Os tweets de um secretário de Estado chamado Bruno Maçães
têm sido alvo de chacota generalizada na Internet, mas não é o seu contributo
para o anedotário destes dias de lixo que é relevante. Eles significam muitas
outras coisas, bem mais graves do que as inanidades que escreve: vão fundo ao
pensamento débil de quem nos governa e mostram a perigosidade social de meia
dúzia de ideias extremistas na mão de quem tem poder e que, sem mudarem nada,
estragam o país por muitos anos.
Que ele canta como um pássaro de curtos trinados, que é o
que significa tweets, isso é verdade. Mas que dificilmente se pode encontrar
melhor exemplo da gigantesca arrogância e presunção de um conjunto de
conselheiros de Passos Coelho, em que tudo transpira a uma gigantesca
auto-suficiência e assertividade, associada a uma profunda ignorância do que é
Portugal, a sua história e as suas pessoas, o povo, nós todos, o único “nós”
que tem sentido.
Como todos os revolucionários são adâmicos, acham que o
mundo começou com eles e vai acabar com eles, seja como paladinos de um combate
mundial contra o Mal, quer como heróis consumidos num Armagedão de perversidade
alheia, de preguiça colectiva, de pieguice generalizada, da maus costumes
despesistas, de hábitos de vida de rico nuns miseráveis que acham que têm
direitos e não sabem economia, ou seja, nas chamas do socialismo, da coligação
do Papa Francisco com Obama, com Cavaco, com o Tribunal Constitucional, com os
“socráticos” e com os ressabiados “velhos do Restelo” do PSD e CDS que só
pensam nas suas pensões milionárias. Essa junção pestífera de demónios
representa as mil cabeças do Diabo. Sim, eles viram o Exorcista em pequenos e
têm medo do Diabo.
A metade de Passos Coelho que não foi feita por Relvas foi
feita por homens como Maçães, combinando na mesma criação a esperteza
aparelhística e o mundo das negociatas e das cunhas, com as altas esferas
académicas sempre dispostas a fazerem de dr. Strangelove. Ou seja, o dr. sem
ser dr., junto com o Professor Doutor. Infelizmente, a história tem muitos
exemplos destes e dão sempre torto. Mas eles nunca querem saber de história.
Num desses trinados, em inglês como convém, Maçães escreve
que “todos os dias lhe lembram o muito que os 35 anos de hegemonia socialista
em Portugal fizeram de mal ao país. Felizmente podemos hoje dizer que esses
dias acabaram”. É o equivalente ao “I think I saw a pussycat”, sendo que o
“pussycat” que quer comer o passarinho é o socialismo, “I did, I did”, ele viu
35 anos de “pussycat”.
Comecemos pelo cálculo, que Maçães certamente fez na sua
mente, dos 35 anos. Imagino que o fez para o período posterior ao 25 de Abril,
porque presumo também que não o fez incluindo os santos governos dos
Professores Salazar e Marcelo Caetano, embora, com este tipo de extremistas,
nunca se saiba. Podem perfeitamente achar que o Salazar dos Planos de Fomento e
o Marcelo Caetano das “conversas em família”, eram perigosamente socializantes.
Nunca se sabe. Porém, vamos admitir que o cálculo dos 35 anos começa depois de
1974, ou seja, houve cinco anos de não-socialismo, ou de anti-socialismo desde essa
altura. Onde é que estão esses cinco anos?
Retiremos para já dois anos, ou seja, os do governo de que
faz parte, que também presumo não seja socialista, mas, de novo, com estes
extremistas nunca se sabe. Pode ser que ele se ache em missão gloriosa de infiltração
no meio de um governo de socialistas... moderados. Não me admirava. Bom, mas
vamos dar o benefício da dúvida de que Maçães não inclui o Governo Passos
Coelho, mesmo apesar da ditadura fiscal socialista, na dita categoria. Faltam
pois dois gloriosos anos sem socialismo.
Onde estão? Não deve ser nenhum governo provisório, nem o VI
de Pinheiro de Azevedo, sobre o qual ele não deve saber nada, como nada sabe da
nossa história recente quanto mais a antiga. Vamos pois aos governos
constitucionais. Serão os governos da AD, de Francisco Sá Carneiro e depois
Balsemão, três anos mal contados? Duvido. Sá Carneiro era um
“social-democrata”, ou seja, um perigoso socialista envergonhado, e Balsemão um
tenebroso socialista, encarregado pelo grupo de Bilderberg e pela conspiração
maçónica universal, de dar suporte mediático aos socialistas portugueses para
que eles nunca abandonem o poder.
