domingo, 30 de abril de 2017

Leituras - O estado do bosque

Espanta-me sentir que o verde-azulado da paisagem é mais belo do que alguma vez foi. Rosas espalhadas pelo vale. Chega até mim o seu perfume. As pétalas são como brasas no gelo. Não sei explicar, mas tudo ganha uma beleza  que antes não tinha. Silenciosas espaços abertos."

José Tolentino Mendonça cultiva uma sabedoria que se alimenta dos textos que fizeram a tradição cultural do Ocidente e lhe deram um conteúdo civilizacional. O mundo grego, naturalmente, a herança latina, o antigo e o novo Testamento e um sentido próprio de encontrar o silêncio, os feixes de luz nos espaços que fazem a vida do homem. A sua poesia interroga a memória, a casa, os espaços do mundo, como formas de conhecimento. 

Se a poesia é a formulação de uma paisagem que se acende sobre o vivido, o observado, o sentido, a de Tolentino Mendonça dá conta desse processo. O que não deixa de ser um enigma num homem que veste os rituais e os símbolos de uma religião, que tem ela própria sido demasiadas vezes insensível à respiração humana.

O estado do bosque expressa essa procura pela essência do que o Homem vive, das suas experiências e a busca de uma aprendizagem feita entre os elementos físicos do mundo. Texto de natureza dramática, O estado do bosque dá-nos sete cenas e cnco personagens, fazendo a recuperação de um tempo primordial, o que afasta a técnica, a massificação de comportamentos para nos iluminar na beleza que nos rodeia, na luz ao nosso dispor. 

E, se nessa luz mora uma tranquilidade, nós nos religamos a uma profunda ligação ao mundo e por isso mesmo um conhecimento que nos leva a ver "o rosto de Deus". E é evidente que esta religação não se  alberga em templos feitos por homens , mas na estrelas que nos iluminam. Iluminação de um universo que nos acolhe, que diferentes povos conhecem em línguas, como cantos, estrelas de um cosmos. "Canopus", ou "Kali Nub", onde "o mundo parece abrir-se" (p.61).

É a sua descoberta em cada homem, essa estrela, como também uma casa, um bosque, uma palavra, uma linguagem onde repousem o brilho da vida que se torna a anunciação de uma esperança. Aquela que proclama em nós uma viagem,  o amplo conhecimento do mundo. O estado do bosque  é um pequeno livro cheio de imagens sobre o que somos em civilizações sitiadas por muitos nadas, com pessoas em sentimento de vazio. Este pequeno texto dá-nos um conjunto de sinais que são o da nossa própria respiração.

Afinal, esse caminho descoberto no natural, a viagem no interior do coração conduzirá a essa essência fundamental: "Tu és a árvore. Tu és o sopro do bosque. Tu és o cheiro forte e amargo dos fetos. Tu és a linha de névoa flutuante. Não digas: aprendo a caminhar na escuridão. Diz somente: sou" (p. 32). Livro publicado há já três anos, O estado do bosque é um texto dramático que vale a pena descobrir, ou reler. Nele encontramos uma sabedoria para iluminar tempos perdidos em tecnologia, em écrans de pouco brilho interior.  

José Tolentino Mendonça. (2013). O estado do bosque. Lisboa: Assírio & Alvim.

domingo, 16 de abril de 2017

Leituras - As mães da Síria

A linguagem foi uma criação de uma civilização, de um homem, de uma forma de dar nomes às coisas. Os nomes das coisas eram a forma de compreender algo, era o reconhecimento das coisas, o sentido estético de uma forma que era igualmente uma experiência. O desastre humanitário na Síria, o modo como se aproveita a vida humana para os mais funestos objectivos faz-nos recordar que a linguagem já não é capaz de nomear o maior desastre contra a vida humana. Alepo é a morte da lingugam, pois não há formas de reconhecer a vida. Isabel Aguiar, de um modo alegórico disse-o, com a melhor forma possível. A ABC News, empresa de media dos Estados Unidos patrocina uma banda desenhada sobre esse desastre. É uma outra forma de fazer compreender o incompreensível.

