quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Nas palavras de um mensageiro

O céu anunciava~se cinzento, como uma catedral larga e fria, de pura neblina, uma dança de alturas. A cidade oferecia-se como um desejo, as promessas dos homens em santuários de ruas, como uma indecifrável espera. Ouvem-se palavras milenares, de um mensageiro. Terry pensou, - pode um mensageiro renascer todos os anos, durante dois milénios? Pareceu-lhe que não. 
Então, algo se lhe afigurou essencial, - não se tratava de uma mensageiro, era um Deus, pois só uma divindade poderia renascer todos os anos. Um Deus sem homens, as palavras repetidas que sacerdotes souberam transformar numa ciência de pedras erguidas. Todo o ritual das palavras ensaiadas em livros escritos em silêncio esquecia esse desejo antigo de pescadores, a libertação dos mais pobres, os oprimidos da terra. E ele na verdade morreu a anunciar na voz do vento todo o rasto de um amor que os edifícios de pedra não conhecem. 
Do seu corpo belo e puro nasceu uma religião, fundamento de poder e o seu sangue viveu para uma mensagem de homens, não de deuses. Celebrado como um Deus ele é o mensageiro do que os homens não compreendem. Em simulacros de amor, uma legião de crentes, os admiradores das catedrais esquecidas de misericórdia vivem a intermitência, como um presente esquecido. Vivem no absoluto desconhecimento dos homens, a sabedoria deixada por um mensageiro, o Deus dos seus túmulos, não o homem que adormecia nas águas os beijos do rosto. 
Em dias esquecidos de um tempo por contar, palavras antigas parecerão a esperança inconclusiva aos homens, a sabedoria acumulada em pedras que não resgatam o amor de todos os que se perderam em torres de silêncio, em gestos sem rosto.
Imagem: © - Ben-Hur (1953, relaização de William Wyler).

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre o medo...

Existe sempre este medo, este pânico de não pertencer. Este desejo constante e persistente de querermos que nos olhem com respeito, com admiração, de não sermos vistos sozinhos, perdidos, sem direção. Queremos ser aceites. Queremos acordar com algum intuito, viver por alguma coisa e adormecer concretizados. Queremos todos isto com muita força, mas existe sempre este medo de fracassar. Medo de que não valha a pena. Medo da ausência de sentido no esforço que fazemos para deixar de ter medo.

Existe o medo que pode ser uma ponte para o melhor que há em nós, porque nos faz reagir e superar, sermos melhores e termos coragem! Existe o medo que pode ser uma ponte para o pior que há no ser humano, o medo mais cego, o desespero mais vulnerável, fruto do desprezo, da segregação, da distância, da revolta. Medo como bomba-relógio,atada à cintura, pronto a gritar para que todos o ouçam. Medo como arma, como metralhadora nas mãos de um jovem de Massamá que finalmente pertence, que finalmente acha que encontrou razão para acordar de manhã e o olharem com respeito. 

Há o vídeo desse jovem de Massamá a falar de matança porque agora já pode gravar vídeos, porque agora já pertence a alguma coisa, porque agora já sente o  orgulho de ser aceite pelos novos amigos, ou por um Deus qualquer, seja ele qual for, mande ele fazer o que for, mas que o aceita. Há  este desejo imensurável de ser aceite. Este desejo constante, em  todos nós, que pode ser a ponte para o melhor de nós, que pode ser a ponte para o pior de nós. Existe toda uma geração presa a redes sociais e à necessidade incessante de ser cool. Toda uma geração que se acha livre, mas que é manipulada pela globalização da cultura cool, das modas cool, das tradições cool, das opiniões cool, dos  preconceitos cool, todo um oceano de selfies que dizem "eu juro que sou isto!! Vejam!! Aceitem-me!! Eu juro que não tenho medo!!". 

Todo  um oceano de contas de Instangram e Facebook e Twitter com jovens a mostrar desesperadamente como ser cool. No meio deste oceano existem contas de Instangram e Facebbok e Twitter de jihadistas que mostram a jovens perdidos de MAssamá como pode ser cool ser jihadista. Existe esta dor de não pertencer a nada, a dor de viver numa sociedade civilizada mas cuja civilização não chega a todos, cuja educação, informação, respeito ou qualquer tipo de amor não chega a todos; num mundo que desvaneceu a própria identidade, a humanidade e espiritualidade e se esqueceu que toda a gente devia ter o direito de ser livre, livre de ter uma identidade e que essa identidade não devia nunca ser avaliada ou incentivada pelo número de likes. Existe este medo de não ter likes...! 

Existe esta tendência de culpar a religião quando uma formação espiritual podia ter evitado tanta coisa; podia ter evitado tanta coisa a consciência de nós próprios enquanto seres espirituais, profundos e divinos, cheios de  bondade, infinitos, com ou sem Deuses a olhar por nós.  Existe sim esta espiritualidade de bolso alimentada por frases feitas postadas em redes sociais e partilhadas como quem acaba de descobrir o  que todos devíamos ter como certo desde sempre: "Nós Somos, Existimos." (1)

Existe esta dor que sinto de acordar de manhã e saber o vazio disto tudo, e não saber que medo é este que todos sentimos, porque fomos nós, cegos ao esvaziar do Novo Mundo, que construímos estes soldados. Prontos a serem recrutados por quem lhes dá outra dimensão para a sua existência, uma dimensão espiritual de que eles nunca ouviram falar mas que os enche de sentido neste mundo efémero; por quem lhes dá uma arma para as mãos, ou uma bomba para a cintura, um grito para gritar e uma saída fácil e cool para deixar finalmente de ter medo.

