Bater nos gregos tornou-se uma
espécie de desporto nacional. Tem várias versões, uma é bater no Syriza, outra
é bater nos gregos propriamente ditos e na Grécia como país. As duas coisas
estão relacionadas, bate-se na Grécia porque o Syriza resultou num incómodo e,
mesmo que o Syriza morda o pó das suas propostas, – que é o objectivo disto
tudo, – o mal-estar que existe na Europa é uma pedra no orgulhoso caminho
imperial do Partido Popular Europeu, partido de Merkel, Passos e Rajoy e nos
socialistas colaboracionistas que são quase todos que os acolitam. É isto a que
hoje se chama “Europa”.
Se não fosse sinal de coisas mais
profundas, e péssimas, seria um pouco ridículo que nós portugueses nos
arrogássemos agora o direito moral de bater nos gregos. Somos mesmo um belo
exemplo! Ah! Fizemos o “trabalho de casa” e isso dá-nos a autoridade moral,
“sacrificamo-nos” para ter agora esta gloriosa “recuperação” e os gregos não,
Passos Coelho dixit. Para além de estar certamente a falar para a Nova
Democracia e para o Pasok e não para o Syriza, o balanço do “ajustamento” grego
foi devastador para a economia e para a sociedade. Porquê? Nem uma palavra.
Ninguém fala da “herança” do Syriza, recebida em princípios de 2015, das mãos
de dois partidos da aliança dos “ajustadores”, a Nova Democracia irmã da CDU,
do PP espanhol e do PSD e do CDS português, que governou a Grécia com a
eficácia que conhecemos e pelo PASOK, irmão do PS, que a co-governou. Eram
esses que a “Europa” queria que ganhassem as eleições.
Só que os gregos “não fizeram o
trabalho de casa”… e por isso tem que ser punidos. Caia o Syriza na lama, e
venha um qualquer outro governo dos amigos e ver-se-á como muita coisa que é
negada ao Syriza será dada de bandeja ao senhor Samaras e os seus aliados. O
problema não é o pagamento aos credores, não é a “violação das regras
europeias” (quais?), não é uma esforçada dedicação pela “recuperação” da
Grécia, é apenas e só político: não há alternativa, não pode haver alternativa,
ninguém permitirá nesta “Europa” nenhuma alternativa que confronte o poder dos
partidos do PPE e seus gnomos de serviço socialista, porque isso fragiliza
aquilo que para eles é a Europa.
A ideia de que a Grécia não é um
Estado ou que é um “país falhado” é um absurdo. A julgar por esses critérios
muitos países da Europa não são Estados, a começar pelo “estado espanhol” aqui
ao lado e a acabar nalgumas construções de engenharia política ficcional que a
Europa ajudou a criar nos Balcãs, seja o Kosovo, seja mesmo a bizarra FYROM. É
evidente que a Grécia não é a Alemanha, mas Portugal também não é. A Grécia não
é a França, mas vá-se à Córsega perguntar pela França, ou mesmo às zonas
dialectais do alemão na Alsácia. Ou então a esses territórios muito especiais
da União Europeia, sim da União Europeia, que são por exemplo a Reunião e
Guadalupe, “departamentos franceses do ultramar”.
A Grécia é a Grécia, muito mais
parecida com Portugal naquilo é negativo que os que hoje lhe deitam pedras
escondem, e bastante menos parecida com Portugal, numa consciência nacional da
soberania, que perdemos de todo. No dia da vitória do Syriza, o que mais me
alegrou, sim alegrou, como penso aconteceu a muita gente, à esquerda e à
direita, não foi que muitos gregos tenham votado num “partido radical” ou num
programa radical, ou o destino do Syriza, mas sim o facto de que votaram pela
dignidade do seu pais, num desafio a esta “Europa” que agora os quer punir pelo
arrojo e insolência. Escrevi na altura e reafirmo que mais importante do que a
motivação de acabar com a austeridade, foi o sentimento de que a Grécia não
podia ser governada por uma espécie de tecnocratas a actuar como “cobradores de
fraque” em nome da Alemanha. Por isso, mais grave do que o esmagamento do
Syriza, que a actual “Europa” pode fazer como se vê, é o sinal muito
preocupante para todos os que querem viver num país livre e independente em que
o voto para o parlamento ainda significa alguma coisa. Nisso, os gregos deram
uma enorme lição aos nossos colaboracionistas de serviço, que andam de
bandeirinha na lapela.
Voltemos ao não-pais. A Grécia é
um país muito mais consistente na sua história recente do que muitos países
europeus, principalmente do Centro e Leste da Europa. Tem dois factores
fortíssimos de identidade nacional, a religião ortodoxa e a recusa do “turco”.
