sábado, 12 de dezembro de 2020

Leituras - Manual de sobrevivência de um escritor...

 "I just want to be a kid for as long as I can."


A literatura nasce de uma necessidade. A de compor no visível uma voz que seja uma experiência emotiva. Na estranheza do mundo, nos seus sinais de absurdo, a palavra pode ser uma salvação, um ritual para construir algo que dê resposta a uma interrogação. A Literatura é a composição de um registo sobre nós próprios, sobre os sinais de uma beleza que emergem do caos, nesse confronto, a Arte e a Vida.

Nessas duas dimensões ficamos entre a existência, como o sinal de um divino e a sobrevivência. A Literatura vive de uma construção de extraordinário que se alimenta no que é o visível. Na geografia das histórias, estas decorrem no seu tempo, nas suas etapas narrativas, como uma dança no reino das coisas.

A Literatura constrói-se a partir de uma experiência, num diálogo de autorias, o escritor e o leitor. Nessa tarefa de superação do esquecimento, se o escritor imagina, o leitor dá corpo a essa imaginação. É da construção feita pelo escritor que João Tordo dedicou um livro sobre esse acto mágico e de sobrevivência que é o de escrever. Em Manual de sobrevivência de um escritor, ou o pouco que sei sobre aquilo que faço, João Tordo explica-nos como a escrita nasceu em si e como conseguiu construir histórias, essas texturas do real que parecem "partir o coração", no seu discurso de imanência e que nos fazem sobreviver ao caos de um mundo estranho. Um livro a ler e a consultar para quem ama escrever, ou o pretende fazer na iluminação das palavras.

sábado, 7 de novembro de 2020

Leituras - Contra mim

 O importante era a expectativa de as palavras fazerem um milagre. Para mim, as palavras prometiam milagres, nunca pertenciam ao normal. Eram instrumentos de partida. Iniciavam deslocações e mudanças profundas. Talvez até nos impedissem o regresso, por maior esforço ou inteligência. Abria o meu caderno como se preparasse a mesa para uma evocação. “ (págs. 96-97).

Se há assunto em que a Literatura supera a História é nas narrativas de memórias, dessa etnografia que retrata modos de vida, espaços e tempos com o encantamento ou a desilusão de quem as viveu. Às vezes parece quase inexplicável que nestes tempos de grande velocidade tecnológica, de sofisticada mobilidade e de informação generalizada o encantamento pareça distante dos dias. Entre as últimas décadas do Estado Novo e a Democracia o país era de uma pobreza muito substantiva em largas zonas do País, com uma incidência particular no país agrícola e interior. A infância é um país distante, acho eu. Entra-se nele em diferentes latitudes e um dia esse território chegou ao fim e dizem-nos, - you may leave!

Esse país pobre e distante do litoral criava formas de olhar que lhe davam uma riqueza nobre. A infância que é um lugar onde se é pequeno, quase minúsculo vê esse mundo e deslumbra-se entre a urgência de ver o que não entende e a sua experimentação. Ouvir e ver eram as formas supremas de tentar entender, o que era só deslumbramento, onde as coisas tinham cores, cheiros e sabores. Nessas dificuldades de sobrevivência nascia com a infância um espaço de magia, de lugar de referências míticas. Era difícil? Era! Mas tinha um sentido existencial, como se fosse a própria revelação das coisas. Da nostalgia das cores, das formas geográficas e das pessoas subsistia algo como uma aprendizagem, ou uma inserção no que haveria de ser o mundo.

Sobre essa entrada na infância alguns imaginaram aventuras de respostas impossíveis, como que a demonstrar que o mundo, esse que fica fora da toca coelho branco é uma irracionalidade. Outros contaram-no dentro da ternura da própria existência. O meu pé de laranja lima foi um desses marcos a inaugurar a vivência da infância dentro de um sonho por realizar, nas franjas do que se anuncia grave e árduo. Valter Hugo Mãe fez o mesmo exercício sobre o que significou ser criança nesse País pobre, distante do mundo, a aprender a ser alguma coisa, entre o mistério e o desencanto, entre o sorriso e os outros. Mas fê-lo com uma imensa autenticidade, inscrevendo-se no tempo, dando o que foi e o que ainda é.