(1) "Nós somos", de António Ramos Rosa
Tiago Bettencourt, Sobre o medo, in Visão, 03.12.15, pág. 104
Imagem - Copyright: Jaime Carvalho

Na memória dos dias da Rádio - António Sérgio - Viriato 25 (I)

by Lista Rebelde on Mixcloud

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Brel

Neste dia por anos, conjuntos de segundos, de esperas e de sonhos em horizontes tão vastos como o nosso sorriso humano adormecia uma das pessoas mais belas, no seu sentido mais profundo - Jacques Brel!

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Leituras - Uma poética da geografia

«Se escavarmos as nossas memórias de infância lembramos primeiro caminhos, e depois coisas e pessoas - carreiros no jardim. O caminho para a escola, o percurso em volta da casa, áleas por entre fetos e erva verde.» (1)

Toda a nossa história humana se construiu em redor desta escolha, que todos fazemos, entre o desconhecido, a miragem da geografia, o cansaço do corpo nos trilhos do vento e o lugar fixo, sedentário. Entre pastores e camponeses, entre a Geografia e a História, a dúvida no amanhecer e a certeza em todos os dias, eis a escolha que a condição humana tem feito. No essencial, a viagem.

Ela é a marca impressiva, o pergaminho que nos dá o reconhecimento do que somos, a verificação das capacidades individuais nos momentos em que o real, o quotidiano é desordenado pelo azul do céu, o verde das florestas ou o castanho poente do deserto. Poucas coisas, raras, são as que nos dão a oportunidade de fazer a descoberta interior, como as que encontramos nos tons da aurora e do crepúsculo, na brancura das nuvens, na descida de um rio ou na subida íngreme de um trilho de montanha.

É na Geografia que descobrimos a multiplicidade do que somos, tão difícil de explicar. É ela que nos permite o nosso irregular talento por criar a originalidade humana. Perante a dimensão do natural conseguimos exprimir melhor as emoções que numa sociedade civilizada tem demasiados obstáculos ao sentido do ser.

Michael Onfray escreveu um livro fascinante sobre a viagem, as motivações dos viajantes, o desejo de encontro nos vastos espaços, a cartografia do mundo no encontro com a memória e com a palavra.

Um livro que nos faz descobrir como o viajante encerra em si uma liberdade capaz de discutir as certezas dos que vivem instalados num real conhecido, previsível e domesticado pela razão e pelo conforto. As culturas, os homens que na História ousaram construir sob o tempo social, um outro, mais individual, subjectivo, emocional, guiados pela Natureza e seus ritmos conseguiram chegar ao encontro único. Aquele que podemos fazer com nós próprios, num movimento finito, que apesar da mortalidade nos permita comportar como «fragmentos da eternidade» (2)

(1) Bruce ChatwinAnatomia da Errância
(2) Michael OnfrayTeoria da Viagem

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um governo de medo e mentira (XIII) - Uma coligação que honra a mentira de Estado

Este governo chegou ao poder com base nas falsas promessas, que sabia falsas, e com base na crítica aos supostos desvarios do governo anterior na gestão das contas públicas, pretendendo vender uma imagem de probidade e rigor na gestão do Estado. Pois bem, hoje veio a saber-se que afinal, manipula as contas públicas de forma a que o deficit tenha melhor aspecto, de forma a enganar os portugueses, e a própria Comissão Europeia, podendo assim vangloriar-se de louros que não tem e de méritos que as políticas de desastre que seguiu manifestamente não possuem.
 Afinal, contrariamente ao que Passos badala por aí, nesse aspeto, Portugal é como a Grécia. Parece que não é só Ricardo Salgado que falsifica contabilidades, e a Volkswagen que falseia testes aos motores. Passos e Maria Luís, também falseiam dados das empresas públicas para embelezarem os efeitos das suas políticas de devastação. Vem isto a propósito de se ter hoje sabido que existiram indicações da Ministra das Finanças à Parvalorem – empresa que gere o ativos tóxicos do defunto BPN -, para que não transparecessem nas suas contas, em 2012, o real nível de tal toxicidade, continuando a contabilizar como ativos saudáveis, créditos sobre terceiros que nunca irá ter possibilidade de receber. Ou seja, desviando do deficit e ocultando do país a real dimensão dos prejuízos que o BPN trouxe aos contribuintes.
Mas, o mais cínico e caricato, é Passos Coelho e comandita, continuarem a usar o caso da intervenção do Estado no BPN como arma de arremesso contra o governo de Sócrates, quando é mais que sabido que o BPN era o “Banco do PSD” e para o PSD, tendo beneficiado as luminárias do PSD da maior parte dos créditos agora dados como incobráveis e por isso tóxicos. Antigos ministros e secretários de estado do PSD enxameavam as cúpulas e a lista dos beneficiários do BPN: Oliveira e Costa, Dias Loureiro, Arlindo de Carvalho, e Duarte Lima – só para citar os mais mediáticos. 
E tal disseminação laranja ocorreu sempre com a cobertura dessa eminência parda que é Cavaco Silva, a quem o BPN também “deu esmola” em negócios de ações nunca cabalmente explicados. Se Sócrates é criticado por ter um amigo que lhe emprestava dinheiro, o que não dizer de Cavaco cuja amizade com Oliveira e Costa lhe rendeu milhares de euros, não emprestados, mas dados limpinhos e sem osso? Também se soube hoje que a taxa de desemprego subiu em Agosto, relativamente ao mês de Julho. Ora, sendo Agosto um mês em que se criam empregos de caráter sazonal, mormente no setor do turismo, mais uma vez a narrativa do país pintado a cor de rosa que a coligação quer vender, começa a abrir brechas.
Esta coligação da direita é perita na mentira e na manipulação. Ele são os números do desemprego, artificialmente reduzidos com falsos estágios e cursos de formação. Ele são os números da dívida, ele são os números do deficit, ele são os números das sondagens que compram e distribuem por aí para manipular os eleitores, ele é tudo o mais que ainda hoje não sabemos e que é escondido com todo o zelo e afinco por baixo do tapete.
Compreende-se agora, a convicção de Passos e Maria Luís, quando continuam a dizer, contra todas as previsões das organizações estatísticas nacionais e internacionais que Portugal irá atingir em 2015 o deficit de 2,7%. Já devem ter pago a uma qualquer multinacional de consultoria o dossier que lhes vai permitir ocultar dívida pública, de forma a atingir o objectivo.
Perante este cenário, eu continuo só a ter uma esperança. É que os portugueses, em 4 de Outubro, para lá dos programas políticos, para lá dos casos de campanha, para lá da intoxicação que toda a comunicação social amestrada que temos vai disseminando com insídia, para lá das clivagens direita/esquerda, votem na seriedade. E um cidadão que vote na seriedade, e com seriedade, jamais poderá votar PAF. Porque, seriedade, e palavra honrada é tudo aquilo que a coligação de direita não tem.
(Via - http://estatuadesal.com/)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A Viagem

