sábado, 31 de maio de 2014

Walt Whitman - Da América, a universalidade humana

Canto de mim Mesmo

«Quem vem lá, ansioso, rude, místico, nu?
Como retiro forças da carne que me alimenta?

Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?
Tudo o que designo como meu chamarás teu,
Ou então perdereis tempo a escutar-me.
Não lamento o que o mundo lamenta,
Que os meses são vazios e a terra apenas lodaçal e imundície.


O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o conformismo vai até à quarta geração,

Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.

Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?

Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os mestres, calculando com rigor,
Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus próprios ossos.


Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um grão de cereal menos,
E o bem e o mal que digo de mim digo deles.


Sei que sou sólido e são,
Os objectos do universo convergem eternamente para mim,
Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.
Sei que sou imortal,
Sei que esta órbita não pode ser traçada pelo compasso de um carpinteiro,


Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.
Sei que sou majestoso,
Não atormento o meu espírito para quem se defenda ou explique,
Sei que as leis elementares nunca se desculpam,
(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto do que o nível onde edifico a minha casa).
Existo como sou, e isso basta,
Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,
E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.

 
Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou eu próprio,
E se o reconheço hoje dentro de dez mil ou dez milhões de anos,
Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.


O apoio do meu pé é entalhado em granito,
Rio-me daquilo que chamas dissolução,


E conheço a amplitude do tempo».

Walt Withman, Canto de Mim Mesmo, in absurdo.wordpress.com)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

No episódio de um rosto

Levanto à vista
o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbedas
E estou tão leve
porque não tenho nenhum segredo
e tão oculto
porque daqui a nada 
já posso dizer tudo.

Daqui a uma pouca ciência
saberei pensar que daqui a um pouco depois
estarei morto
e só de pensar
já nem respiro
já quase
em nada toco
Já vejo no fundo das mãos
daquilo que fica escrito
Que escrevi coisa nenhuma do mundo
até ao esquecimento e movendo-me com as unhas
movo-me nos nomes inúmeros
para dizer que mal nasci
logo me deram por morto.

E não fui tido nem havido
na razão do episódio de um rosto
ter passado por um espelho e ter desaparecido.
Portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos
Vejo a água a mover-se contra si mesma
tão marítima e acho até que é bonito
cada qual morre do que alcança e não alcança
e ninguém compreende
a água que toca os dedos que escreveram até às pontas
e passa a água fácil
sem retorno
porque nada tem retorno e tudo é dificílimo
não só o máximo, mas também o mínimo. 

Herberto Helder, "7º poema", in Servidões

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A sagração da primavera

"Um dia quando eu terminava o pássaro de fogo em São Petesburgo, tive uma visão fugidia num momento em que minha mente, surpreendentemente estava ocupada, com várias outras coisas. Imaginei um solene rito pagão: sábios anciãos, sentados em círculo, assistindo a uma garota que dança até morrer. Eles a estão sacrificando para apaziguar o deus da Primavera. É este o tema de A Sagração da Primavera".  Igor Stranvisky

Em 1913, por este dia estreava, há pouco mais de cem anos, uma obra que vai muito para além de uma obra sinfónica ou de uma representação cénica, pois ela incorpora os valores da arte contemporânea. A Sagração da Primavera foi uma revolução naquilo que eram as convenções musicais, ou os padrões do ballet clássico. Muito mal aceite em Paris, do início do século veio a dar substância a um século de contrastes e de quebras do espírito humano. 

Encenada na sua primeira versão por Vaslav Nijinsky e construída musicalmente por Stravisnky, A Sagração da Primavera foi simbólica no momento em que surgiu, justamente nas vésperas de uma Europa que se consumiria em guerras inimagináveis e fundou uma dança que transformaria os conceitos desta arte no século XX. ina Baush, também fez uma coreografia sobre esta obra. Na coreografia de Pina Baush, onde os bailarinos do Tantztheater Wuppertal deram uma cor onde predominava algum primitivismo e selvajaria, deu-nos o que poderia ser o horror do coletivo, metáfora de uma sociedade primitiva.

O vestido vermelho que representa a escolha da vítima é um combate contra os Homens, contra a dignidade, por uma sociedade primitiva nos seus conceitos mais básicos. O sacrifício individual em nome de uma coletivo é uma metáfora que A Sagração da Primavera deixa e que importa refletir.E a recordação da Sagração da Primavera nos seus cem anos, também é uma forma de recordar a grande artista alemã que nos deu uma linguagem visual e emocional de grande significado. Trouxe-nos a nossa própria dimensão de frente para os olhos, onde nos admirámos do que sabemos ser possível construir e do que inevitavelmente perderemos.