E foi “feita” por eles. Vão perguntar ao fantasma de Hitler o que ele disse da
Grécia quando a invadiu e não disse de nenhum outro país e vão perguntar aos
ingleses que apoiaram os resistentes gregos, duros, ferozes e muitos deles,
como em Creta, “bandidos da montanha”. Sem Estado.
Esta identidade nacional dá para
o mal e para o bem, como de costume, mas existe. Muitas aventuras militares e
políticas resultaram dessa forte identidade e da relação mítica e simbólica com
o passado, como seja a invasão da Anatólia numa Turquia em crise pós-otomana
para reconstituir a Grande Grécia clássica e bizantina, ou as reivindicações
sobre o Epiro albanês, ou mesmo a pressão contra a existência da Macedónia como
estado. A aventura de Venizelos e a Megali Idea foi uma das grandes tragédias
do século XX, apoiada irresponsavelmente pelos ingleses, mas mostram como é
ligeiro apresentar a Grécia como um “não país”, quando nesses anos as poucas
cidades “civilizadas” nessa parte do mundo não eram Atenas, mas Salónica e
Esmirna. Esmirna, incendida pelos turcos e Salónica purgada dos seus judeus por
Hitler.
O argumento “geográfico” das
ilhas para afirmar que a Grécia “não é um estado” então é particularmente
absurdo. A Grécia tem centenas de ilhas e a Indonésia milhares. Então a
Indonésia também não é um país? É-o certamente menos do que a Grécia, visto que
a diversidade rácica, linguística e religiosa da Indonésia é muito maior e mais
complicada do que as ilhas gregas cujo cimento, até mesmo a Rodes, que fica bem
em frente da costa turca, é de novo, a religião e a história.
Os gregos, povo de comerciantes e
marinheiros, são um alvo fácil, como os camponeses do Sul de Itália e os
alentejanos, para os do Norte industrial e “trabalhador”. É um estereótipo
conhecido: ladrões, vigaristas e, acima, de tudo preguiçosos. Por isso
“enganaram a Europa” e querem viver á nossa custa. A Grécia enganou a Europa? Sim with a little
help from my friends. A Europa ajudou activamente a Grécia a falsificar
os números, a Alemanha em particular, enquanto isso lhe interessou. E nós? Só
para não ir aos inevitáveis exemplos socráticos, vamos para este governo e bem
perto de nós. Com que então a TAP foi comprada por um português? O
brasileiro-americano o que é, o consultor para a aviação? De onde veio o
dinheiro, a pergunta que se faz sempre aos remediados, que já são vigiados por
1000 euros, e ninguém faz aos ricos e poderosos? Para que é esta cosmética?
Para enganar a União Europeia dando a entender que a TAP foi comprada por um
cidadão da União. O truque é tão evidente, que muito provavelmente, como
aconteceu com os gregos, a União Europeia já assinou de cruz pelas aparências
porque lhe convém. Atirem pois mais uma pedra aos gregos.
Os gregos não querem pagar
impostos? Não, não querem, mas nós portugueses também não queremos. Há uma
diferença, é que em Portugal se aceitou nos últimos anos, um poder fiscal muito
para além do que é aceitável numa democracia. Será que é isso a que se chama
“fazer o trabalho de casa”, ter um Estado? Já agora, as estatísticas da
economia informal na Europa são muito interessantes. Sabem que Estados tem uma economia
informal muito superior à grega? A Noruega, a Suíça, o Luxemburgo, a Dinamarca,
a Finlândia e… a Alemanha.
A questão mais importante e que
merece ser analisada e discutida mais a fundo, não é a Grécia e muito menos o
destino do Syriza. É a mudança de carácter da União Europeia, da “Europa”,
nestes anos de crise. A hegemonia alemã é um facto, mas a principal mudança foi
a substituição de um projecto europeu de paz e solidariedade, por um projecto
de poder. A substância desse poder é a hegemonia política do Partido Popular
Europeu que, apoiado pelo papel do governo alemão, mas indo para além dele,
transformou o “não há alternativa” na legitimação de todos os governos
conservadores, muitos dos quais viraram francamente à direita nestes anos.
Esses governos recebem todas as complacências (como Portugal a quem se fechou
os olhos nos falhanços na aplicação do memorando) e todos os apoios.
A “Europa” é hoje a principal
aliada eleitoral e de governo de partidos como o PSD em Portugal e o PP em
Espanha, interferindo qualitativamente nas eleições nacionais e transformando o
reforço do poder comunitário num instrumento de poder “europeu”. Hoje qualquer
passo que reforce a “Europa” reforça o PPE e o “não há alternativa”. Esta não é
a Europa dos fundadores, é a Europa dos partidos mais conservadores, com os
socialistas à arreata. Não terá um bom fim e, nessa altura, muita gente
lembrará a Grécia.
José Pacheco Pereira, "A Europa que nos envergonha", (Via Público, 27.06.15)