"A viagem não se limita a expandir a mente. Faz a mente. As nossas primeiras explorações são a matéria-prima da inteligência (...)" (1)

É um livro, uma ideia, um olhar sobre a natureza, sobre os outros, mas especialmente sobre nós próprios. O real é uma dimensão fascinante do que nos é permitido conhecer. No natural podemos reformular os princípios de uma vida material que não sabe respirar as sombras dos bosques, o pó das estradas, ou a liberdade das águias nas arribas montanhosas.

A viagem, como conhecimento fazendo transpirar as palavras nos caminhos da paisagem, entre a solidão dos passos e o horizonte magnífico, por onde já passaram indiferentes, mas vivas, as perfumadas flores de pessegueiro. À viagem devemos os rituais que em Primaveras sucessivas nos dão o canto das cotovias, a renovação do tempo solar e a construção de uma geografia pessoal que se interliga com o cosmos. É na viagem que se descobre o outro, se acrescenta uma forma diferente, completando-se a aquisição corporal da terra e do mar, dos rios e vales.

Num livro que reúne textos dispersos, compreendemos que a civilização e o seu progresso material e tecnológico constrói uma rede de excessos que são contrários à verdadeira natureza do homem. Esta reside no movimento, pois tudo, dos rios, aos oceanos, dos corpos celestes ao planeta faz o seu movimento contínuo.

Com A Anatomia da Errância Chatwin deu-nos todas as razões para fazer da viagem o centro de uma forma de vida que alimenta os caminhos da imaginação. O real, ainda é uma fonte inesgotável de inspiração e de conforto existencial.

(1) Bruce Chatwin, Anatomia da Errância, Lisboa: Quetzal

sábado, 26 de setembro de 2015

Na memória de Eliot

T. S. Eliot é um dos grandes poetas do século XX. Nascido nos Estados Unidos em finais do século XIX viria a viver grande parte da sua vida em Inglaterra. Considerava a sua poesia uma mistura de paisagens, embora tivesse escrito que a imaginação, as fontes tinham vindo com ela da América. 

Eliot integra o movimento modernista do início do século XX e recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1948. Eliot retratou em poesia o acaso espiritual das sociedades contemporâneas e fê-lo quando ainda subsistia o encanto fácil da época vitoriana e dos seus sucessos aristocráticos. 

A canção de amor de J. Alfred Prufrock publicada nos anos vinte retrata tal como mais tarde, Os Homens Ocos e A terra desolada a decadência de um mundo de aristocracia que repete os dias como uma rotina tépida e com uma ausente vontade de fazer, de pensar, de ousar. Um conformismo que não questiona o sentido da existência, que testemunha o sangue dos homens, mas é incapaz de dar um passo para o significado da vida. Em A  canção de amor de J. Alfred Prufrock alimenta-se um desamor aos outros, fruto dessa lassidão por si próprio, o egocentrismo mais puro, que em Os homens ocos acrescentaria de significado pelo que foi a História do Século.

Nós somos os homens ocos / Os homens empalhados / Uns nos outros amparados / O elmo cheio de nada (...) / Forma sem forma, sombra sem cor / força paralisada, gesto sem vigor", de Os homens ocos é um prolongamento de A canção de amor de j. Alfred Prufrock e acrescenta-lhe o niilismo do século. O mundo dos homens sem alma, sem energia de espírito, sem interior, sem conceitos de uma ideia espiritual da existência, para se declamarem os visionários de assembleias ideológicas, onde o puro respirar foi um excesso, uma vontade sombria de multidões sem acesso à sua humanidade.

Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites não dormidas em hotéis baratos, (...)
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão . . .
Oh, não perguntes: "Qual?"
Sigamos a cumprir nossa visita.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo. (...)

E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.

No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. "Ousarei" E . . "Ousarei?"
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: "Como andam ralos seus cabelos!")
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
apruma
(Dirão eles: "Mas como estão finos seus braços e pernas! ")
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherzinhas de café;
Percebo vozes que morrem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?

E já conheci os olhos, a todos conheci
- Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase; (...)

Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
As vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci . . . envelheci . . .
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinhas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.

T. S. Eliot, " A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock". Selected Poems. Harvest Paperback Editions. Orlando: 1967.

sábado, 19 de setembro de 2015

Eleições Legislativas - 2015 (9) - Ler para compreender (VIII)

Só tecnocratas sem consciência ética podem forçar o Estado a alimentar uma política de austeridade que faz crescer o desemprego e a pobreza; só tecnocratas sem sentido moral da existência podem diminuir os parcos subsídios aos reformados, forçando-os a diminuir as despesas na alimentação ou nos medicamentos; só tecnocratas sem o sentido sagrado da existência (por mais que se confessem católicos e matriculem os seus filhos em colégios religiosos) podem lançar na miséria casais que, desempregados ambos ou apenas um, deixam de ter capital para suprir as despesas com a compra da casa; só tecnocratas sem o antigo sentido da decência política, como arte de fazer bem comum, podem promover a desertificação do interior do País, fechando correios, finanças, tribunais, escolas, postos de saúde, abandonando as populações a si próprias. Se o País despertar do seu sonambulismo, este "desvio tecnocrata" deve ser rigorosamente castigado nas urnas. A decência democrática e os valores permanentes de Portugal e da Europa assim o exigem. Ou, então, caminharemos sonambulamente para o Terceiro Mundo, aproximando-nos de países como o Paraguai ou a Costa do Marfim, os quais a elite vive luxuosamente e a população na miséria. 

É um dos melhores livros publicados nos últimos meses sobre a temática da situação económica, social e política e cultural do País e essencial para as escolhas que as pessoas devem fazer, se não quiserem empobrecer em favor de partidos tecnocratas e suas ligações sociais, económicas e institucionais. Portugal, um país parado no meio do caminho (2000-2015) é mais um título de Miguel Real, onde os dados conhecidos, a realidade cultural, económica e social é utilizada como matéria-prima para um estudo de psicologia social, os quadros mentais de um País. Em certo sentido Portugal, um país parado no meio do caminho (2000-2015) tenta retomar essa leitura interior de organização cultural que de um modo mais amplo Eduardo Lourenço traçou para os períodos longos. 

Os dados económicos, sociais e culturais que nos chegam de frente, do programa neo-liberal dos tecnocratas de serviço que PS, PSD e CDS corporizam em decisões concretas dão-nos esse quadro do país sonâmbulo, resignado e sem fôlego ou capacidade de resistir à destruição de si próprio. Entre a ilusão europeia, a ascensão dos tecnocratas e os neo-liberais o País está fragmentado de vontade em construir algo semelhante a uma sociedade coerente e digna. 

O livro encontra-se dividido em duas partes de dimensões muito diferentes. A saber:

  1. Apresentação - Os contornos actuais do sonambulismo;
  2. Portugal - um país parado no meio do caminho (2000-2015) - dos mitos da modernização à substituição de políticos por tecnocratas e as contradições de valores emergentes que se perderam num sentido de ausência de decência política ou de sentido espiritual da existência. Nesta parte analisam-se as representações imagéticas de grupos sociais e o mimetismo que o poder faz dessas imagens, à procura da glória fácil, mas sem a imaginação dessas pessoas, dessas imagens.
Portugal, um país parado no meio do caminho (2000-2015) é um livro essencial. O facto de estar em zonas quase escondidas nas principais livrarias revela o gosto que impera, a ausência de conhecimento e a mistura de produtos meramente ideológicos com os que analisam a sociedade. Caso os portugueses não acordem e insistam no erro da cegueira apenas poderão ser o que um poder sem vivência moral deseja - a ganância de uma minoria. É preciso recuperar a lucidez de pessoa, como a do padre Manuel Antunes que decretava nas suas admiráveis palavras de combate o repudio pelo "liberalismo atomista".

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Um governo de medo e mentira (XII) - A auto-avaliação de um desastre

Em maio de 2011, a poucas semanas das últimas eleições legislativas, Álvaro Santos Pereira procedeu no blogue Desmitos a uma avaliação do desempenho do anterior governo PS à luz de oito critérios – oito indicadores económicos, analisados em sucessão a fim de proporcionar uma perspectiva abrangente da situação da economia portuguesa. Santos Pereira concluiu essa análise ao legado do governo PS afirmando que estávamos perante, “de longe, os piores indicadores económicos desde 1892” e apelando a que os portugueses não esquecessem esses factos no dia das eleições. Poucas semanas depois, tomava posse um novo governo de coligação PSD-CDS, sustentado por uma maioria absoluta parlamentar. O Ministro da Economia desse governo era o próprio Álvaro Santos Pereira, certamente determinado a inverter a catastrófica situação que tão exaustivamente diagnosticara.
Quatro anos depois, é da mais elementar justiça que avaliemos os resultados alcançados por este governo à luz dos indicadores que o seu próprio Ministro da Economia original considerou mais apropriados para aferir o desempenho governativo. Quais eram os desequilíbrios então identificados? E qual o desempenho do governo PSD-CDS à luz desses mesmos critérios? Quando actualizamos os gráficos de Santos Pereira, trazendo-os até ao presente, verificamos que os resultados são esclarecedores.