No quotidiano

O quotidiano não cega:
nós é que estamos distraídos.
Não pensamos, ouvimos falar na televisão
pessoas que pensam que estão a pensar
e assim ganham a sua vida.

Dói-nos a vida, mas dizem-nos que merecemos,
porque pensámos em viver do mesmo modo
que as pessoas que pensam que estão a pensar
e falam na televisão.

Agora as pessoas que pensam que estão a pensar
e ganham a vida na televisão dizem-nos 
                           que perdemos a nossa (...)
O quotidiano não cega: nós
é que estamos distraídos.

Luís Filipe Castro Mendes, A Mesericódia dos Mercados 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Entre os outros...

Porque será que não há ninguém no mundo
Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar

E todos a contarem o futuro
Como se fosse o único presente
Olhos criavam outras as imagens

Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança".

Sophia, "VI", in No Tempo Dividido. 
Imagem, Qin Yongjun, Dali, Yunnan Province (China)

terça-feira, 27 de maio de 2014

Na ilusão da liberdade

"Eu próprio procuro, em vão, uma expressão que reproduza exctamente a ideia que faço dela e a possa conter; as antigas palavras 'despostismo' e 'tirania' não servem. O fenómeno é novo; tentarei portanto defini-lo uma vez que não consigo atribuir-lhe um nome. [...] 

vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, em busca de prazeres insignificantes e vulgares com que preenchem as suas almas. Cada um deles, colocando-se à parte, é como um estranho face ao destino dos outros. [...] Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar o seu destino [...]

Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso [...] Sempre pensei que esta espécie de servidão, ordenada, calma e amena de que acabo de fazer o retrato se poderia conjugar melhor do que se imagina com algumas das formas exteriores de liberdade e que não lhe seria impossível estabelecer-se à sombra da própria soberania do povo."

Parece-vos recente, possível este equecimento da nossa consciência por uma prática de liberdade e de verdade? Não, não é de nenhum ilustre comentador. Apenas de um dos maiores pensadores da América que viu acima da espuma essa imensa solidão com que o poder se tenta de contornar com as suas mentiras a verdade interior de cada um, a sua respiração. Palavras de grande visão que  os profetas do utilitarismo tanto desprezam. Apenas Alexis de Tocqueville, desse livro imenso, Da Democracia na América.

(Imagem - Garffiti - na Rua de Santa Cata­rina, no Porto).


Biodiversidade - Serralves

Na cidade do Porto existe no seu centro, nas imediações da Boavista um Parque onde em diferentes espaços podemos conviver directamente com a Natureza. Criado a partir de um espaço que existia desde 1923, como património de uma família portuense, este parque foi evoluindo em diferentes secções que integraram a quinta do Lordelo, o jardim Mata-sete e o Jardim Jacques Gréber. Abriu ao público em 1987, após uma cuidada recuperação, sendo ainda objecto de uma profunda valorização que seria concluída em 2006. Como elementos integrantes do Parque temos a casa da Fundação desenhada por Marques da Silva, arquitectura desenhada no espírito da Art Déco e o Museu de Arte Contemporânea desenhada pelo arquitecto Siza Vieira.

Um dos locais mais fascinantes no País para desfrutarmos a biodiversidade é sem dúvida Serralves. Fascinante e impressionante pelo modo como ali podemos apreciar e desfrutar as tonalidades dos diferentes dias em diversas estações do ano. Serralves é um excelente exemplo de integração das transformações de um determinado tempo, séculos XIX e XX, assumindo a vertente cultural e natural de um parque rico do ponto de vista da biodiversidade.

Em Serralves podemos observar ao lado de campos agrícolas, o celeiro e o lagar, assim como uma diversidade de plantas. Dos roseirais às aromáticas, das grandes sequóias a espécies como os cedros-do-Atlas, dos carvalhos e castanheiros ás plantas rasteiras, das bétulas aos ulmeiros, das camélias à urze. Observamos assim um rico património autóctone ao lado de uma vegetação exótica de grande beleza.

