os tacos e os mais novos jogavam à mão, fazendo rolar as bolas de marfim brancas e vermelhas até aos buracos do canto, em diagonal pela mesa fora, ou jogávamos às escondidas em salas desertas. 

(Originais integrados na exposição da Biblioteca Nacional e disponíveis a todos a partir de 2016)

Ler é ... No bairro dos livros


sábado, 1 de junho de 2013

Adormecer a noite


I read the news today, oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall.
I'd love to turn you on.

The Beatles, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band 
(Há cinquenta e um anos pelos sonhos imaginados) 

As crianças...


Hoje comemora-se o Dia Mundial da Criança. É uma data importante. Deve ser assinalada. A oportunidade do tema é por demais evidente. Num mundo em mudança a criança também tem sido alvo de transformações pelo ambiente social em mutação. O mundo contemporâneo, apesar dos seus progressos tecnológicos continua a oferecer ambientes e atmosferas preocupantes.
As dificuldades, as violações, a incompreensão e o abandono, a pobreza, a fome, a doença. Falar disto e já ficamos embaraçados pelo quadro, pelas dimensões. Mas importa falar. E não é fácil. As comemorações oficiais parecem pouco significativas. É importante que se fale sobre esse tempo, que alguém chamou um «país diferente» (1), habitado pelo mistério e pela fantasia.
A criança tem em si o melhor que a Humanidade pode usufruir. A criança nasce com a capacidade de apreciar o que a envolve e de contemplar o mundo com curiosidade. Constrói o mundo numa sequência de eternas perguntas onde reconstrói o seu tempo numa dimensão inexistente para os adultos. Olha para o mundo com curiosidade e não tem ainda a consciência do crescimento e por isso as suas respostas procuram encontrar um tempo mágico.
A criança é ainda um espaço de entusiasmo para os adultos, pois conduz-nos às nossas frágeis memórias de infância. Esta difícil viagem conduz-nos ao presente, quando olhamos para as crianças que estão perto de nós e procurarmos ter ideias sobre os que elas podem ser. E no entanto todos os dias ouvimos histórias arrepiantes com crianças. Parecem inacreditáveis. Vindas de territórios de fantasmas. Como entender e viver numa sociedade onde a rua já é um perigo, onde os desconhecidos, são mais do que não conhecidos, podendo ser concretos perigos à solta. As ameaças são muitas. As notícias comprovam-no insistentemente.
E no entanto, o conforto e a preocupação com as necessidades das crianças é ainda recente. Ela apenas existe há pouco mais de cem anos. E já perdemos esse conforto. As opções educativas de relegar o contacto directo, o espaço da brincadeira para a espaço virtual, a adopção de múltiplas linguagens, como se o Universo fosse para conquistar e não para desfrutar ameaça esta tranquilidade. Os dias carregados de tarefas, como se fossem operários do conhecimento, desde as mais tenras idades levaria qualquer bom senso a repensá-las. Mas como em muitos contextos, continua-se o que se sabe ser um desastre.
A Literatura tem com os seus múltiplos heróis, De Peter Pan a Alice, de Tom Sawyer a Pinóquio, tentado contribuir, para que partindo de universos próprios ajude a construir espaços de imaginação que darão a novas gerações de crianças e também aos adultos uma perspectiva de crescimento, para novos tempos. Tempos, onde a fantasia, o encanto e a beleza permitam ainda acreditar que há sempre dias perfeitos. Os da infância. Certamente que eles garantirão futuros mais encantados.

(1) - Helena Vasconcelos, A Infância é Um Território Desconhecido

Dia Mundial da Criança




Em louvor das crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente  sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados - a tais regressos se chama, ás vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.

A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais - a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Eles não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, domo disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis - elas têm o peito aberto ás maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.

O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.

Eugénio de Andrade, in Rosto Precário, (Via Facebook Page - Profº Júlio Machado Vaz)