1) PIB POTENCIAL
O primeiro indicador então utilizado por Álvaro Santos Pereira foi o PIB potencial, que em 2010 estaria “a crescer 0% ao ano”. A taxa de crescimento deste indicador constitui, como é sabido, uma estimativa da forma como evolui o potencial da economia. Segundo os dados da AMECO utilizados como fonte por Santos Pereira, em 2010 essa taxa era na verdade ligeiramente positiva: 0,3%, o que é claramente fraco. Mas daí para cá, os valores foram sempre piores e sempre negativos: -0,4% em 2011, -1,0% em 2012, -1,0% em 2013 e -0,9% em 2014. Em 2015, projecta-se que recupere ligeiramente, para cerca de -0,4%: uma taxa ainda assim negativa e inferior em 0,7% ao registado quando este governo tomou posse.

2) DÍVIDA PÚBLICA
Neste ponto, Santos Pereira referia-se em 2011 a uma “dívida pública recorde” e, no gráfico elaborado com base nos dados da AMECO, comparava os valores da dívida pública em 2004 (62%) com o que se registava em 2008 (71,7%) e 2010 (96,2%). Ora, prolongando a comparação para os anos da governação PSD-CDS, verificamos que o recorde não cessou de ser batido: em 2014, a dívida pública representava já 130,2% do PIB.

3) TAXA DE DESEMPREGO
Neste ponto, Álvaro Santos Pereira comparava a taxa de desemprego em 2004 (6,6%) com o valor registado em 2011 (12,4%). Para continuarmos a utilizar os mesmos indicadores e critérios adoptados nesssa ocasião, deixemos de lado desta vez a conhecida insuficiência da taxa de desemprego (nomeadamente, sem olhar ao volume de emprego total) para analisar devidamente a situação do mercado de trabalho. Tendo então em conta a taxa de desemprego estimada em Julho de 2015, verificamos que se registou um ligeiro decréscimo face ao valor de partida, de 12,4% para 12,1%. Quando o ex-Ministro da Economia saiu do governo, em Julho de 2013, o valor era de 16,6%.

4) DÍVIDA EXTERNA TOTAL (BRUTA)
Nesta sua análise em 2011, o então futuro Ministro da Economia assinalava que a dívida externa bruta da economia nacional, que fora de 167,9% do PIB em 2005, passara para 230% do PIB em 2011, “a maior dívida externa desde 1892”. Para sermos precisos, tal como mostram os dados do Banco de Portugal, a dívida externa bruta era de 218,5% quando o governo actual tomou posse, no segundo trimestre de 2011. Quatro anos depois, aumentou 14 pontos percentuais – é agora de 232,3% do PIB.

5) DÍVIDA EXTERNA LÍQUIDA
Em matéria de dívida externa líquida, que na verdade é a que mais interessa, o valor de 110% do PIB apontado por Santos Pereira como sendo registado em 2011 era incorrecto, como pode ser comprovado aqui. O valor efectivamente registado no segundo trimestre de 2011, tal como indicado pelo Banco de Portugal, era na verdade de 82,4% - o que nem por isso seria menos preocupante, tendo em conta o enorme aumento registado desde o início do século. Mas nos quatro anos seguintes, o endividamento externo líquido acentuou-se ainda mais: no segundo trimestre de 2015, representava 104,7% do PIB português.

6) DÉFICE EXTERNO
É o principal feito que pode ser reivindicado por este governo. Mercê da contracção das importações (em resultado da baixa do preço do petróleo e da quebra dos rendimentos) e do aumento das exportações (resultante da depreciação externa do Euro e do redireccionamento com sucesso de muitas empresas para os mercados externos), o saldo externo medido através da balança corrente, que era de -10,1% em 2010, foi de 0,6% em 2014.

7) EMIGRAÇÃO
Em 2011, Santos Pereira referia-se aos “mais de 100 mil portugueses que emigraram do país em busca de oportunidades de emprego” em 2007 e 2008 como um dos sinais claros de fracasso da governação anterior. Segundo o Relatório Estatístico da Emigração de 2014, os números estimados de saídas registados em 2011, 2012 e 2013 (último ano disponível) foram, respectivamente, de 80.000, 95.000 e 110.000. Porém, o mesmo relatório corrige em baixa as estimativas de Santos Pereira para 2007 (90.000) e 2008 (80.000).


8) CONVERGÊNCIA FACE À EUROPA
O último indicador utilizado há quatro anos por aquele que viria a ser o Ministro da Economia era a relação entre o PIB português e o PIB dos países europeus mais avançados, a fim de assinalar a tendência persistente de divergência. Santos Pereira tinha razão na denúncia: em 2010, o PIB per capita português correspondia a 59.9% do da Zona Euro como um todo, ao passo que em 2001 fora de 61.0%. O problema é que a divergência continuou desde então: este indicador continuou a cair durante a legislatura que agora finda, encontrando-se nos 56,8% em 2014.