Será que Cavaco serve para encontrar os três anos que
faltam? Duvido, até porque Cavaco foi primeiro-ministro durante dez anos e,
portanto, teria sete de socialismo, tantos quanto Jacob serviu Labão por causa
de Raquel, e este em vez da amada lhe dava Lia, ou seja, o socialismo de novo.
Mas não pode ser. Nas “análises” que este Governo faz todos os dias, Cavaco é o
digno percursor de Sócrates, numa linha de continuidade sem falhas, incluindo
os momentos menores de Guterres, o esquecido pelos anátemas. Sobra Durão
Barroso e Santana Lopes, o breve. São três anos de 2002 a 2005, que davam para
encaixar no prazo. Porém, Barroso será sempre suspeito, um ex-MRPP reciclado,
merecedor de menos consideração do que os ex-trotskistas americanos que deram
excelentes teóricos conservadores. Mas isso é na América. Talvez fique Lopes,
embora o seu lado muito distributivo seja suspeito.
Difícil. Há aqui gato nos 35 anos, há aqui pussycat. E a
razão é muito simples: os 35 anos de Maçães não encaixam em nada porque ele
queria dizer 40 e não teve coragem de dizer, pelo menos neste tweet, porque o
diz nos outros. Para ele, há o 25 de Abril, essa revolução comunista que
condenou o país ao socialismo, e depois a vitória de Passos Coelho, ou melhor
ainda, a chegada da troika moralizadora, que implantou à força de
“inevitabilidade” uma nova revolução de bons costumes, punição para os de
baixo, porta-aviões para os justos empreendedores.
Os 35 anos de Maçães são uma variante de uma necessidade de
recriar um fio da história sem diferenças, igual para todos, de Soares a
Barroso, de Vasco Gonçalves a Cavaco, toda “hegemonicamente socialista” para
legitimar e radicalizar a ruptura. Esta é a questão mais interessante e mais
perigosa, porque é essa que acaba por ter circulação mediática e entrar na
cabeça das pessoas, para quem a crise é também um risco de meter dentro da
cabeça muito lixo, porque esta versão imbecil da história tem sucesso
populista.
"Eles são todos iguais”, “eles são todos culpados”, foi
a “classe política abrilista” que nos fez chegar onde chegámos, como se tudo o
que aconteceu desde o 25 de Abril fosse apenas um intróito para a bancarrota socrática.
Há apenas uma explicação e é a explicação útil para extremistas como Maçães: a
de que desde 1974 há uma única linha de continuidade, em que tudo o que
aconteceu, com todos os seus intervenientes, é apenas uma linha única a da
governação “despesista”, que culmina em Sócrates mas que tem como antecessores
Mário Soares e, principalmente, Cavaco Silva.
A guerra ideológica mais importante deste Governo não é com
Sócrates, é com Cavaco Silva, o inimigo íntimo, porque é de dentro. Ele é o
verdadeiro “criador do Monstro”, Sócrates foi apenas um discípulo menor que tem
a vantagem de ter levado o Monstro à sua conclusão natural, a bancarrota de
2011, e permitir a gloriosa entrada punitiva da troika. Tudo o que aconteceu
desde o 25 de Abril, a “classe política” hoje vilipendiada nos “velhos” para
ser redimida pelos “jovens” como Maçães, foi apenas uma e a mesma coisa,
“hegemonia socialista”.
Por isso, eles têm de rasoirar a história e as suas
múltiplas possibilidades virtuais, a luta pela democracia e liberdade de 1975,
a lenta construção de um Estado democrático com o afastamento do MFA do poder,
o combate por uma economia de mercado, desde os governos PS-CDS, até à revisão
constitucional que permitiu as privatizações, a melhoria da qualidade de vida
dos portugueses, as revoluções na mortalidade infantil, na saúde pública, na
democratização do ensino, a conquista difícil de direitos sociais e políticos,
ou seja, tudo equívocos, tudo assente no despesismo, tudo socialismo. Não houve
história, houve puro determinismo que culminou na actual revelação que o tweet
de Maçães denuncia em tom bíblico, “esses dias acabaram”. Chegou o Salvador.
Aleluia!
José Pacheco Pereira, Jornal Público. 07.08.2015