"Talvez um vento áspero vindo do deserto
Transporte o meu coração para um mais além
Onde jejuarei para sempre
...
Cidade do mundo a mais antiga
Neste princípio escaldante de Julho
Morrerei numa pérpetua aliança
Aos astros e aos planetas
...
Quero ser uma árvore queimada nesta tempestade
Que a todos mata
Desde as formigas aos confins do género humano
Tudo é alquimia de sofrimento
...
Pão do sangue do cordeiro
Amassado com sal insano
...
Tudo é chama infernal que não saberei quando cessa".

Isabel Aguiar. (2016). "VI", in As mães da Síria. Lisboa: Licorne. 

sábado, 15 de abril de 2017

O belo - a sua representação pela arte

O belo na representação da arte, a fruição estética da criação!

Os artistas e criadores em diferentes épocas tiveram motivações diversas. Uma das suas fortes motivações foi ainda assim o prazer das obras apreciadas. A procura do belo e a tentativa de atingir um nível de perfeição conduziu muitas criações. Definido como "gracioso", "bonito", "maravilhoso", o belo muitas vezes se identificou com o bom. Na nossa expressão diária muitas vezes o que definimos como belo é o que nos agrada ou que desejamos ter.

Muitas vezes associamos o belo ao bom, ao que transmite um ideal, que pode estar associado a um mito, ou a um herói. Esse idela pode ser eeconhecido ou identificado como bom, mas pelas circunstâncias de sofrimento desses heróis, não s etransforma num desejo nosso. Esse sentido de bem afasta-se das nossas opções. Existe pois uma diferença crucial entre o Belo eo Desejo.

O belo visto numa obra de arte é algo que não suscita o nosso desejo, mas algo que existe por si, como representação bela de algo quem muitas vezes possa o não ser, como em algumas situações da natureza. É desse belo sentido e admirado numa cultura que aqui falaremos. O Belo exprimido na Arte, mas também pela representação da natureza, pois esta foi em muitos momentos a representação do Belo. 

Por vezes representações de uma época podem ser consideradas belas, ainda que de contornos morais duvidosos. Assim deixaremos nesta tag a evolução da beleza tendo em atenção que ela nunca foi um absoluto e evoluiu ao longo da História nas suas representações mitológicas, da natureza e da visão da sociedade e dos seus elementos. E há naturalmente que reconhecer que muitas vezes, uma mesma época criou diferentes ideias de belo, de acordo com a sua própria evolução cultural.

Estela grega de uma criança, séc. V a. C.
Dartmouth College's Hood Museum; The Onassis Cultural Center in New York
#Obelocomorepresentação

quinta-feira, 13 de abril de 2017

O belo

"O que é belo há de ser eternamente uma alegria, e há de seguir presente.  Nãp morre; onde quer que a vida breve nos leve, há de nos dar um sono leve, cheio de sonhos e de calmo alento." (1)

O belo é umas das áreas em que a Estética, como disciplina tentou definir um conjunto de conceitos evolutivos relacionando as ideias, a cultura, o social e a representação de formas diversas pela expressão artística. A Estética foi já lida de muitos modos e talvez a mais interessante seja aquela que nos diz que ela é uma forma sensível de conhecer, algo como uma alternativa à razão. Os objectos estéticos criam em nós formas de sentir. É consensual que o belo se associa muitas vezes ao que agrada, ao que dá uma satisfação capaz de um entusiasmo. O belo tem si as suas próprias formas de beleza, ou somos nós como observadores a construir um conceito?

Quando entramos numa igreja românica, ou numa catedral gótica, ou num templo budista a beleza emerge como uma realidade. Esses são espaços de beleza. A primeira pergunta a fazer é por que chamamos belos a esses espaços e por que os espaços de oração e recolhimento são portadores de uma ideia de Beleza? A segunda questão pertinente é a de reconhecer que ul livro como a Bíblia está ausente da formulação de belo. A única aparição da ideia de belo refere-se ao reino de Salomão e a sua comparação com os lírios do campo. A única referência de belo nas Escrituras Sagradas é uma referência natural e relativo a uma dimensão espontânea. Terceira questão que importa fazer, há algo de imutável no belo, há nele algo de permanente?