CONCLUSÃO: UM GOVERNO QUE SE CHUMBA A SI PRÓPRIO
Em 2011, Álvaro Santos Pereira recorreu a oito indicadores económicos para proporcionar uma imagem sintética da governação socialista. Concluiu então que esse governo deixava “um legado de tal forma terrível que vai marcar inexoravelmente as nossas vidas e as dos nossos filhos”. Quatro anos depois, prolongando a análise com recurso aos mesmos indicadores, verificamos que um está hoje em níveis idênticos aos de há quatro anos (taxa de desemprego), um melhorou significativamente (saldo da balança corrente) e seis pioraram consideravelmente (crescimento do PIB potencial, dívida pública, dívida externa bruta, dívida externa líquida, emigração forçada pelas circunstâncias económicas e divergência face à Europa). No fundo, o governo melhorou o saldo externo e piorou tudo o resto. E nem sequer estamos a trazer para a análise os níveis de pobreza, de desigualdade, do salário médio, da cobertura dos apoios sociais ou do emprego total. Por outras palavras, o governo PSD-CDS, nesta auto-avaliação legitimada por antecipação, chumba-se a si próprio sem apelo nem agravo. O “triste legado” então exaustivamente identificado é hoje muito mais triste e ainda mais pesado. Os “piores indicadores económicos desde 1892” são hoje, quase sem excepção, muito piores. Espera-se, para parafrasear uma última vez Álvaro Santos Pereira, que quando os eleitores forem votar no dia 4 de Outubro não se esqueçam dos verdadeiros factos desta governação.

Alexandre Abreu, "O governo chumba-se a si próprio". Jornal Expresso. Setembro. 2015.

domingo, 6 de setembro de 2015

Um governo de medo e mentira (XI) - Dói-me Portugal

"Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros. O poema de Antonio Machado intitulado Españolito é, como muitos poemas seus, intraduzível. Eugénio de Andrade dava os poemas de Antonio Machado como exemplo da impossibilidade, no caso da poesia, de encontrar noutra língua, não as palavras certas, o que ainda era possível, mas a “música” do poema, o modo como fluía o som dessas palavras. Por isso, aqui vai no original:
Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.

É um poema sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da ferocidade da guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelar-te o coração”. Não é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra dessas “duas Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado francês, para onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.
O tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais” também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca, com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido tão “pacíficos” durante a crise.

Hoje, “dois Portugais” existem e vão a eleições. Um está à vista todos os dias, outro tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro “Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise” para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última razão. Um dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.

As estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008, outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais pequenão abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal menor.)
Quem é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade. Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.
Há mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não. Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar. Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de pessoas. É muito português.

Voltemos aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos somar, várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter, é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas famílias. É muito português.
Depois, mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre, dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, despareceram as pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos humanos” extremos – a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água, nem luz – e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no início da década de 2000. 
E aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança, ou seja desesperança. É muito português.

O discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”. Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam “economia”, pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente ilusão, porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado – tudo profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito: agravar as desigualdades sociais. Como se vê.

No grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”. Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das “jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores, gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos de casting, feérico e feliz.
Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros. Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios, porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à custa dos outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o coração”.
Direi pois, como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal".

José Pacheco Pereira. Jornal Público. 05/09/2015
Imagem - copyright - Richard Byres, (un) lucky day. (Via http://1x.com/)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Leituras - A menina dentro da cereja

É verdade: no fundo, nunca se regressa a nada. Mas temos, muitas vezes, a ilusão de regressar. E agarramo-nos a essa ilusão desesperadamente, como se ela não fosse, de facto, uma ilusão, apenas isso. Agarramo-nos como náufragos no meio de um oceano em plena tempestade se agarram a uma tábua pensando salvar-se. Pura ilusão. (p. 69)

A menina dentro da cereja é um livro sobre uma família, sobre este país parado no tempo, uma sociedade bloqueada, sobre os sonhos de infância, essa geografia de liberdade, do vento do rosto e dos adultos, estranhos como o mundo. A menina dentro da cereja é um livro sobre a adolescência, sobre os fragmentos de verdade, a loucura imanente da vida social que desenham escolhas e opções e fazem naufragar os sorrisos breves e encantados dos sonhos. 

A menina dentro da cereja é sobre esse tempo em que a casa parece guardar os mais novos do furor do mundo e cuja ferocidade nos faz perder o encanto de manhãs em perfumes de inocência. A menina dentro da cereja é um livro sobre os adultos, as suas estranhas relações, os seus percursos dominados por referências sem tempo. A menina dentro da cereja podia ser o retrato de uma geração que tem dificuldade em ligar a sua respiração e a memória. É sem dúvida um livro sobre esse País esquecido de si, dominado por políticos tecnocratas, onde uma sociedade sem referências tenta sobreviver ao lado de movimentos individuais dos que tentaram nas suas memórias, padrões de referências, regressos a uma qualquer substância. 

A menina dentro da cereja é um livro sobre a nossa solidão, as estranhas figuras de um país velho, onde o amor poucas vezes pode esquecer um quotidiano burocrático. A menina dentro da cereja dá-nos os caminhos de desencontros de personagens que conhecemos. O Porto aristocrático e as suas brumas de mistério, onde uma família se desconhece com os fragmentos de episódios de vidas consumidas em excessos e em padrões aparentes de memória. O país da geração que estudou e não encontrou uma verdadeira oportunidade, onde, em caminhos desencontrados procurou um sentido para a sua existência. A menina dentro da cereja é um exemplo vivo e esclarecedor de como a Literatura tem mais ferramentas que a História, que as Ciências Sociais para desmontar estruturas mentais, processos políticos e quadros sociais. 