Para lá desta beleza, Serralves é um espaço de fruição de espaços de arte, de observação e contemplação de inúmeras espécies vegetais, de recriação de um lago romântico, ou de visita a uma casa de chá, entre heras e sons de natureza. Desde o Praterre Central à Álea de Liquidambares, o deslumbramento é permanente. Como projecto de biodiversidade e de cultura, no centro de uma cidade, afastada da capital, é um recurso pedagógico e de felicidade que vale a pena conhecer, em pormenor, e com paixão.
(Imagem, in jardineiro-amador.blogspot.com)
 

Serralves - quinze anos de arte contemporânea

Aqui fica o link para o programa das actividades de uma das maiores formas de ilustrar a expressão que a arte e a cultura contemporâneas podem revelar, por estes dias. Com actividades gratuitas para toda a família, pela nobre e leal invicta, já no próximo fim-de-semana, com mostra de arte, expressão circense e música. Programa completo - aqui.
Para os que ainda não conhecem este espaço de grande valor arquitetónico, paisagístisco e cultural, aqui fica uma ligação rápida a Serralves.

Celebrar a Natureza - Rachel Carson

Rachel Carson é uma das grandes figuras do século XX pela importância que concedeu ao natural, mas sobretudo porque estabeleceu a ideia essencial que vivemos num mundo de infinitos particulares que se correspondem entre eles, que se relacionam e que influenciam a globalidade da sociedade, mesmo em termos de habitats naturais. 

Ken Robinson fala muitas vezes da importância de Rachel Carson para a compreensão das  limitações que a utilização sem regras do mundo natural podem ter, nas possibilidades da sociedade humana e nesse sentido esta comprensão que ele nos deixou pode ser considerada uma revolução pelos impactos que provocou na nossa maneira de pensar e de ver o natural. 

Rachel Carson foi uma pessoa que se dedicou à biologia marinha, à zoologia e à ecologia. Dedicou-se em especial às temáticas da preservação ambiental, tendo em 1962 publicado a sua obra de destaque, Silent Spring, onde se fazima um conjunto de advertências sobre o meio ambiente. É um documento que vai dar grande impulso ao movimento ambiental.   
 Formada em Zoologia peloa Pennylvania College for Women e na Johns Hopkins University, foi professora universitária, publicou deiferentes artigos e livros sobre as questões ambientais e dedicou-se muito à investigação como pesquisadora. Under the sea wind (1941) e The sea around us (1951) deramlhe grande notoriedade, onde expôs de uma forma apelativa, do ponto de vista da linguagem, um conjunto de ideias de grande valor científico. 

A sua obra é de grande valor pela percepão de um mundo interligado, mas também porque com ela permitiu que se iniciasse um debate sobre o modo como os pesticidas ou os poluentes químicos podem influnciar as questões de saúde humanas. A sua obra marca um valor de grande significado para a partilha consciente de recursos entre comunidades.

domingo, 25 de maio de 2014

Dia Internacional das Crianças desaparecidas

                                            «So tired that I couldn't even sleep (...)
                                          Life's mystery seems so faded»(1)

Em 1983 o presidente dos Estados Unidos da América, Ronald Reagen propôs um Dia em que se chamaria a atenção de todos para o drama das crianças desaparecidas. A Ideia foi sugerida pelo caso Etan Patz. Um caso idêntico a tantos outros. Uma criança de seis anos sai de casa para uma curta caminhada até à paragem do autocarro escolar. Nunca mais foi visto ou encontrado. O caso assumiu uma dimensão internacional. É o primeiro caso em que foram usados todos os meios possíveis para difundir a mensagem «O que fizeste ao meu rapazinho?». Pergunta pungente a uma das pistas do caso, José Ramos, preso numa penitenciária da Pensilvânia.

Todos os anos, nesta data o pai da criança escreve a mesma pergunta e obtém a mesma desoladora resposta, «não sei». Resposta difícil, infinitamente pavorosa. Volta a escrever na data de nascimento de Etan, mas ninguém se comove. Mas o pai insiste. Vive na mesma casa, usa o mesmo número de telefone, na esperança de que o seu rapazinho se lembre. Passaram trinta anos e eles ainda acreditam. Não lhes resta outra esperança. De que o seu desaparecimento foi só isso e que ele ainda estará presente nas suas vidas.

A América descobriu na década de setenta que em Nova Iorque, num bairro onde uma criança todos os dias apanhava o autocarro escolar podia desaparecer num instante em que apenas virava à esquina da sua casa. Foi o primeiro caso de tantos que se seguiriam. Este acontecimento está retratado no livro After Etan, The Missing Child Case That Held America Captive.

O mundo compreendeu que as crianças, também elas estavam à mercê da violência, impedidas de serem muitas vezes elas próprias. É de facto um estranho mundo. Um mundo onde as respostas e as soluções que pareciam seguras num outro tempo estão hoje gastas.