O livro, Contra mim, é uma peça de memória sobre a infância de um escritor, os seus medos, as suas alegrias breves, as suas capacidades para se reinventar continuamente. O livro é de um humor e ternura tocantes e nele se compreende como uma criança se tornou num homem inspirado, com um sentido para encontrar nas palavras e nos outros uma forma de mudar o mundo. A linguagem recria-se com uma substantiva criatividade e ao lê-lo o que nos é dado é uma bela conversação. Um livro pode contar uma história, ou pode falar connosco sobre o que já foi, sobre essa experimentação de criar uma composição de humano. Tudo se alimenta numa experiência e na edificação de uma colecção de palavras que juntas, como as pessoas podem criar novos significados, novos mundos e neles dar sentido à memória dos que partiram, ou até a esses bocados deixados em instantes para serem recriados em cada um. 

Contra mim ultrapassa a memória de um crescimento, de uma experiência social e representa o que foi o País em tantos sítios abandonados a si próprios, providos com a magia de quem vê. Lendo este livro ficamos mais uma vez a saber que a escrita das palavras é uma recolha elaborada, sentida sobre um tanque cheio de vozes e memórias, como um sinal de um tempo. Contra mim é uma criança a escrever, entre a sua infância e esses “bocados de Deus”, entre a companhia de um mundo e o que vai sabendo de si, na relação com os outros. Será talvez um dos melhores livros de Valter Hugo Mãe. É sem dúvida, um grande livro, uma leitura afectiva do mundo, como uma criança a escrevê-lo.

 

domingo, 26 de julho de 2020

Leituras - Raízes da vida

                   "O meu pensamento vagueia entre a profundidade simbólica e estética das cores."


Raízes de vida é um livro interessante para fazer uma viagem, a mais completa ou talvez a mais difícil de todas, nestes sinais debaixo do sol e no enquadramento das estrelas. Na viagem que fazemos podemos ter muitos sinais capaz de fundar princípios que nos envolvam para o significado dos nossos gestos. Os mais evidentes parecem estar ligados ao próprio significado da vida e deste conceito raízes.

Partindo da anatomia de uma árovore, Bagão Félix acompanhado de Ana Paula Figueiras criaram uma viagem que pode ser a de cada um, mesmo com estes elementos comuns. A raiz, o caule, os ramos, as folhas, as flores e os frutos conduzem valores e sentimentos, deixando pistas para uma leitura feita por nós, em cada uma das suas vidas.

Raízes como algo que nos sustenta, nos dá substância para andar, como o amor, a esperança, ou o sonho. O caule como o que nos alimenta, ou pode dar coerência de significado, como a amizade, a lealdade ou a solidariedade. Os ramos como o que nos envolve, aquilo que é visível de nós, como a aparência, a diversidade ou a tolerância. As folhas, como aquilo que sabemos renovar, reencaminhar para novos sentidos, como a audácia, a harmonia ou  o humor. 

E, ainda as Flores como aquilo que nos faz caminhar como uma sedução continuada, como a fantasia, a inocência ou a loucura. E os frutos, o que revelamos e os sinais de uma teia aos outros, como a fidelidade, a liberdade ou a doçura.

Um livro inspirador de muitas ideias para uma aventura desafiante e difícil, terna e vital, como é a vida.

Raízes de vida / Bagão Félix com Ana Paula Figueira. Lisboa: Clube do autor, 2019.
Imagem: Copyright - Innatia.com

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XXI)

A Civilização Grega - ideias finais (I)
Tentámos por aqui fazer uma viagem sobre a arte desde a Pré-História, as Civilizações Pré-Clássicas e as suas principais marcas que se desenvolveram na margem do Mediterrâneo. A Civilização Grega foi um marco na História da Humanidade. Demos-lhe um significativo destaque. Esta viagem poderia continuar e talvez seja uma ideia interessante fazê-lo no próximo ano letivo, não só porque é uma componente curricular de uma disciplina, mas porque o mundo que herdamos é feito de uma memória que influencia o modo como pensamos e cria possibilidades para a vida que ensaiamos construir. Para os últimos três dias, uma ideia final e duas publicações sobre esse mar visual de grande significado que é a Civilização Grega.