Quando pensamos em belo vem-nos à mente que ele como tudo o que envolve a vida humana é relativa aos tempos sociais e culturais. O que hoje achamos belo amanhã muda de sentido, pois os códigos de beleza alteram-se. E, no entanto ao olharmos para a Vénus de Milo, ou o Discóbolo de Mirone, expressões de séculos encontramos ainda ali um ideal de belo, uma representação que achamos bonito, tal como o podemos ver num retrato de Vermeer ou numa natureza de Monet. Encontramos aí uma representação substantiva de belo, ainda que saibamos que essa aquisição do belo se fez pelos valores sensoriais, algo que acedemos de uma forma diversa quando tentamos definir o Bem ou a Verdade.

Quando falamos do belo como experiência sensorial perguntamo-nos como essa aquisição se faz em cada um de nós. É pela educação, ou apenas por algo que cada um de nós pode ou não ter incentivado como uma procura. As crianças são um exemplo muito significativo, dessa forma de encontrar um modo de comunicação, como se essa observação fosse um diálogo entre nós e a arte, como entre cada um de nós e outra pessoa, ou com a simples observação de uma paisagem, da leitura de um livro, algo a que poderíamos chamar uma Graça. O belo que se apresenta como alago que está para lá da compreensão.
João Bénard da Costa (2) contava uma história interessante, a de que uma criança ao ler excertos dos Lusíadas dizia, "Eu não percebo nada disto, mas isto é tão bonito". E talvez que em muitas circunstâncias o belo seja não só o que ultrapassa a compreensão, ou que está para além dela, mas que o encontro com algo de maravilhoso seja a incompreensão. A visita a um templo oriental, como o templo dourado em Kyoto provoca um sentido diferente de percepção do espiritual, mas ainda assim achamo-lo belo. E, todavia compreendemos a sua funcionalidade?

Não a percebemos e talvez seja isso que o belo seja, o que não se percebe tão bem, ou se percebe menos e, justamente porque a compreensão é do nível do mistério. Podemos visitar o Epidauro, conhecer as características técnicas daquele espaço, mas a transcendência pode não nos contemplar. E assim o que fazemos é o estudo da Estética, em que relacionamos a a representação do belo com as ideias filosóficas de um tempo. E aqui temos muitas possibilidades.

Desde os Gregos que a ideia de belo evoluiu. A sabedoria foi a primeira forma de belo, foi nas palavras dos poetas que ela primeiro se definiu, com o que conhecemos da obra de Homero e Hesíodo. O belo relaciona-se com essa dimensão essencial de todos, a vida ainda. Como a podemos alimentar? Com que palavras? Com que sabedoria habitaremos a vida e a sua essência, o seu coração? Como a entendemos entre uma ideia secular de destino, um grito de ar, de visão entre momentos escassos, esse nada que varia entre promessas e nenhuma crença, apenas um fio de escuro. Parece pois essencial ter algum pensamento, descobrir nela uma sabedoria para a construir, para a edificar. A palavra sabedoria conduz-nos à ideia de uma aprendizagem.

Sophia criou sem dúvida uma ideia de belo que retomava valores clássicos, mas que os afirmava em novos tempos. Fazia a ligação entre o Belo e o Bem. Com ela a experiência estética transforma-se numa experiência ética e deu-nos essas palavras essenciais a da relação justa entre as coisas e os homens. É dessa construção de um valor inteligível da vida, a que o belo se encontra associado. É dessa viagem desde os Gregos aos inícios da modernidade que aqui falaremos em curtos posts.

(1) Kohn Keats. (1841). "Endymion", in The poetical works of John Keats. London: William Smith.
(2) João Benard da Costa, Ciclo de conferências "Ecce Homo", Lisboa, Maio de 2007.
Imagem - Pavilhão prateado, (Ginkaku-ji) - Kyoto, (séc. XV).

terça-feira, 11 de abril de 2017

Leituras - Kyoto

"Não se estava na estação das azáleas, mas o verde das suas folhas fazia ressaltar as túlipas."

Kyoto é um livro escrtito em 1962 por Yasunari Kawabata, e que se tornou numa das suas mais importantes obras, ele que é uma referência das letras japonesas. O livro conta-nos a história de Chieko, uma jovem de vinte anos rodeada por sinais evidentes de solidão que vive a sua vida num ambiente familiar cuidado, envolvente, mas que não lhe dá a identificação que ela precisa. Os pais têm um atelier de kimonos e obis. O desenho de kimonos apresenta-se como um elemento narrativo, por onde as qualidades das personagens se revelam, a sua função no corpo social.

