quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Livros e leituras - As cidades Invisíveis

"(...) é o momento desesperado em que se descobre que este império que nos parecera a soma de todas as maravilhas é uma ruína sem pés nem cabeça (...) que o triunfo sobre os soberanos adversários nos faz herdeiros da sua longa ruína".

As cidades invisíveis é um daqueles raros livros que medita sobre a nossa respiração humana, no confronto com os símbolos que organizam o quotidiano, lhe dão vida, são a substância ténue da nossa efemeridade. Italo Calvino propõe-nos relevantes questões, dando-nos numa narrativa de múltiplas descrições, um conjunto diverso de cidades, a sua existência, a sua organização funcional, naquilo que as torna peculiares. A memória, como espaço de ligação entre dois tempos da cidade, não no sentido arqueológico, mas da vida, a que se adivinha em cada rua, em cada linha dos seus edifícios.

O desejo, como fruição de um espaço que se impõe e ainda no seu esforço final de tantas que já o materializaram em recordações. E ainda os sinais da cidade, não o seu comércio, as suas actividades, mas quando são espelhos de uma vida, a decifração do seu cosmos. Sinais para reconhecer a cidade de cada um, a real, a que existe, a que vive nos pensamentos, a que espera nascer.

E as cidades que se continuam noutras cidades, as que têm dentro de si a felicidade capaz de recriar a infelicidade, as que deslocam o supérfulo no silêncio das coisas passadas. As cidades que se desdobram em personalidades tão reais ou verídicas como habitadas em si ou vistas de longe, sentidas no ar. As cidades que respiram os nossos desejos e as que os destroem, as que da sua pele se refazem e as que se reconstroem em anéis sucessivos como as árvores no bosque, em frente de uma multidão de garças.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Livros e leituras - O Leitor



"As camadas da nossa vida repousam tão perto umas das outras que no presente adivinhamos sempre o passado, que não está posto de parte e acabado, mas presente e vivido. Compreendo isto. Mas por vezes é quase suportável. Talvez tenha escrito a história para me livrar dela, mesmo que não o consiga"

O leitor é uma história de crescimento, de descoberta de um jovem na Alemanha que viveu o Nazismo. Nele lemos uma história de desejo, de amor, de dominação na procura de um sentido que coloca o indivíduo na narrativa mais difícil de contar.

O leitor envolve-nos com os momentos de ternura, no encontro do amor, com as imagens que constroem o quotidiano do encontro e desencontro, Mark e Hanna. Dá-nos os contornos de como o Nazismo é um processo inexplicável, pelo condicionamento que colocou à geração que presenciou o mal e pela amargura mais violenta dos que morreram.

Com O Leitor compreendemos os dilemas morais da geração que recebeu a vergonha das atrocidades e de como censurar e castigar se tornou incompatível com compreender. As estátuas de pedra que fizeram de uma geração, os mecanismos de destruição mais vil do ser humano, dá-nos a arquitectura interna de uma sociedade desumanizada.

E nos confins dela, o livro, a leitura como forma de reaprender a vida e as possibilidades de sonharmos o mais íntimo do ser, "os laços azuis que anunciam a Primavera", que ainda nos poderá redimir do vazio. Esse vazio, como construtor do silêncio, como passo inicial para abrir caminhos, construir possibilidades, as que mais amamos e as que ainda desconhecemos...

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Livros e leituras - Nocturnos

"Um homem tem de estar disposto a mudar uma série de coisas, algumas delas nada fáceis. Tem de estar disposto a mudar aquilo que é. E até a mudar aquilo que ama."

Lembra-me as mazurcas de Chopin, as linhas de continuidade, após os silêncios, os ensaios de luz sobre a precariedade dos tempos para a alegria de uma simplicidade redentora. Os tempos do quotidiano, na aventura de recomeçar sempre com a esperança que o sorriso nos embale para uma respiração que nos conceda os momentos e os encontros que tanto amamos.

Sobre esse dia e esse tempo em que as tuas mãos, a tua pele rosada de emoção me beijou os dias. Desses gestos de delicadeza e de um olhar suave como a brisa, maior que as rosas, desse encontro com que maravilhamos os dias.

Nocturnos responde com a fragilidade das palavras à criação dos momentos fugazes que nos passam pelos olhos, e que tentamos resguardar, sentindo os acordes da música e do amor, capazes de nos dar sempre uma porta de possibilidades. A construção daquilo que o real e os outros nos fazem descobrir, que não tínhamos visto ou que estava simplesmente aprisionado. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Livros e Leituras - O Estado de Nova Iorque

"Quem planeou uma cidade assim? Um lugar onde podes ser quem quiseres teria de estar sempre para lá do humano. (...) O antigo centro do mundo é quase uma cidade para arqueólogos exercitarem as suas teorias sobre cidades afundadas e coleccionarem curiosidades de Babilónias, Granadas e Pompeias atlânticas". 