Um dia para pensar e relembrar todos os que também em Portugal têm desaparecido, em misteriosos caminhos, tantas vezes sem regresso. E pensar também nos pais destas crianças, naufragadas entre um cansaço insuportável de um sorriso apagado e um futuro que parece já não mais existir.
 
(1) Parte do poema dos Soul Ayslum, Runaway Train
[o cansaço e o desencanto])
(Imagem, in parentdish.com)

sábado, 24 de maio de 2014

Jusqu'à Toujours Georges

"Pour avoir si souvent dormi avec ma solitude, Je m'en suis fait presque une amie, une douce habitude. Elle ne me quitte pas d'un pas, fidèle comme une ombre. Elle m'a suivi ça et là, aux quatres coins du monde. Par elle, j'ai autant appris que j'ai versé de larmes. Si parfois je la répudie, jamais elle ne désarme. Et, si je préfère l'amour d'une autre courtisane, Elle sera à mon dernier jour, ma dernière compagne".

 Georges Moustaki, Ma Solitude
 
 
 
Quand il est mort le poète
Tous ses amis
Tous ses amis
Tous ses amis pleuraient

Quand il est mort le poète
Quand il est mort le poète
Le monde entier
Le monde entier
Le monde entier pleurait

On enterra son étoile
On enterra son étoile
Dans un grand champ
Dans un grand champ

Dans un grand champ de blé

Et c'est pour ça que l'on trouve
Et c'est pour ça que l'on trouve
Dans ce grand champ
Dans ce grand champ
Dans ce grand champ des bleuets


Gilbert Bécaud, "Quand il est mort le poète", à propos de Georges Moustaki
 
 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Eduardo Lourenço

" (...)Nunca perdemos o sentido do nosso tipo de existência. Um país sempre ameaçado na sua história política, sempre em perigo de perder essa autonomia fantástica e a nossa História é um perpétuo milagre novelado e só não é um milagre porque na verdade Portugal nunca foi apenas este rectângulo em que nós estamos e voltámos, que é o acontecimento mais extarordinário da História de Portugal dos últimos quinhentos anos. Foi outra coisa.

Um País que é quase um imperativo de vida, sobretudo para a nova geração, de ir para outros sítios, à procura de subsistir e de viver e de ser cidadão noutros locais. Lamentável por esta riqueza essencial de um País se estar a perder. Mas sempre fomos para outros sítios, para sermos os mesmos e outros. E dessa aventura nasceu o mundo que ainda fala português, que é o mais extarordinário que deixou e deixará no mundo.

O máximo que podemos conseguir é que na nossa casa não mandem realmente os outros. Conseguimos isso de uma maneira difícil através dos séculos e neste momento, quando pensávamos que estavamos muma situação de uma certa normalidade e sem problemas de desaparecer na história do mundo, confiscados por outras forças, nós encontramo-nos aqui, outra vez, com um sentimento de que não estamos neste momento à altura da História extraordinária que é a de este pequeno Povo.

Assim, o que discutir sobre o fim?
Fim, é uma palavra apocalíptica em si mesma. Fim é aquilo que, é uma leitura de nós mesmos como seres fundamentalmente temporais e históricos. É qualquer coisa que termina no sentido individual do termo, termina da maneira mais absolutamente possível. É o único absoluto que nós temos, é esse fim tomado realmente como um momento da existência humana não só individual, mas colectiva. E não estamos ameaçados por nenhum apocalipse, mas a aventura humana pelo tempo que nós podemos revê-la rapida e miticamente é uma aventura que não tem em si um sentido de perpetuidade absoluto. Ninguém sabe. 

Nós pensamos sempre que estamos num tempo que é o tempo dos tempos porque é o resultado de uma aventura que vem de trás. Nós não sabemos em que tempo estamos. Estamos num tempo nosso e num de medida europeia que nós pusemos quase ao universo inteiro. Ora que tempo é o nosso? Ninguém sabe, o que seremos daqui a cinquenta anos. Ninguém sabe qual é a finalidade deste mundo tão frágil na sua realidade. Ninguém sabe. E é por isso mesmo que a existência tem sentido paradoxalmente. Quer dizer nós estamos confrontados com um enigma e com um desafio, que não é só de medida humana, é de qualquer coisa que nos ultrapassa. Mas o único dever que nós temos, penso eu, é sempre o mesmo, é separar naquilo que nós somos, porque fomos nós que nos baptizámos a nós próprios.