O livro não tem grandes enredos narrativos, nem suspenses de acção. Aquilo que nos conduz é a procura de Chieko por um elemento que ela julga existir a sua irmã gémea, de que teria sido afastada logo após o nascimento. A narrativa evolui para essa procura com Naeko que se consfirma no fim do livro. O seu reencontro e a sua vida comum é vivido dentro da identidade de cada uma delas e não, como limitações sociais de uma estrutura familiar mais rígida, o que nos dá um valor de significado sobre o papel dos indivíduos no Japão dos anos cinquenta.

Kyoto é um imenso livro porque conta-nos uma história simples cheia de referências às tradições de Kyoto, aos seus símbolos de espitirualidade e nos faz acompanhar por um desenho das paisagens de uma forma perfeita e intensa. Yasunari Kawabata era considerado como escritor, um desenhador de palavras, no sentido de criar imagens visuais, o que aqui aparece de forma muito conseguida e muito bela.

Ao ler o livro somos convidados a fazer uma viagem de delicadeza, de tomar contacto com árevores, flores, cores, imagens da Natureza, como se a sua absorção pelo próprio indivíduo conduzisse auma felicidade, que cada um na relação com os outros devesse igualmente partilhar. Kyoto é uma viagem a uma cidade e a um tempo, onde se anunciam novas regras económicas e a queda de modos de vida ancestrais parecem perigar. 

Kyoto apresenta-nos ainda uma denúncia, feita de modo poética, um geografia a revelar o que se pode perder, não chega a ser um panfleto e nesse sentido é uma revelação de um mundo. De algum modo as diferentes características das duas irmãs assinalam as diferenças que o Japão estava a viver.  O armazém de Takichiro que resistiu aos traços e elementos de modernidade é a voz de Kawabata a dar-nos o que de ancestral e de tradicional a vida se compunha, onde a vida simplese  a contemplação da natureza eram elementos essenciais.

Yasunari Kawabata. (2012). Kyoto. Lisboa: D. Quixote.
Imagem - capa da edição em França

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Maria Helena da Rocha Pereira (In Memoriam)

"A marginalização e desprezo pelo estudo das línguas clássicas é um sintoma de ignorância. O grego é, para mim a mais bela das línguas. É muito afim da matemática. É uma língua de uma grande riqueza. Há na estrutura da língua qualquer coisa de geométrico que a aproxima da matemática. O latim é essencial para o estudo das línguas românicas em geral. Não só por por contribuir para diminuírem os erros e as as barbaridades cometidas no uso da língua, mas sobretudo pelo que o latim significa, tal como o grego, de disciplina do espírito, do pensamento."

Deixa-nos hoje, um pouco mais de noventa anos depois, na mesma cidade onde nasceu, o Porto e de onde partiu para Coimbra para estudar Filologia Clássica. Da cidade do Mondego partiria para Oxford, abraçaria as colunas da Acrópole e de várias voltas ao mundo fixar-se-ia, como professora de Estudos de Cultura Clássica, tendo-se tornado a primeira mulher catedrática, justamente pela Universidade de Coimbra, em 1957. 

As linhas de uma mensagem são insuficientes para dar conta do valor humano e cultural de uma mulher portadora de um conhecimento tão elevado e que deu um contributo essencial para o conhecimento da cultura e da língua gregas e igualmente dos estudos clássicos. O currículo é interminável. Foi directora do Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra e do Instituto de Estudos Clássicos da mesma Universidade e ainda directora das revistas Humanitas e Biblos.

Maria Helena da Rocha Pereira pertenceu a diferentes academias e sociedades científicas, quer nacionais, quer internacionais. Foi vice-reitora da Universidade de Coimbra e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras. Foi distinguida com a Grã Cruz da Ordem de Santiago de Espada, recebeu numerosas distinções, entre as quais o prémio Ensaio do Pen Clube Português, Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Eduardo Lourenço e Prémio Jacinto Prado Coelho.