Tudo girava em torno das suas perguntas:
- Acreditas em Deus? E em que Deus? Já pensaste no que vais fazer no teu último dia? Em vez das perguntas tradicionais:
- Acreditas em mim? Gostas de mim? Gostas da minha terra? És meu amigo? Vais lembrar-te de mim?
Confias em mim? Vais amar-me para sempre? (...)

Não apontes para as montanhas se não tens possibilidades de trazer as montanhas até ti, não comeces uma linha à qual não conheces o fim, não digas o que fizeste se ainda não fizeste nada nestas coordenadas. Ajusta o teu nome às circunstâncias, tudo pode ser conversível. (...)

Um bosque, uma clareira, o Outono nas folhas das árvores, o relvado que se estende por vários hectares, o carreiro para as bicicletas, o lago (...) sentes uma alegria por estares de volta a um lugar tão imprevisível. Gostar de grandes cidades não é um sentimento pacífico"

Tiago, Patrício, O Estado de Nova Iorque, páginas. 23, 29, 39,61, 84 e 131)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Humanitas...

"Há uma certa hostilidade em relação ao saber, mesmo a este tipo de saber que é um saber de amador, no verdadeiro sentido do termo. Há mais defesa da ignorância, particularmente da parte daqueles que acham que sabem" ( Revista Ler, Setembro 2013)

Houve tempos em que a nossa relação com o que nos rodeava e com aquilo que respirávamos se construía muito pela reflexão que a materialidade das coisas se nos dava a perceber. A cortina que no real impedia de ver o dia inicial criado, nas palavras de Sophia, um véu de indiferença que não nos fazia compreender a substância da vida, era possível ser respondido com a abertura de possibilidades que o pensamento e o olhar concedia.

Existia a ideia de que a memória, as vozes intermitentes de solidão e sabedoria nos poderiam fazer redimensionar o humano. O livro, a ideia, a participação numa comunidade eram ideias que geriam possíveis formas de cidadania. Nesse tempo, hoje imensamente perdido, importa referenciar quem se dedica ainda, ao gosto pela curiosidade, ao livro, como embalo quente na construção da liberdade. São essas figuras que acima da globalização, aparente verdade de igualdade de oportunidades, nos concedem as diferentes vozes, as aldeias emersas do mundo que pretendem ter uma voz.

É pois possível ouvir quem procura no espaço público conciliar a razão e a virtude, acima das imagens em perpétuo movimento, sem o sentido da individualização. E compreender, acima da psicologia do pequeno facto, na essência, na estruturada relação do real. São a sua voz, na luta contra a falta de uma privacidade que expõe a nossa liberdade e intimidade a uma Estado "autoritário", sem questionamento das acções moralmente aceitáveis ou não, que importa escutar.

Pois essas reduzidas vozes estão no espaço público para nos acautelar das engenharias utópicas que uma minoria instalada em privilégios políticos pretende impor. E importa perceber quem faz da análise uma criação de liberdade e não o mar de comentadores, que aliando uma ignorância civilizacional a condicionamentos políticos retiram possibilidades à expressão da própria Democracia.

As vozes, as que sabem com inteligência e graça perceber o nosso desafio, que mais do que político é moral. Que mais do que quadrantes políticos, a nossa obrigação como sociedade, como indivíduos é combater a ignorância, a estupidez armadilhada e a incompetência dos que chegados ao Poder sem mérito são responsáveis pela falta de dignidade na vida de tantos.

Nessas raras vozes, contrárias à mediocridade reinante, destacamos uma que sabe dar-nos possibilidades à reflexão essencial, justamente José Pacheco Pereira. Herdeiro de uma tradição cada vez mais perdida, importa saber ouvi-lo e agradecer-lhe o seu sentido único de cidadania. Há nele uma educação liberal para o carácter que vemos quase nula em tantos momentos perdidos de um jornalismo sensacionalista e  com pouca alma.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Adormecer a noite


Memória de Natália Correia

"Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo" ( "IX", in Poemas)

Natália nasceu nas ilhas de lava e fogo, há justamente noventa anos, para nos dar uma poesia e uma criação da palavra capaz de nomear as coisas, a vida, a memória, as experiências do quotidiano com um ousadia apenas possível para os que buscam a identidade intrínseca de do real. Ousou sobre um País cinzento, com paixão, "o corpo do amor", essencial a qualquer criação, para buscar a inocência perdida das crianças, no espanto inicial de saber olhar. A sua inteligência, a sua ousadia, a sua liberdade criativa serão sempre uma memória do País cinzento, que das praias de lava ousava  o abraço e o beijo de outros encontros, capazes de redimir o Homem.