A crise real do país, é essa continuidade de um tempo longo, essa estagnação que tirou realismo à vida das pessoas, desligando gerações e fez em cada um passos solitários, alegrias breves. E sobretudo, essa ilusão de referências, de regresso ao que já não existe, a artefactos onde já só moram fantasmas e pó. É a partir destes que importa recomeçar, ou tão só continuar, sabendo que o caminho somos nós, ou formas descontinuadas de tristeza e esperança.

domingo, 23 de agosto de 2015

Eleições Legislativas - 2015 (9)

Há uma parte da oposição a este Governo e à coligação que ainda não percebeu no que está metida. (...)  

Mas vejo as coisas porque percebo do que, do lado da coligação, se é capaz de fazer quando se lhes toca nos interesses vitais, e estas eleições tocam em demasiadas coisas vitais para não serem travadas com todas as armas, e algumas são bem feias de se ver. Agressivos de um lado, frouxos do outro. 

E vejo os exércitos juntarem-se, com armas e bagagens, muito ódio social, porque é um combate social e político que se vai travar e o ódio mobiliza as hostes, e muita agressividade. Do outro lado, salamaleques, um medo pânico de falar de "mudança", a quase total ausência de críticas ao Governo, o emaranhar-se em explicações e desculpas. Sempre na defensiva, sempre ao lado, sempre a perder. 

Uma parte da oposição prefere objectivamente que tudo continue na mesma para manter o bastião da identidade, outra passa o tempo em actividades burocráticas e escolásticas, para o interior das suas contínuas divisões, enquanto o "maior partido da oposição" se entretém a mendigar "confiança" certamente porque não consegue lidar com os rabos de palha que vieram de 2011. 

O caso do PS é parecido com aqueles generais franceses de luvas de pelica a almoçar foie gras e champanhe, bem longe da frente, num castelo qualquer, com todo o tempo do mundo, enquanto os seus poilus morriam que nem tordos, ou fugiam para a retaguarda misturando-se com os civis, dependendo de que guerra se tratava. O modo como está o PS é devastador para toda a oposição, afecta as candidaturas presidenciais, permite o ascenso de candidaturas patrocinadas no seio do PS pela coligação, tem o duplo efeito de esmorecer e radicalizar, ambos processos de isolamento que abrem caminho para a assertividade e o espírito ofensivo da coligação. 

A propaganda da coligação, assente num castelo de cartas que ruirá ao mais pequeno vento, como aliás o ex-amigo próximo, o FMI, diz, não é desmontada com clareza e frontalidade, porque os compromissos nacionais e europeus do PS são demasiados. A maioria muito expressiva dos portugueses que recusam este Governo, um dado sempre constante nas sondagens, não encontra no sistema político uma resposta. E, mesmo que existissem novos partidos que dessem corpo a esse descontentamento, a maioria dos partidos representados no parlamento, não quer competição e encarrega-se de os calar na comunicação social, com a colaboração da comunicação social. 

Por seu lado, os portugueses que sofreram, sofrem e sofrerão a crise estão cada vez mais invisíveis. Não desapareceram, o seu sofrimento social aumenta com a passagem do tempo, mas não conseguem ultrapassar o ecrã do "sucesso" que 10 mil ministros e secretários de Estado fazem todos os dias. Num dia são as mulheres, noutro dia são as crianças, no terceiro dia são os velhinhos. É só caridade e bondade a rodos. Com a cumplicidade acrítica de muitos que na comunicação social andaram a louvar as virtudes do "ajustamento" e por isso selam o seu destino também com o destino da coligação. O PS, por sua vez, como andou estes anos todos a fugir da contestação social, continua a preferir os salões. 

José Pacheco Pereira, "PARA QUEM AINDA NÃO PERCEBEU NO QUE ESTÁ METIDO". Abrupto. 14.08.15.
Imagem - © Victoria Ivanova

Eleições Legislativas - 2015 (8) - Ler para compreender (VII)

Foi o consenso em orno deste bem-estar - liberdade, trabalho, Estado social e lazer - que permitiu a estabilidade política, estabilidade que, num aparente paradoxo, levou à destruição desse mesmo consenso. Quer isto dizer que os direitos em Portugal dependem de fortes lutas sociais. E os momentos de estabilidade política, o maior dos quais entre 1987 e 2010, foram os momentos de erosão dos mesmos direitos, pela confiança que a população depositou no Estado e pela escassez de activismo político que deu carta-branca ao poder. Sem esse compreensão é impossível sabermos de onde vimos e para onde vamos. (p. 33)

Para onde vai Portugal é um livro que tenta combinar o ensaio com a análise histórica procurando discutir que caminhos de sociedade se podem concretizar nos futuros anos. O livro inicia-se com o lançamento de uma questão, para onde vai o País? O livro procura oferecer um conjunto de reflexões sobre as possibilidades de um desenvolvimento económico ou de manter e agravar a regressão social. Procura analisar o significado político do Estado social e de como o emprego é uma ferramenta de desenvolvimento do País. Para onde vai Portugal faz uma análise sobre um dos mistérios da história contemporânea portuguesa, a baixa participação política dos portugueses e o modo como as organizações sindicais não conduzem uma participação de denúncia de injustas agregando pessoas em movimentos de protestos. O livro organiza-se nos seguintes capítulos:
  • Cap. 1 - Tudo o que é sólido desfaz-se no ar;
  • Cap. 2 - Para onde vai Portugal?;
  • Cap. 3 - O "Memorando de Entendimento": acumulação por expropriação;
  • Cap. 4 - Para que serve um Estado se não é social?;
  • Cap. 5 - Pão e poesia, sexo e amor: o espectro da humanidade.
  • Cap. 6 - De onde vimos?