A sua obra composta por mais de trezentos títulos, contém monografias, artigos de enciclopédias e traduções. A sua obra mais conhecida Estudos de História da Cultura Clássica funcionou como um clássico para as licenciaturas na área da Literatura e da História. Publicou ainda algumas obras sobre autores clássicos, com destaque para Platão, Anacreonte, Píndaro e Pausânias. Dedicou uma especial atenção à cerâmica grega, tendo publicado textos sobre os vasos gregos encontrados em Portugal. 

Maria Helena da Rocha Pereira parte um pouco como viveu, com um silêncio que emerge ele próprio em formas modestas, mas de profunda agucidade sobre o que escreveu e ensinou. Maria Helena da Rocha Pereira era um sábio, diríamos uma sábia e nesse sentido mesmo quando entendemos a vida como uma metamorfose noutra coisa, é uma perda enorme por tudo o que sabia e tentou ensinar. Não se achava uma mestra, pois ela não considerava que o sábio fosse o ilustre conhecedor numa torre de marfim, mas sim aquele que cria discípulos.

Certamente teve algum desgosto por esta ignorância que tem um desprezo pelos estudos clássicos que se assiste no ensino em geral. Esta perda que se ausenta de uma leitura do Belo entre a Literatura e os objectos arqueológicos. Esta ideia de que o tecnológico é o meio de nos fazer felizes e perduráveis e que não estuda o helenismo no seio da nossa cultura, ou que abdica do latim a quem estuda o Direito.

A ela devemos agradecer, muito, tanto que nos ensinou. O acesso aos autores clássicos, as formas da arte grega, a ideia de que é muito importante aprender e usar bem uma língua e essa ideia que pedagogos de precária formação pretendem fazer esquecer, o valor da memória. A memória como o definiu George Steiner, afirmar uma primeira resposta e aceder a essa nomeação feita pelos poetas antigos, a mãe das Musas. Como ela disse, usar a Memória é iniciar a construção de um edifício. A Maria Helena Rocha Pereira devemos essa ideia transformadora, a da procura infinita de saber, de conhecer. Obrigado por tantas linhas de rumo!

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Leituras - Maças silvestres e cores de Outono

A beleza e a verdadeira riqueza são sempre assim, baratas e desprezadas. O Paraíso poderia ser definido como o lugar que os homens evitam.” (1)

Henry David Thoreau é uma das grandes figuras do pensamento de Oitocentos, tendo influenciado decisivamente a formação do movimento filosófico do transcendentalismo que surgiu na Nova Inglaterra em meados do século XIX. A sua obra, influenciada por Ralph Emerson centrou a sua atenção no valor da Natureza e como esta é decisiva para o bem estar do homem e para a experimentação de uma real liberdade.

Conhecido pelas suas obras decisivas, Walden, ou a vida nos bosques, Caminhada, A vida sem princípios, ou ainda A desobediência civil, escreveu na fase final da sua vida alguns artigos que se inserem no Nature writing. Maçãs silvestres e cores de Outono são dois artigos que se inscrevem nos escritos sobre a Natureza e que foram publicados em 1826, na revista The Atlantic Monthly. Não é possível compreender as ideias que influenciaram os movimentos de luta pela auto-determinação no século XX em diferentes continentes, ou os protestos pelos direitos cívicos sem conhecer o pensamento de Thoreau.

Muita da acção pacifista, da verdade inerente a cada homem que Gandhi ou Luther King deram corpo foi influenciada por Henry David Thoreau. Neste sentido o seu pensamento alarga-se muito para lá do século XIX e tornou-se indispensável neste século, pois nele se funda a procura de um sentido vivo da existência.

Quando Thoreau viveu, a América iniciava a sua industrialização. os sinais da massificação eram ainda residuais, mas ele compreendeu que esse mundo poderia destruir a autenticidade da vida humana. E esta estava dependente das lições e do saber gratuitos da Natureza. Maçãs silvestres e cores de Outono são a apresentação da Natureza feita por Thoreau, com as suas caminhadas nos bosques, onde nos faz belas descrições do que observa, temperando as suas palavras com uma evidente lucidez rebelde e uma visão espirituosa do que vê.  

É o mundo natural que se exalta, as suas árvores, os seus frutos, as suas flores, a tonalidade vibrante de cores. Um mundo natural que ensina a beleza simples da vida em maturação e todo o despojamento na metamorfose final. É um grande livro, uma obra de referência que nos ensina a olhar, a saber desfrutar o natural e como este influencia o paladar dos sabores e a nossa reflexão sobre a própria vida.