A escrita

"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até ao último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo" - Clarice Lispector, A descoberta do mundo

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

No Porto, entre as tuas margens


Nesta cidade, grande demais para cidade e especialmente pequena para nação é um mistério impossível de categorizar, na bela expressão de Carlos Tê. Há nela o reconforto da luz sombria que espelha as sombras dos sentimentos moídos pelos voos esquecidos.
Reencontrei nela a minha pele, a brisa empurrada pela nortada que me fez deslizar pelos caminhos de camélias, onde as flores  amarelecidas me fazem lembrar o que tanto amei e continuamente amo.
A tua pele branca ao raiar da aurora, o teu sorriso leve entre a penumbra azul. Olho para ti e penso se poderás ainda abraçar-me ao fim da tarde, entre os pasos de um sonho? Percorro este tempo e tenho em ti os passos transparentes que me fazem recordar o fio de ouro do Cabedelo e a saudade de aí repousar este olhar no teu sorriso de granito e camélias perfumadas pela maresia da Foz.
Imagem, © Pedro Fonseca, via Página do Facebbok, Porto, A melhor cidade do País

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Livros e leituras - Livre

"The idea of wilderness needs no defense. It only needs more defenders"

Uma história na primeira pessoa, uma narrativa de auto-descoberta para nos compreendermos no mais essencial de cada respiração humana. Um livro memória de uma viagem de quem parte fragilizado e chega revigorado, com novos olhos e uma alma mais forte para construir os dias. Quantos livros podem cumprir esta ideia de comprovar num percurso pessoal os dilemas com que somos confrontados? 

Mil e quinhentos quilómetros a pé, a percorrer um trilho, O Pacif Crest Trail, ente o deserto do México e o Estado de Washington, numa luta pessoal contra as dificuldades do caminho, os percursos selvagens, a alimentação, o recurso a fontes de água potável e as hesitações próprias da grande caminhada. 

A viagem como superação, o silêncio como companhia e a natureza selvagem como reveladora dos que nos pode fazer emergir para a alegria, a harmonia do que podemos ser. Um história íntima, tão próxima do vazio que por vezes a vida nos coloca e um caminho de descoberta, que é muito, quase só a única "magia da vida".
Andar, continuar, persistir na ideia da viagem e do que ela pode fazer por nós. As paisagens e as descrições do livro de Cheryl dá-nos uma fotografia dessa liberdade selvagem tão necessária ao coração do homem.  Só somos nós, cada um para connosco a iluminar os dias, com a aventura da viagem e a poesia das palavras. Um livro que é sobre as dificuldades que a vida por vezes coloca, um grito de liberdade. Um livro que comprova o que já sabíamos, é a viagem que nos transforma. Obrigado Cheryl!

Imagens © - http://www.pcta.org/

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Livros e leituras - No meu peito não cabem pássaros

Título: No meu peito não cabem pássaros
Autor: Nuno Camarneiro
Edição: 3ª
Páginas: 190 
Editor: D. Quixote
ISBN: 978-972-20-4625-1
CDU: 821.134.3-31"20"


"O mundo é um vazio desmedido que não queremos nem podemos aceitar, os homens também, as cidades, os países, os planetas também. Não há palavras que encham tanto vazio. Os livros que deixamos são obras de filigrana, fios ténues do sentido com que delimitamos o volume do que não entendemos."


Pessoa, Borges e Kafka, entre as suas cidades na visão de superar o quotidiano e construir a imortalidade de um caminho feito dos sonhos que nos transbordam. A vida, a memória, as palavras, a morte e o esquecimento, entre os caminhos que percorremos, com o sol a nascer em nós. A infância, o consolo das histórias vividas e inventadas entre os que no tempo forjaram o azul de um aconchego e nos deram a visão de um caminho.