Embora Deus, na Bíblia encarregue Adão de dar nome às coisas, porque ele curiosamente não se atreve a ser ele, Deus, a nomear as coisas. Se ele tivesse nomeado as coisas, a essência delas era a a nomeação que ele tinha feito. Assim somos nós que somos encarregados de reescrever, realmente a nossa própria experiência. Primeiro reinscrevemo-las por um paradigma de uma escrita que já está escrita nos céus, que é o alfabeto daquilo que nos cerca. Passados muitos séculos, o primeiro sábio moderno chamado Galileu, disse-nos "o mundo está escrito em caracteres matemáticos" e efectivamente isso é o começo da modernidade, a primeira palavra verdadeiramente moderna é esta, o mundo está escrito em carcateres matemáticos.

O que supõe uma capacidade de sermos nós, uma espécie de substitutos do criador, novos criadores desta realidade que chamamos Mundo. Escritos no mundo é a nossa primeira consciência, a nossa consciência do Mundo e esse mundo é o Mundo que realmente nos cerca. Mas qual é a leitura dele, que sentido tem? O sentido, somos nós, os indicadores do sentido. Se esse sentido é o mesmo de Deus, Deus o saberá, nós provavelmente nunca, mas isso é que é maravilhoso. Somos nós que temos de definir o sentido que seremos nós, no nosso próprio destino, quer individual, quer colectivo.

O sentido de Portugal enquanto nação entre outras nesta Europa frágil neste momento está assegurado. Nós não estamos confrontados com uma espécie de Alcácer Quibir. Provavelmente a Europa é que está confrontada com uma espécie de Alcácer Quibir de um género novo. Está para ser um espaço de um mundo, que depois de ter dado as suas leis, as suas regras, a sua ciência ao mundo, embora a ciência não tenha só raízes europeias,a Europa está neste momento num tempo de naufrágio do sentido.

De uma pluaralidade de sentidos, passámos de uma época enquanto a compreensão da nossa História, enquanto História moderna configurava duas ou três narrativas fundamentais que a explicavam - a nossa actualidade através do nosso passado. E, de repente essas leituras não são capazes, tornaram-se incapazes de ler de uma maneira eficaz, que nos faça compreender o que nos está a acontecer. O que nos está a acontecer, penso eu, é uma coisa simples.

É a passagem do mundo em que o paradigma histórico é comandado pela ideia de mudança que era legível, era verificável, para um mundo cujo paradigma se vê hoje, está anunciado, é o da metamorfose. Estamos mudando de mundo. Que espécie de mundo será esse? Ninguém sabe. Se soubesse, seríamos a Cassandra desse futuro e provavelmente uma Cassandra trágica como outra. O melhor é não sabermos, porque este mundo em que nós estamos já é significativamente enigmático e oferece-nos uma capacidade de sermos nós os responsáveis por esse futuro e nós não podemos abdicar disso. Se abdicássemos disso morríamos antes de morrer.

Eduardo Lourenço, Encontro - "O sentido do fim, ou um fim consentido?"
Porto, Fundação Serralves, 02.04.2014
(No dia do seu aniversário, a recordação de um encontro em que mais uma vez nos deu uma sabedoria profunda de interrogação sobre nós próprios).

Sophia - A poesia em si

"Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível. Porém, lá fora, na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. 

Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece. 

Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza a cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão. Semelhante o corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa. É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade." (1)

(A poesia que é sinónimo da sua palavra, Sophia e do seu perfume. O que nos dá o encanto impressivo da claridade que tanto procuramos na compreensão do possível onde se fragmentam os nossos passos de sol nas ondas de azul. Nos lugares onde ambicionamos a substância de um encontro real, a voz dos nossos precários desejos. Sophia é, nunca é demais relambrar a sua mensagem única, vivida na Poesia, pelas possibilidades que nos deu de saber olhar e com ele construir a própria linguagem, o seu reino.)

(1) Sophia, in "Arte Poética 1"

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Na memória do cinema

«O João Bénard é um menino. É um menino que, a cada momento da vida, acabou de descobrir uma coisa. É sempre uma coisa maravilhosa que tem de abraçar com muita força mas depois largá-la para poder mostrá-la aos amigos e partilhá-la com toda a gente.

Porque se não a partilhar, se não a cantar, se não se destruir a elogiá-la de maneira a ser tão irresistível como ele - até chegar a confundir-se com ele ao ponto de não sabermos qual amamos mais, se ele ou as coisas que ele nos ensinou a amar -, se não puder parti-la aos pedaços para poder dar um bocado a cada um, na esperança que todos a queiram reconstruir depois, ele já não é capaz de amar tanto aquela coisa, porque acredita que a coisa é grande e boa de mais para uma só pessoa e sente-se indigno de gozá-la sozinho. É assim o João Bénard.