A mitologia, as lendas, as narrativas orais foram uma das formas de realizar uma aprendizagem para um povo disperso entre cidades-estados e ilhas, no vasto Mediterrâneo. Esses textos deram unidade a uma cultura, a uma língua e retratam o modo como a memória se integrava no quotidiano da sociedade grega. Desse tempo ainda permanecem dois livros fundadores, A Odisseia e a Ilíada, ambos atribuídos a Homero. São dois textos sobre a procurar definir a viagem, como lugar de procura e de encontro, mas também sobre o sentido que podemos tirar da vida. É desta realidade última que fala a Ilíada.
Na Ilíada encontramos um poema épico que nos retrata uma figura essencial da narrativa de Homero, Aquiles. Este transtornado pela perda do amigo Pátroco mata Heitor, arrasta-o até ao túmulo daquele e acaba por restituí-lo a Príamo, rei de Tróia. 
Trata-se de um episódio relativo à guerra de Tróia e esta narrativa, a Ilíada coloca-nos questões muito relevantes, que ainda nos importam. É importante compreender que estas vozes do passado podem ainda nos fazer refletir sobre as possibilidades do nosso próprio mundo, pois as grandes questões são as mesmas. Qual o significado da vida, como enfrentar a perda e a finitude daquela. 
A Ilíada sobre um fundo de uma narrativa épica fala-nos sobre o  sofrimento humano e como é difícil passar ao lado das dificuldades da própria vida.  Como superar as dificuldades, as surpresas que tantas vezes se encontram na vida? 
É a defesa da sua auto-estima que faz lutar Aquiles. São os valores da sua identidade que fazem lutar Heitor. Valores diferentes e que comportam o valor individual, suficiente só consigo ou o que integra os outros. E ainda que o valor máximo é a vida. É isso que Aquiles compreende nos momentos finais, no funeral de Heitor. A morte como o fim único e possível para todos os seres vivos é a lição final da Ilíada. A vida como espaço de efemeridade, sem proteção absoluta, mas encantadora pelo desafio de defesa de uma ideia, de um sonho, de uma respiração.
Aquiles, herói da guerra de Tróia, representação (museu de Atenas)

terça-feira, 23 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XX)

A Civilização Grega - o belo como representação (IX)
A Civilização Grega não permaneceu apenas no seu tempo. Influenciou os séculos seguintes de um modo muito substantivo. A Alta Idade Média ou o Renascimento foram apenas duas das muitas influências que deixaram. Nem sempre nos apercebemos, mas a revolução científica nascida com o Renascimento deveu muito a esta civilização do século V a.C., pois a ideia do número, a linguagem matemática como forma de encontrar algo a compreender no rela é uma ideia grega.
Na Civilização Grega os pitagórico, os que continuaram as ideias de Pitágoras fizeram do número um conceito essencial para tornar o real inteligível. Os pitagóricos fizeram do número uma grandeza que permitiu evoluir do conceito aritmético ao geométrico e espacial. Inventaram o tetraktys que é na verdade um triângulo em que o ponto central está equidistante dos pontos que formam o triângulo equilátero, que significa com três lados iguais. É possível dar continuidade à série de cada ponto, de modo que se obtêm uma figura, um "reticulado potencialmente infinito". 

Os pitagóricos descobriram nestas harmonias geométricas uma forma de belo, um sentido inteligível do universo, pois as harmonias aritméticas tinham correspondência em harmonias geométricas. Na verdade os pitagóricos redefiniram o conceito do número. Uma das relações que foram estabelecidas foram as relações matemáticas com os sons musicais e que proporções se definiam entre os intervalos dos sons e ainda a relação entre o comprimento de uma corda e a altura de um som. 
A ideia do belo também se representa pela ideia de harmonia musical. Boécio na Idade Média confirmou esta ideia de harmonia dos pitagóricos lembrando uma observação feita por Pitágoras. Num dado dia, um ferreiro colocara martelos de diferentes pesos que criavam sons proporcionais a essa dimensão. Sabemos que com eles a música influenciava diferentes estados de espírito. O ato de adormecer e acordar era realizado pelas pitagóricos como forma de verificar a modulação do som e o efeito em cada pessoa. Talvez nem sempre o percebamos, mas a representação do belo também se faz pela música e por esta ideia pitagórica de proporção.
Imagens: "músicos", cerâmica grega - século V a.C; Michelangelo Buonarroti, Estudo para a sala dos livros raros da bibioteca Laurenziana, Florença, c. 1516.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XIX)

A Civilização Grega - o belo como representação (VIII)
 