Maçãs silvestres e cores de Outono é um livro que incentiva a exploração de uma espiritualidade, um sentido ou capacidade de desfrutar a Natureza, as suas árvores, os seus frutos e como eles nos dão algo que está para lá da compra e da venda, um tempo etéreo. Thoreau exalta o sentido da contemplação explorando essa capacidade pouco treinada, a de olhar os pormenores, aquilo que no natural nos rodeia. A Natureza como forma de aprendizagem para a própria essência do homem está no coração da escrita de Thoreau.

A beleza e a felicidade são aprendidos na Natureza para reconquistar o mais importante, "o silêncio, a vida saudável, a contemplação, a tranquilidade, o respeito pelos animais e pelas plantas, bem como uma vivência espiritual e transcendente que se obtém da comunhão com ela." (2)

(1; 2) - Henry David Thoreau. (2016).  Maçã silvestres e cores de Outono. Lisboa: Antígona. 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

O Nó Górdio

Dedicado à memória de José Medeiros Ferreira, 
que uma vez, numa entrevista, falou do “nó górdio”
a uma jornalista, que lhe disse que não sabia o que aquilo era
e recebeu como resposta: “Se não sabe, devia saber”.

Um Prémio Pessoa mais que merecido foi atribuído a Frederico Lourenço, pela sua obra de especialista e tradutor de literatura clássica, em particular literatura grega. A sua recente tradução da Bíblia a partir do texto grego tem sido saudada como um acontecimento cultural de relevo, mas Frederico Lourenço já tinha traduzido muitos outros textos clássicos, com relevo para Homero. É apenas pena, mas as coisas são como são, que muitos Prémios Pessoa sejam para o homem que foi falado nos seis meses anteriores ao prémio, mas isso é infelizmente um costume cada vez mais comum, resultado da mediatização de toda a vida pública. Num dos sítios em que esta mediatização mais estragos faz é na cultura, mas isso não invalida o mérito do prémio a Lourenço.

O prémio a Frederico Lourenço, no entanto, não nos deve iludir. O mundo sobre o qual ele estuda, escreve e traduz é cada vez menos presente no espaço público do saber, onde cada vez menos se sabe sobre o mundo clássico, e, embora nunca se soubesse muito comparado com os países da Reforma, também cada vez menos se sabe sobre a Bíblia. Não nos devemos iludir quanto ao valor que a escola, a universidade, a sociedade, a comunicação – já para não falar das chamadas “redes sociais” – e a política hoje dão às humanidades e aos estudos clássicos. Esse valor é quase nulo. Pelo contrário, é entendido como um conhecimento inútil, que justifica o corte de financiamentos, a colocação no último lugar da fila, quando não da extinção curricular, das disciplinas do Latim e do Grego, que conseguem ficar atrás da Filosofia. E não é só este cerco às humanidades clássicas — em bom rigor a todas as humanidades — é a sua desvalorização pública implícita em muito documento, declaração política, e em acto.

O mais flagrante exemplo é a defesa de um Acordo Ortográfico que se pretende impor manu militari, e que corta as raízes ortográficas do português no latim. Já para não falar das invectivas contra o conhecimento daquele “comissário” jovem que melhor do que ninguém explica a atitude do extinto Governo PSD-CDS para com estas matérias. E quem escreve ist, considera que se é tanto ignorante se não se souber o que é o princípio de Arquimedes, ou a segunda lei da termodinâmica, como desconhecer quem era Polifemo ou Salomão, ou Judite ou o Bom Samaritano.

A menorização das humanidades, e a ainda maior desvalorização dos estudos clássicos, vem junto com a redução da memória colectiva. A perda de raízes é uma constante nas sociedades contemporâneas, não só em Portugal, mas em Portugal com a gravidade maior de que a nova ignorância se soma à antiga. E em que há pouca consciência dos estragos que essa nova ignorância nos faz, fazendo-nos andar para trás.