O João Bénard é um amigo. É um amigo que, a cada momento da vida, faz sempre como se tivesse acabado de apaixonar-se por nós. Não lhe interessavam nada as coisas que mudaram; as asneiras que fizemos; a decadência em que entrámos; a miséria que subjaz às nossas opiniões ou o grau de petrificação das nossas almas. Para ele, somos sempre os mesmos. É um leal. Está sempre connosco como se fôssemos tão frescos como ele. Puxa-nos pela manga da camisa; protege-nos da tempestade; desata a rir no meio das encrencas; arranja tabaco clandestino; deixa-nos subir para os ombros para vermos melhor; para saltar para o outro lado; mostra-nos fotografias nunca vistas, de actrizes lindas, escondidas debaixo da camisola - e faz tudo descaradamente; não se importa de ser apanhado; não tem vergonha nenhuma; é um prazer estar com ele; parece que todo o universo está em causa. É assim o João Bénard.

O João Bénard é uma alma. É uma alma que, a cada momento da vida, desde que nasceu, sempre fez pouco do corpo e das coisinhas de que o corpo precisa. Tinha um corpo transparente, com a alma a ver-se lá dentro. Ou então era a alma que projectava o corpo no ecrã da pele. É por isso que todos nós o conhecemos como conhece Deus. Deus, apresento-Te João Bénard. João Bénard, apresento-te Deus.» (1)

(Haverá melhor forma que um amigo para falar de um outro seu amigo? Miguel Esteves Cardoso, há já quatro anos, no Público, sobre o Senhor Cinema, que nos deixou de falar das imagens que reiventam os sonhos.)

Imagem, http://danossaladeia.blogspot.com

Parabéns Maestro


É sempre reconfortante destacar no mundo dos que vivem fisicamente pelos dias do quotidiano, a alegria da palavra, a ironia ao serviço da inteligência do pensamento e o imenso sorriso de quem compreende essencialmente o ser.

Nascido numa família de artistas, cedo revelou as suas imensas qualidades no campo da música. Estudante no Conservatório, chegou a Viena de Áustria como um aluno brilhante, onde revelou as suas excepcionais qualidades no estudo do piano. Desde esses locais onde a cultura ocidental setecentista e oitocentista brilhou nos olhos de Mozart, Lizt ou Beethoven, enviava para Portugal a sua sabedoria e esse olhar que ainda se recorda pela graça e pela simplicidade.

Compositor de uma imensa obra sinfónica aguarda ainda que um mecenas permita o registo da sua voz musical. Tem pelos locais mais recônditos comprovado o que tantas vezes historiadores e escritores têm enunciado. A curiosidade natural pelo belo, não tanto do público da capital, onde aparecem sempre os mesmos, mas na província, onde entre ovelhas e cabras, olivais e florestas se vai escutar um prelúdio de Lizt. Pela sua imensa capacidade de comunicar elevados valores através da simplicidade, o nosso agradecimento. Parabéns Maestro.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Em todos os jardins ...

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde omar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abaraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu viz prometida nas imagens.

Sophia, "Em todos os jardins", in Poesia.

As eleições europeias

"Na medida em que a hipótese central do totalitarismo repousa sobre o"tudo é possível", uma cidadania sensata e uma acção racional devem repousar sobre a hipótese inversa de uma constituição da natureza humana, ela própria justificada pela sua capacidade de abrir, de preservar ou reconstruir um espaço político" (1)


Os candidatos às eleições europeias há cinco anos propounham-nos palavras tão claras, como "somos europeus", "direito ao TGV na Europa" ou "Erasmus para todos os alunos universitários." O candidato da oligarquia que domina politicamente a União europeia, a sua comissão propunha apenas o que as circunstâncias ditavam. 

Alguém escreveu que a Europa compreende sempre na substânciaa crise anterior, pois os grupos e os partidos que influenciam ainda se imaginam no centro do mundo, mas são um "subúrbio esquecido da política mundial", onde a sua influência se fica pela fixação dos habitats dos castores, ou das migrações das borboletas, jamais para discutir os problemas reais que se vive na Europa e nas suas fronteiras. A solidariedade europeia não nasceu com ela e foi um mito dos tempos em que os cofres estavam cheios e a França e a Alemanha tinham de disfarçar, uma a sua fraqueza económica, a outra a sua importância política.