"Está já pronto outro vinho, que garante que jamais
abandona ao barro o cheiro a mel da sua flor.
No meio, uma árvore de incenso desprende um sacro aroma;
a água está fresca, doce e pura.
Aqui temos os pães e a mesa sumptuosa,
carregada de queijo e de pingue mel.
Ao meio, o altar está todo coberto de flores.
A música festiva domina o ambiente.
Ao deus devem os homens sensatos entoar primeiro um hino,
com ditos de bom augúrio e palavras puras.
Depois de fazer as libações e preces para procederem
com justiça — pois isso é a primeira lisa —
não é insolente beber até ao ponto de se poder voltara casa
sem ajuda de um escravo, a menos que se seja muito idoso."
Xenófanes de Cólofon (séc. VI-V a. C.) - Hélade, Antologia de Cultura Grega. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
Imagem: Apolo e as Ninfas, de François Girardon (1666-73), na Gruta de Apolo, em Versalhes

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XVIII)

A Civilização Grega - o belo como representação (VII)

O ideal de belo dominou a arte e a Civilização gregas. A beleza é uma ideia, uma abordagem de valores e uma representação. Não se pode falar dela sem falar naqueles que pensaram o seu sentido, as suas possibilidades, as suas possíveis faces, os filósofos. Se para os poetas pré-Homéricos o mar e a mulher constroem a associação com o que é belo e se com Homero é o natural que se associa à beleza, é com Sócrates e Platão que vemos essa construção melhor se definir.
Sócrates, de acordo com o seu testemunho em Memorabilia de Xenofonte define a praxis artística em três categorias: a beleza ideal (identificada pelas suas diferentes partes), a beleza espiritual (exprimida pelo olhar e reveladora da alma humana, visível nas esculturas, onde os olhos eram pintados para serem mais verdadeiros) e a beleza útil (a que se torna funcional). 
Em Platão encontramos duas concepções da beleza que se desenvolverão ao longo da História do Ocidente por muitos séculos. Justamente a beleza como harmonia e proporção das partes e a beleza como esplendor. Para Platão a beleza não é algo que exista em si, como um elemento físico. Ela existe autonomamente, distinta do suporte físico. Em Platão a beleza não está vinculada a um determinado objeto, ela apresenta-se brilhante em qualquer lado.
A beleza não se identifica com o que se vê, pois o corpo é para Platão uma prisão, uma caverna que aprisiona a alma. Assim o belo necessita de uma aproximação sensível e deve ultrapassar a visão do intelecto. Para Platão a observação das artes imitativas torna-se prejudicial para os jovens porque lhes cultiva uma aparência. O essencial para a compreensão e acesso ao belo seria proporcionar a beleza das obras geométricas que se baseia na proporção e numa concepção matemática do universo. Estas ideias irão influenciar o pensamento dos pitagóricos, que na Grécia foram muito importantes não só na filosofia, como na área da matemática.
Imagem: Afrodite de Cápua: Escultura do período clássico (século IV a.C,) aqui como cópia romana do século II; Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XVII)

A Civilização Grega - o belo como representação (VI)


A harmonia é um dos conceitos que nos permite compreender a representação do belo na civilização grega. O conceito de harmonia é distinto conforme o período, pois dos pitagóricos a Heráclito, de Policleto a Vitrúvio a evolução do conceito permitiu construir uma ideia de belo. Para os primeiros pitagóricos a harmonia fundava-se numa oposição. Oposição entre par e ímpar, ou masculino e feminino, ou unidade e múltiplo. Desta oposição apenas uma realidade poderia assumir a perfeição. O ímpar, a recta, o quadrado assumem um lado de bom e de belo e os seus contrários assumem o erro, a desarmonia.

Heráclito faz uma evolução desta ideia dos pitagóricos e assume que se o real vive um conflito entre unidade e multiplicidade importa viver dentro de uma tensão que é a da própria realidade. O conceito de harmonia em Heráclito é feito não da ausência do que está em desarmonia, mas do todo e do seu equilíbrio. Os pitagóricos do século IV a.C., integrarão as ideias de Heráclito.