O problema actual da ignorância é que a ignorância nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores, tão arrogantes cavaleiros contra o saber, como nos dias de hoje. Um destes frutos da nova ignorância é Presidente dos EUA, e acha que tudo o que é preciso saber para se ter sucesso é conduzir o país ao modelo dos seus negócios predadores, e das ideias racistas e xenófobas que nascem nos lugares mais infectos das redes sociais. E estando ele onde está, escolhe os seus colaboradores ao mesmo modelo, que escolherão os altos funcionários pela mesma bitola – na verdade "comissários" destinados a zelar pelo #MAGA – e por aí adiante, embrutecendo a sociedade de cima para baixo, dando toda a razão ao ditado popular de que o “peixe apodrece pela cabeça”. A dissolução de todos os padrões que implicavam que era preciso saber alguma coisa de ambiente, de comércio internacional, de política externa, de educação para se exercerem funções nessas áreas explicam por que razão a “desconfiança do conhecimento” (“distrust for expertise”) e a dissolução da verdade (“fake news”) são hoje os critérios de funcionamento da administração Trump. E enganam-se todos os que não percebem que estas atitudes são modernas, moderníssimas, tanto como o último telefone inteligente, para usar uma comparação apropriada.

E não é só nos EUA, também cá temos cada vez mais activos zeladores da ignorância que querem colocar uma bola onde costumava, quando os animais falavam, estar uma cabeça humana. As ideias circulantes de que se substituem “literacias”, como agora se diz, que “já nada dizem” aos jovens de hoje (e aos adultos diga-se de passagem), por outras “literacias” que as substituem e são “mais apelativas” porque se podem digitar num telefone, ou numa mensagem de 140 caracteres, ou “postar” como fotografias de comida, ou a loquacidade vazia e deprimente do WhatsApp, destinadas a substituir a sociabilidade presencial pela sociabilidade virtual, são instrumentais para justificar a ignorância e varrer dos currículos tudo aquilo que parece inútil, substituindo o conhecimento pela tagarelice e pelo generalizado défice de atenção.

Não. Os conhecimentos não se substituem uns aos outros, complementam-se. E o que falta, faz sempre falta. Várias vezes me interrogo como é possível atirar alunos do secundário para ler Os Maias, ou seja que obra for de Eça, ou Camilo, ou Camões, ou Gil Vicente, ou Nemésio, ou Jorge de Sena, ou seja lá que obra literária que é suposto ler-se no secundário e nos anos de escolaridade obrigatória, sem saber nada de mitologia grega ou da Bíblia, já para não falar do rico vocabulário do português que não cabe numa mensagem do Twitter. Não sei, aliás, por que se pensa nos nossos dias que “não cabe” na cabeça das pessoas muita coisa. É irónico que a modernidade nos forneça discos rígidos com terabites de espaço, e pareça encolher-nos as cabeças.

Voltando a Frederico Lourenço, podemos de facto viver confortavelmente, em particular se herdarmos alguma coisa, e ter sucesso, sem saber nada da Odisseia, ou da Antologia Grega, saber quem era Argos ou Tifão, desconhecer tudo de Esparta e Atenas, de Sófocles e Tucídides ou nunca ter lido uma “vida” de Plutarco (por falar nisso, uma leitura obrigatória durante mais de um milénio para todos os que quisessem ter uma vida pública…) ou dos relatos em que um profeta apocalíptico chamado Jesus anunciava o fim do mundo e o caminho da “salvação”. Podemos. Mas somos mais pobres por isso.

Antigamente isto chamava-se “experiência indirecta”, não substituía a directa, mas ajudava muito. E, numa curva da vida, em vez de ir a correr a um praticante de qualquer terapia arcana, ou à bruxa – o que, para a nova ignorância, não é tão diferente como isso – sempre se podia saber que outros homens e mulheres, que vivem no mundo dos “antigos”, conhecem alguma coisa sobre a doença ou a morte, sobre a felicidade e a curiosidade, sobre a esperança e o destino inelutável, sobre a heroicidade e a cobardia, sobre a traição e a lealdade, sobre a honra e a vergonha, sobre a intriga, a moda e o sexo. As suas palavras tinham toda a força, porque eram muitas vezes as primeiras que eram escritas sobre as mais humanas das atitudes, e estão no terreno que pisamos, mesmo que não o saibamos. Mas vale muito mais saber. (1)