A participação dos cidadãos no que é a união europeia é residual, não há a construção como um dos seus fundadores, defendeu que mais do que comunidades, eram os homens que importavam juntar. A união europeia não vive pois uma construção democrática. A campanha eleitoral para eleger os deputados ao Parlamento Europeu já começou. Todos percebem que acima do inevitável voto, que muitos milhões irão dispensar, nada real se propõe. Como influencia o voto num ou noutro partido a sua própria acção? Ninguém sabe.


A Europa política não existe. Os seus dirigentes que já a governam como um Directório, não discutem o seu papel no Mundo. Pensam ainda na Europa que influencia o Mundo. A Europa não compreende o Mundo onde vive. E não tem respostas. Afasta os cidadãos, não os deixando participar na discussão de tratados importantes. A Europa só discute pormenores. E é naturalmente dominada pelos maiores orçamentos, os que os países mais importantes colocam aos economicamente menos representativos. Há uma real procura de coesão na Europa? 

Não, não há. E não há porque não são discutidos os aspectos que poderiam reforçar o equilíbrio regional dentro de cada País. Para os pequenos países o importante não é o Parlamento Europeu, é a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. Todos sabem que neste último a representatividade dos países está dividida pelo poder dos mais fortes face aos mais fracos. E a Comissão? 

A Comissão Europeia foi habitada durante dez anos por um indivíduo que se revelou à moda dos centuriões romanos um bom operário do domínio imperial, aqui alemão, mas sem a cultura, sem a língua, sem a uniformidade cultural, sem a materialidade romanas. Na verdade, é preciso uma ética cósmica para se fazer da acção política uma ideia de espaço público. Do saudosismo maoísta, à ocupação do Iraque e à Comissão, revelaram-se apenas formas de gestão de fundamentalismos diversos. Como se percebeu muito cedo, não era a figura que a Europa precisava. Terá a Europa essa figura? Haverá uma figura que saiba alguma coisa da memória da Europa e a procure redimensionar à sua substância, acima do foclore político?

Vale assim a pena votar? Concerteza. Procurar fora do caminho da evidência financeira, os que propõem pensar, reflectir, sugerir alternativas, não os que vivem das ideias feitas, que apenas reproduzem cartilhas mal elaboradas, preguiçosas, sem humanismo, em que o espaço público como o definiu Hannah Arendt possa se materializar. É preciso lutar contra esta evidência que nos leva a desistir, pela corrupção nas ideias, pelo abanono na grandeza, pelo deserto de convicções.

É necessário reescrever a ideia de que é pensando nas opções, é votando que se evita que renunciemsos ao pensamento e a que possamos novamente repensar o que é humano. É preciso discutir as opções votando a quem pode lutar por esse fundamento. E todos sabemos que não é nos apóstolos do capital finaceiro que ele se encontra. É na nossa participação, na generosidade dos que ainda pensam.

(1) - Hannah Arendt, Between Past and Future: Eight Exercises in Political Thought.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Exames ...

"O objetivo da educação é criar entes humanos integrados e, por conseguinte, inteligentes. Podemos tirar diplomas e ser mecanicamente eficientes, sem ser inteligentes. A inteligência não é mera cultura intelectual; não provém dos livros, nem consiste em jeitosas reações defensivas e asserções arrogantes". (Jiddu Krishnamurti)

Iniciaram-se hoje mais um conjunto de provas sistémicas a que um conjunto de falsos eruditos julgam poder no espaço público promover a aparente verdade que é neles que reside o fundamento de educação. O sistema eductivo português não está construído e cada vez menos para a construção de cidadãos que saibam pensar, que analisar criticamente a informação.

O discurso do rigor é uma ideologia que não respeita as diferenças sociais e por isso toda a propaganda da igualdade de oportunidades só não faz rir por se tratar de algo tão triste e limitador do futuro das crianças. Os exames nada provarão, apenas dirão que cenários de prova melhor foram testados. Pura mecânica, sem emoção, nenhuma poesia em rudimentos de ciência.

Todo o processo é um esclarecimento sobre uma visão do mundo retorcida, de um tempo que já passou nos ambientes esclarecidos, onde projectos educativos locais se erguem para assimilar a diferença. As indicações dadas revelam como opoder considera os imprestáveis professores, aliás como o poder político considera a sociedade, criancinhas obedientes e sem pensamento.

A leitura ordenada e escalonada, os elevados critérios pensantes de num ciclo ser uma cor a possível para escrever e noutro já podem ser duas revelam muito desta incapacidade de ver nos outros a possibilidade de construir uma sociedade. No edifício montado, onde as pessoas não têm valor nenhum reconhecido, onde os iluminados decidem tudo, onde a autonomia é uma piada de mau gosto, os exames de nada servem. 

