quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Um governo de medo e mentira (V)

A linguagem é uma das formas de dominar e manipular a informação.Quem não o compreende, nada sabe das sociedades contemporâneas e do que foi o século XX. Os senhores do irrevogável e os seus fiéis apoiantes definem uma linguagem que associa "direito adquirido" a uma forma de um qualquer vilipêndio. Nessa linguagem, repetida por muito pensamento débil, "os direitos adquiridos" não são mais do que privilégios inaceitáveis, que poêm, segundo dizem a "equidade".

(Se parassem para pensar veriam que não há equidade nenhuma, e meditariam um pouco sobre por que razão se fala de equidade e não de igualdade. (...) Claro que os "direitos adquiridos" são essencialmente do domínio do trabalho, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, activos e na reforma, e não se aplicam a outros "direitos" que esses são considerados intangíveis na sua essência. Por exemplo, os contratos com as PPP e os swaps, ou a relação credor-devedor, são tudo contratos que implicam a seu modo "direitos adquiridos", mas que, pelos vistos, não podem ser postos em causa.

O meu ponto neste artigo é que o Governo e os seus propagandistas, ao porem em causa os "direitos adquiridos" quando eles se referem a pensões, salários, direitos laborais e emprego, estão também a deslegitimar os outros contratos e a semear a "revolução".  Assim mesmo, a "revolução", defendendo uma sociedade em que o Estado e, mais importante, a lei ou a ausência de lei em nome da "emergência financeira", não assegura qualquer "princípio de confiança", ou seja, os pactos feitos na sociedade, pelo Estado, pelas empresas, pelas famílias, pelos indivíduos. 

Esta lei da selva é, espantem-se ó defensores da ordem, outro nome para a "revolução", a substituição do Estado de direito e da lei pela força, seja a da rua, seja a do poder sem controlo, seja a da imposição arbitrária assente em decisões conjunturais que passam por cima da "confiança" contratual que permite uma sociedade equilibrada, pacífica, com institucionalização dos conflitos, com mediação dos interesses, e com o funcionamento... de uma economia de mercado.

 Ao porem em causa o cumprimento dos contratos com os mais fracos, os que menos defesa têm, eliminando qualquer "princípio de confiança" ou "direito" livremente adquirido entre as partes, abrem o caminho para que se pergunte por que razão é que os contratos das PPP são "blindados" (ou seja são "direitos adquiridos") e não podem ser pura e simplesmente expropriados, em nome da "emergência financeira".  Eu não estou a defender essa expropriação, mas apenas a dizer que se o Governo e a sua máquina de repetidores entende que pode confiscar salários, empregos, carreiras, horas de trabalho, e direitos legalmente adquiridos pelas partes, e aí não se preocupa com a "blindagem" (que foi o que o Tribunal Constitucional garantiu, mesmo que precariamente), torna igualmente legítimo que se defenda o confisco da propriedade e dos contratos, a começar por aqueles que unem credores e devedores, ou partes num swap ou numa PPP. Ou seja, um governo que assim actua para os mais fracos comporta-se do mesmo modo dos que querem "rasgar o memorando".

 Ora, eu sou a favor de que se cumpra o memorando, realisticamente adaptado à mudança de circunstâncias, que se negoceiem e não se confisquem as PPP, mas que ao mesmo tempo se tenha a mesma atitude em relação aos outros contratos, procedendo também aí a verdadeiras negociações e não a diktats, e procurando soluções que possam manter a "confiança", como seja, por exemplo, encontrar modos de transição, diferenciações entre os contratos do passado e do presente, avaliação de custos e situações. Ora é isto que o Governo desde o dia um do seu mandato nunca fez, por ignorância, incompetência, dolo e ideologia.
  
Tomou um caminho único, defendeu-o como único, acrescentou problemas novos aos que já tinha, começou arrogante e acabou a andar para trás, para a frente, para o meio e para cima, tentando remediar o que tinha estragado. Sempre que contrariado quis vingar-se, garantindo que os que uma decisão constitucional protegia iriam pagar um preço ainda maior, se possível, ou servir de pretexto para punir todos. E desde sempre mostrou desprezo pela lei constitucional, porque isso lhe permitia soluções mais fáceis, mais imediatas, até porque os seus alvos eram os que menos poder tinham.

O resultado foi romper o tecido social como ele nunca tinha sido rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem qualquer resultado adquirido e sustentável. Eu ouço o rumor das objecções. Que não são a mesma coisa, que se trata de coisas de natureza diferente, propriedade e salários, emprego e contratos, que os tribunais decidiriam contra o Estado, levando a indemnizações muito maiores do que os ganhos, de que secariam as fontes de financiamento externo, etc., etc. Tudo verdade, mas tudo também verdade para o direito de não ser despedido sem justa causa, ou de não ver a sua reforma cortada retroactivamente.

 É por isso que os nossos semeadores de cizânia e de "revolução", da força, de uma sociedade dúplice em relação aos contratos que cumpre ou não cumpre, deviam ponderar nas palavras que originaram o pequeno escândalo, habitual nas redes sociais, vindas de um jovem deputado comunista que ainda não aprendeu a "linguagem de madeira" dos comunistas actuais: "A corja que despreza a Constituição que se ponha a pau. É que se o meu direito à saúde, educação, pensão, trabalho, habitação, não vale nada, então também os seus direitos à propriedade privada, ao lucro, à integridade física e moral deixam de valer! E nós somos mais que eles". O homem foi tratado de "besta", "hitleriano", "aspirante a ditador", "parecido com os fascistas", tudo isto ipsis verbis.

 Mas o que incomodou na frase foi que ela contém implicitamente uma enorme verdade: é que o "vale tudo" só para alguns é infeccioso para os outros.  Ou seja, por que razão é que tenho que aceitar que o Governo me pode confiscar o meu salário e despedir sem direitos, por livre arbítrio de um chefe de uma repartição, ou diminuir drasticamente a minha pensão, agora que já não existo para o "mercado de trabalho" e sou completamente dependente, ou condenar-me ao eufemismo do "desemprego de longa duração", ou seja tirar-me muito mais do que 60% ou 70% da minha "propriedade", que não são acções, nem terras, nem casas, nem depósitos bancários, e quem tem tudo isso não pode ver a sua propriedade confiscada num valor semelhante ao que eu perco?

E aí, ironia das ironias, teríamos o Tribunal Constitucional, com os aplausos do outro lado, a defender a propriedade e a condenar o confisco, como deve fazer.  

José Pacheco Pereira, "Contratos para cumprir e contratos para violar" - 2ª parte
in Público. 07.09.2013