(1) - José Pacheco Pereira, "O Nó Górdio", in Jornal Público. 03.04.2017

P.S.: O nó górdio é uma tradição, ou lenda que nasceu na terras dos Frígios, que hoje corresponde à zona central da Turquia. Existia uma lenda, segundo a qual, um oráculo tinha previsto que este povo deveria coroar rei o primeiro homem que entrasse na cidade em um carro de bois. O primeiro a se encaixar nessa descrição foi Górdio, um simples camponês.
 Depois de coroado, o homem amarrou sua carroça do lado de fora do templo da cidade e dedicou o veículo a Zeus. O nó era extremamente elaborado, tendo endurecido com o tempo. Os Frígios acreditavam que quem conseguisse desatar o complicado nó conquistaria toda a Ásia.

Alexandre conquistou, como sabemos grandes zonas da Ásia e ao saber desta lenda quis tentar desatar esse nó. Ao conseguir com  a sua espada desatar o nó górdio ficou como o homem capaz de grandes feitos. A expressão desatar o nó górdio significa ter a capacidade de resolver uma situação muito problemática e que necessita de uma estratégia fora dos padrões habituais. As Humanidades precisão de muita sabedoria e luta para que lhes sejam devolvidas um sentido essencial nas sociedades humanas e nesse sentido vivem na sombra de um difícil nó górdio.

sábado, 1 de abril de 2017

Leituras - Palimpsesto

"Leio um texto e vou-o cobrindo com o meu próprio texto que esboço no alto da página mas que projecta a sua sombra escrita sobre toda a mancha do livro. Esta sobreposição textual tem por fonte os olhos, parece-me que um fino pano flutua entre os olhos e a mão e acaba cobrindo como uma rede, uma nuvem, o já escrito. O meu texto é completamente transparente e percebo a topografia das primeiras palavras. " Maria Gabriela Llansol. (1999). O Livro das Comunidades.

Palimpsesto significa no grego antigo aquilo que se raspa num texto para voltar a escrever de novo. Na Idade Média apagava-se textos em materiais que voltavam a ser reescritos, pois os pergaminhos ou os antigos papiros eram reutilizados. Palimsesto é o nome de um excelente livro de poesia. Palavras reescritas sobre o texto que lemos, as referências com que os nossos olhos se depararam, uma nuvem a pairar sobre a nossa própria transparaência. 

Palimsesto é um livro de poesia que está organizado em quatro áreas, datadas de diferentes anos:
      - Volume I. Da Vida das Marionetas {Para uma Dramaturgia do Corpo Inanimado} - 2012; 
      - Volume II: Bartlebys Reunidos {Para uma Ética da Impotência} - 2013;
      - Volume III: Comércio com Fantasmas {Para uma Episteolografian Espectral} - 2014;
      - Volume IV: Anjos Necessários {Para uma Escrita do Desejo} - 2015.

Palimsesto é um livro de poesia que procura fazer uma homenagem a Charles Baudelaire e em especial ao seu livro, publicado em 1860, Les paradis artifiels. A ideia base do livro suporta-se num conceito de abordagem proposto por Walter Benjamim, o de que somos aqui esperados há muito e que só podemos escrever com o eco de muitos silêncios, todos os que nos precedram. Assim, a fragilidade da vida, a morte e o amor como forma de redenção são temas abordados nesta poesia, e naturalmente a escrita, a linguagem como ponto de partida para construir um sentido com o mundo. A escrita, "perante a condenação de estarmos vivos e a forma de deixarmo-nos contagiar pela transparência enigmática do amor e da morte." (pág. 131).

A escrita faz-nos escrever o que somos, o que vemos, o que sentimos sobre a rasura do mundo, sobre o já visto e faz-nos ver pelo poema espaços ocultos, mesmo que sejam o brilho de pontos a morrer, no exacto momento em que aluz se acende (Roland Barthes). O livro faz refeerências a figuras, ou objectos da literatura, do cinema, da música, da ficção  e nelas deposita um novo conjunto de palavras, um olhar numa superfície já existente. Palimsesto é um livro de poesia que implica referências culturais e atmosferas que nos fazem olhar para elas próprias e descobrir este novo olhar, este novo Palimsesto. 

Ricardo Gil Soeiro. (2016). Palimpsesto. Porto: Deriva Editores.