Apenas justificam um discurso que engana os que não sabem no que se tornaram as escolas. Empresas, isso mesmo me dizia uma aluna do secundário, no ano lectivo passado. O pensamento crítico necessita de fundamentos, de ser alimentado pela imaginação e pelo gosto em se viver numa escola que forme pessoas, onde cultura e ciência, memória e arte tenham significado substantivo. Nesse enquadramento conhecer o que os alunos sabem realizar seria importante, não num clima de empresa que se postula como uma imensa fábrica de operários obedientes.

domingo, 18 de maio de 2014

Astronomia

"Vou buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.

Ponho-a num frasco, para não se 
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se 
aproxima, e o mundo desperta da noite.

Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio das constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.

Por isso, tirei a estrela do frasco e
metia- no poema, onde voltou a brilhar,
no meio das palavras, de versos, de imagens".

Nuno Júdice, O breve sentimento do eterno, Edições Nelson de Matos, página 51

sábado, 17 de maio de 2014

A continuidade dos dias... pela incompetência institucional

"É a vida pois. Que mais quereis? É a vida lá fora, não há nada a fazer, é assim, vivei a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer é lá longe que tudo acontece e, no entanto, estou aqui eu para vo-lo mostrar inteiro, o mundo, ide, ide às vossas ocupações que a vida continua". (1)

Vivemos entre momentos místicos de grande alcance mediático, mas de pouca transformação para o nosso horizonte quotidiano. O real revela-nos com clareza deslumbrante que somos um país de crianças, modelado entre a resignação, a passividade e o imobilismo civilizacional.Uma parte da sociedade espera confiante que as medidas de "selvajaria" social não os atinjam. Recebemos já com aparente incredulidade o anúncio fraterno, consciente e inadiável de que um conjunto formoso de taxas, impostos e comissões são devidas ao Estado. Mais uma vez.


Anunciam-se continuadamente procedimentos ferozes na criação de receita, mas raras informações sobre a despesa, como vai ser controlada. E tudo isto para impor um Estado que asfixia a sociedade, não compreende o mundo em que vive, as relações económicas que o suportam. Um Estado alimentado por partidos que desconhecem a sua função na Democracia. 

A Democracia implica o respeito pela palavra, pelo contrato eleitoral, pelas instituições. A Democracia implica a existência de cidadãos, não de crianças que não sabem pensar e por isso dispensadas de respeito. A Democracia implica uma comunidade onde nos podemos, devemos indignar contra a incompetência da gestão do domínio público. Há uma gritante falta de indignação pelo que moralmente não é aceitável.

O País, na pessoa dos partidos do governo não compreendeu que o mais importante é o trabalho, o esforço partilhado, a construção de confiança entre todos, para a identidade de uma cultura. A economia tem de ser construída pelas empresas em concorrência, não pelo Estado que promove ao abrigo de falso "mercado aberto" relações de dominação e de poder assente em empresas de regime, prejudicando os cidadãos. Os governos são eleitos para governar, não para criar dependências de consultadorias onde milhões se desperdiçam nos interesses de uma minoria. Um país para existir tem de se inscrever no real.

Os partidos que governam não esclarecem que a Europa não existe. Apenas os interesses do eixo franco-alemão. Os partidos não compreenderam que salários baixos e desvinculação territorial não garantem qualquer futuro. A entrada na União Europeia impunha critérios de organização que um País julgado predestinado pela História não soube aplicar. Entre uma ideia de História como um conto de fadas de predestinação ideológica à desumanização em que as pessoas não contam, vale tudo a um poder que se sustém como único critério o seu fausto pessoal de incompetência.

As medidas agora decretadas, prenúncio de um difícil presente, não merecem um comentário do senhor Presidente da República. Perante os fenómenos místicos há que ficar em stand by. Tudo é decretado por algumas figuras sem a participação do Parlamento, como se ele não fosse a sede da soberania. As estruturas intermédias não existem, estando os cidadãos à mercê de qualquer decisão, certa ou errada.

Continuamos as mesmas criancinhas, sem verdadeira cidadania, sem um Estado que não sabe ser a medida da ordem das coisas. Uma democracia pouco real onde a igualdade é uma ilusão, fruto desse trabalho que o Salazarismo tão bem projectou e que os governos sucessivamente não sabem reconstruir num projecto de decência colectiva. 

(1) José GilPortugal Hoje, O medo de existir