“Ajudar os
outros é mais atraente quando os outros também nos ajudam a nós” (1)
É um caso triste. É
uma linha que se consome de um modo de ver o mundo, uma construção que nos dá
as imagens que fazem um modo de viver em sociedade. A opinião pública abstracta
e indiferenciada gritará todos os dias a formulação insensível deste tipo de
gestos. Uma instituição com fins nobres, admirada pela sua vocação social e
humanitária desdobra-se no seu modo de ser em gestores refinados com os hábitos
modernos do empreendorismo. Por razões quase inexplicáveis (a curiosidade de
algum jornalista) as cumplicidades com o poder político emergem e a responsável
opinião pública fica chocada entre a hipótese de “crimes de gestão”, ou a
simples e subjectiva ética.
É um caso triste pelo que vemos da responsabilidade
pública, mas sobretudo é de um clarividente espelho do que na sociedade ainda
se olha como referentes de construção social e cultural. Na esclarecida opinião
pública e na capacidade transparente de olhar o mundo em que todos os partidos
são exímios executantes revela-se o essencial de uma forma de ser que ainda é o
nosso. Desta estranheza e ignorância chega-se à formulação de uma estratégia
que está em muitas instituições. Ela revela a nossa pobreza enquanto valor
cívico e denuncia o que são sociedades pobres sempre a procurar nos esquemas
acima da lei, acima da cidadania, esses triviais abusos de autoridade. É o
sonho de quem ainda é pobre, mas deseja a iconografia da riqueza.
Este é um caso de uma associação, mas que pode ser
ilustrado por tantas outras, empresas, instituições diversas da área da saúde
ou da educação. Os excessos da própria classe política, o aproveitamento sem
regras de recursos, o enriquecimento a todo o custo são o outro lado desta
disfunção. Disfunção social, manipulação pelos que chegam a centros de poder,
de decisão e que tudo podem sobre os outros. A falsa ética dos meios de
comunicação social é o outro lado desta circunferência, onde todo o
ressentimento se denuncia. Como sociedade são esses casos denunciados? Apenas e
ligeiramente aos que estão longe do proveito. Vemos tão longe como uma voz
pronunciada num buraco negro.
O caso Raríssimas é triste, apenas e só porque o
conhecemos melhor e porque lida com jovens com graves dificuldades de saúde. Há
na sociedade inúmeros casos semelhantes, o do aproveitamento pessoal de um bem
público, por que se trata de pessoas e das suas necessidades básicas. E é por
isso que não chega subir umas décimas no déficit externo para acharmos como
Marcelo Rebelo de Sousa, que “somos os nórdicos do século XXI”.
Entre uma
iconografia de redes sociais, de luxo aparente, de carros de gama alta, de
janotas bem vestidos, de consumidores iletrados de telemóveis e gadgets, somos
ainda a pobreza secular que nos espelha, que nos identifica, como uma incapaz
forma de ter coragem, de ter a ousadia de ser. Sem valores espirituais, sem
ideias morais dadas e vividas por uma ideia para a vida, dada por uma qualquer
crença, sem uma educação que saiba construir uma real cidadania, o que pode ser
o País senão esta amálgama de chicos-espertos e desconsoladas formas de
pobreza?
Entre análise de José Pacheco Pereira (Público) na leitura dos sinais funcionais e culturais da sociedade e o humor de Ricardo Araújo Pereira (Visão) talvez só nos reste mesmo rir. Rir como os progressistas da Geração 70 à volta de uma sociedade, a de oitocentos calcificada em valores desiguais. Todos sabemos que as trombetas à volta de Jericó foram muito mais eficazes para os salvar de uma forma de prisão, a de uma insensibilidade humana. As análises talvez já não sirvam numa sociedade que confunde bem público e interesse privado, humanidade e negócios políticos.
A partir das leituras de José Pacheco Pereira, (A sopa envenenada), Jornal Público, 16.12.2017
(1) Ricardo Araújo Pereira, (Aves raríssimas), Visão, Dezembro, 2017.
Imagem - Copyright: Ekkachai Kemkum.
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