Assim no período mais florescente da Grécia clássica a harmonia é construída como um equilíbrio entre entidades opostas. Entidades que se anulam uma à outra e que de uma evidente contradição nasceria uma harmonia fundada no conceito de simetria. A Grécia clássica assume o valor da simetria dentro do conceito de harmonia instaurando um cânone que define o belo. 
No século IV a.C., Policleto e a sua estatuária impõe esse valor do cânone, onde se encontram presentes aos valores das proporções no sentido geométrico. É a proporção o seu valor mais relevante, não o equilíbrio das partes. Vitrúvio mais tarde definirá a proporção exacta das representações do corpo. A representação do belo na escultura não segue uma unidade fixa, mas impõe um sentido orgânico. Os elementos do corpo devem estar adaptados ao movimento do corpo, à sua representação, à perspectiva, ao ângulo do espectador. Para Vetrúvio importa distinguir a proporção que representa uma técnica de simetria, da euritmia que faz a adaptação das proporções àquilo que a visão vai observar.

Imagem: Doríforo , cópia do original de Policleto, 450 a.C., Museu Nacional Arqueológico de Nápoles

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Biblio@rs (XVIII-XVI)

A Civilização Grega - o belo como representação (V)
 "Nas suas mãos a voz do mar dormia
  Nos seus cabelos o vento se esculpia
  A luz rolava entre os seus braços frios
  E nos seus olhos cegos e vazios
  Boaiava o rasto branco dos navios." (1)
É a coisa mais bela da terra, uma fila de cavaleiros” diz. “Não, de infantes”. “Não, de navios”. E eu penso, belo é o que se ama. Fazê-lo compreender é coisa muito fácil, para cada um. Helena, que via a Beleza de muitos, escolheu como seu homem e o melhor aquele que apagou a luz de Tróia: esqueceu a filha, os pais, e foi para longe, para onde quer Cípris, porque o amava. […] Quem é belo, é-o enquanto está debaixo dos olhos, quem também é bom, é-o agora e sê-lo á depois”. (2)
A beleza é uma ideia, uma abordagem de valores e uma representação. A Civilização Grega construiu um conceito para exprimir o belo. Chamou-lhe a Kalokagathía e tem em si um ideal do belo dos gregos que procurava harmonizar a alma com o corpo, a forma com o  espírito. Os artistas tiveram um papel muito importante na sua edificação material.


 A ideia de belo define-se melhor com a aproximação do século V a.C., pois a ascensão económica e cultural de Atenas permite-lhe ter uma noção mais clara do seu sentido estético. A vitória sobre os Persas no tempo de Péricles permitiu desenvolver de modo significativo as Artes, e, como já vimos, com destaque para a pintura e a escultura. 
A reconstrução da cidade, dos seus templos era também uma forma de revelar um orgulho do poder ateniense e permitiu dar um incentivo ao trabalho dos artistas.
A Civilização Grega tem em si outras razões para essa explosão artística. A técnica das artes figurativas gregas é de enorme alcance. A arte grega superou em muitos aspectos a arte da Terra dos Faraós. A arte grega faz uma aproximação entre a sua representação e a vida dos gregos. Tal não acontecia no Egipto dominado por uma arte virada para a abstração e organizada de uma forma muito disciplinada. 

Na  arte grega a escultura procura a expressão de um belo que se observe nos corpos representados. Os grandes nomes da escultura grega (Fídias, Míron e Praxíteles) procuram realizar um equilíbrio entre uma representação que seja realista, nas formas humanas e o respeito por um cânone (kánon) específico.
A escultura grega não constrói uma abstração, uma idealização de belo, mas apenas tenta encontrar o que pode ser classificado como uma Beleza ideal. A escultura grega tenta uma síntese em corpos vivos, onde o belo conjuga uma ideia de corpo e alma. A beleza na Grécia Clássica aspira a representar o esplendor do corpo numa estrutura que projete igualmente a bondade, os valores do espírito. Esse ideal, conhecido com o nome de Kalokagathía teve a sua expressão maior nos versos de Safo e nas esculturas de Praxíteles.
A escultura grega não busca os pormenores da representação. Ela revela com grande preocupação sua, uma representação de formas humanas. Nestas, um pequeno fragmento de movimento ou uma seção de uma ação encontra um equilíbrio e por isso a sua própria essência. Esta reside na simplicidade expressiva, mais do que nos pormenores. Houve algumas exceções, mas elas não representaram o essencial desta ideia grega, a expressão do belo.
(1) - "A Estátua" in No tempo dividido / Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Caminho. 
(2) - Poesia de Safo (séculos VII-VI a.C.), in Hélade: antologia da cultura grega / org. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Guimarães. 
Imagem: Auriga, século V a.C., Museu Arqueológico de Delfos.