Para onde vai Portugal procura muito discutir os fundamentos de uma sociedade bloqueada. Procura incentivar a construção de linhas de relacionamento de sociedade de maior partilha e discussão com as pessoas. Neste sentido promove muito um diálogo ao serviço de um compromisso social transformador. Discute os valores e os costumes e a necessidade de prevenir conflitos sociais que se irão avolumar por uma caminho que tem sido o de capturar a riqueza do trabalho e dá-lo a grupos controlados ao poder.

Esquece um pouco os aspectos simbólicos, como os que Eduardo Lourenço ou José Gil têm enunciado, um real que não se assume no quotidiano. É sem dúvida um livro sobre caminhos que importa pensar. As eleições legislativas são momentos de escolhas e as propostas de Raquel Varela dão um imenso contributo para que sejamos uma sociedade decente e solidária para com os famintos e os audazes de caminhos de felicidade. O livro revela um conhecimento profundo da História Contemporânea e isso dá-lhe linhas de análise que fundamentam um caminho que importa analisar e construir.

Eleições Legislativas - 2015 (7) - Ler para compreender (VI)

No reino da austeridade nunca há cortes cegos. Os seus ideólogos têm sempre uma retórica de justificação preparada que serve acima de tudo para dar uma aparência técnica a decisões que não são senão escolhas políticas. Despedir não é despedir, é racionalizar e isso é a ferramenta de um domínio ideológico sobre as pessoas. A elite económica de Portugal viveu e vive claramente a cima das nossas possibilidades. Capturou o Estado e faz dele o alicerce da sua acumulação de riqueza, descapitalizando-o para o exercício das funções que uma sociedade frágil e pobre exige. Zomba da lei e do interesse público. E, no fim, ainda tem o desplante de fazer para a sociedade que os alimenta a apologia da miséria. (Págs. 70, 71 e 76).

Linhas Vermelhas é um dos livros mais interessantes saídos nos últimos meses sobre a realidade económica, social e política do País. Linhas Vermelhas no sentido de um farol de mínimo de decência e dignidade que não deve ser transposto. O livro do professor de Coimbra na área dos estudos sociais organiza uma reflexão sobre algo essencial e que os media costumam ignorar, para benefício do governo, a linguagem e o que ela esconde, e o âmago de uma construção ideológica que parte do discurso da crise para implementar o seu modelo neoliberal contra as pessoas e de favorecimento dos grupos monopolistas e agentes políticos que os servem. O livro organiza-se em sete capítulos, a saber:
  • Cap. 1 - De como aqui chegar ( A Dívida como principal referência da luta política e a austeridade como ferramenta ideológica e política);
  • Cap. 2 -Quem é o interesse nacional (Do discurso oficial do empobrecimento, da diminuição dos custos do trabalho como construção ideológica);
  • Cap. 3 - A crise-como-política (A dupla centralidade do discurso da dívida, como reconfiguração de Portugal e a sua periferização no campo europeu e o dispositivo de redução da resistência social e a alteração preversa dos contratos de trabalho); 
  • Cap. 4 - A governação europeia de Portugal (O modelo de apropriação por governos de direita na formulação ou nas práticas e a sua instrumentação pela União Europeia para a construção de um domínio político e esvaziamento da cidadania);
  • Cap. 5 - O mundo inteiro (Os povos esquecidos perante uma ideia de miséria cultural e social - o Eurocentrismo);
  • Cap. 6 - Em sentido contrário (Conhecer a realidade, aprender a sua formulação para romper e procurar uma nova ética para uma nova óptica, ou a necessidade de um desobediência organizada e solidária contra uma Europa, em nome da defesa dos que não têm voz, contra a insustentável pobreza);
  • Cap. 7 - Conta-me como  será (Do País pobre, do esvaziamento político da democracia e da anulação das pessoas como elementos culturais e humanos).
Linhas Vermelhas desmonta com eficácia a incompatibilidade de um discurso político que ilude as pessoas ao assumir coerência entre mercados e democracia. É esta que se desmonora com a destruição da dimensão económica e que conduz a um enigmático autoritarismo social. Linhas Vermelhas no sentido mais racional conduz o discurso necessário para que as esquerdas se repensem e sejam um espaço de discussão para a ideia essencial de reestruturar a dívida. 

O País só poderá ser uma democracia real se essas alternativas tiverem alguma expressão. E como vemos, a ausência de discurso de fractura com o que empobreceu os cidadãos tomado pelo PS sem discussão do que é decisivo para as pessoas revela que o caminho é outro. O de pensar a decência e combater uma narrativa ideológica de desprezo pelos valores humanos e a vida colectiva que tenha sentido para todos. Linhas Vermelhas é um contributo para pensar as alternativas e fazer com que as eleições sejam mais que alternância sem alteração substantiva de nada.