Livro imenso, uma sabedoria de palavras, momentos intermitentes que nos dá a linha dos olhos que procuramos para recuperar a beleza, o encontro com a respiração do amor que nos faça ser um ponto brilhante nos dias esquecidos. A beleza e o sorriso entre as cicatrizes que nos caracterizam, que nos rasgaram o espírito e o corpo até chegar ao encontra, à mão, ao perfume solar capaz de nos fazer render um novo salto, a dos pássaros que em nós voam.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Livros e leituras - A mecânica do coração


Título: A mecânica do coração
Autor: Mathias Malzieu
Edição: 1ª
Páginas: 143 
Editor:Contraponto
ISBN: 978-989-666-020-8
CDU: 821.133.1-34"20"

"Sê imprudente e, sobretudo, entrega-te de corpo e alma" 

Um conto sublime cheio de fantasia, da imaginação que nos faz adormecer nos sonhos, naqueles que emergem na realidade e a reconfigura. A mecânica do coração é uma narrativa que nos dá a história de Jack que nascido na noite mais fria, nas encostas de Edimburgo, recebe um relógio para alimentar no peito o seu frágil coração.

Metáfora sobre o amor, o olhar construído nos sorrisos, A mecânica do coração é uma história de uma procura, do jogo de sedução para nos fazermos amar. Percorrendo a temporalidade de Georges Méliès e das suas imagens animadas, A mecânica do coração faz lembrar Lewis Carroll, pela fantasia que nos faz transportar para um conto de fadas.

 Afinal, como integramos os sonhos na realidade e de que modo o coração nos permite construir o amor com quem nos apaixona? A mecânica do coração leva-nos à fantasia do amor, à sua crueldade, à ternura dos passos que nos sorriem e à desilusão que não compreendemos.

De que coração precisamos para podermos ser amados, que mecânica nos pode fazer sorrir com o olhar e o sonho que mais desejamos? Um pequeno delicioso livro sobre o sonho na realidade, ou as infinitas possibilidades que um sorriso perfume a nossa respiração, na ternura de todos os momentos.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Livros e leituras - A cidade e as serras



Título: As cidades e as serras
Autor: Eça de Queirós
Edição: s.d.
Páginas: 256
Editor: Porto Editora
ISBN: 978-972-0-04954-4
CDU: 821.134.3-31"18"


"O homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado"

Manuscrito revisto pelo seu autor em apenas algumas das suas páginas, Eça de Queirós deu-nos em A cidade e as serras, um livro marcante da literatura contemporânea. Ele revela-nos a universalidade de Eça e desmistifica algumas das ideias feitas sobre o autor de Os Maias.

Formado em Direito, integrando uma carreira diplomática por diferentes países, compreendeu de uma forma profunda o que era substancialmente Portugal. Soube compreender a ondulação que fazia a onda maior, dando-nos páginas de análise dos costumes, dos hábitos e das instituições e de como estas formavam um País adiado de si próprio. Em As cidades e as serras, Eça dá-nos descrições naturalistas de grande significado, revelando-nos ter sido mais do que um crítico de costumes. Aqui revemos uma terra, uma cultura e uma memória em diálogo consigo própria.

A cidade e as serras propõe-nos um diálogo puramente actual que é o do Homem, o sentido que a sua vida poderá ter. Diálogo entre uma sociedade urbana, feita de conforto, onde a civilização se assume como um repositório de inovações técnicas e uma sociedade em comunhão com a Natureza. Diálogo entre a cidade, domínio de uma grandeza técnica, mas afastada do coração do Homem, da sua harmonia, pois é nela que a liberdade moral se perde e um campo que sublima os sentimentos humanos de uma forma genuína.

Era na cidade, que Jacinto no seu palácio de conforto e civilização vivia um mundo que o aborrecia. A cidade parece pois incapaz de conceber a felicidade humana - entre a dependência das modas, a pobreza dos rendimentos do trabalho e os rituais esquecidos. A cidade produtora de uma imensa indiferença, a maçada da vida. Com o campo Jacinto e nós descobrimos a natureza, a serra, uma das suas formas sublimes e nela um outro sentido para a vida - a comunhão com o Universo. A unicidade do Universo em formas múltiplas, leva-nos a compreender o homem, os animais, as plantas e os minerais.

É pois na Natureza que se descobre a diferença, o movimento animado de uma vontade que se expressa em formas de uma beleza rara. A que é feita de contemplação e de um silêncio que absorve a luz leve entre as folhas, onde nenhum pensamento outorga uma imanente felicidade. A cidade e as serras acaba por ser um manifesto naturalista, desenhando com um século de antecedência "o mal" da cidade encerrada em si e nas ligações à exploração individual. Eça dá-nos já o que será a desumanização das relações sociais que na cidade se evidenciam.

É assim um livro de uma grande beleza, pelas suas descrições do Douro, das relações sociais no Portugal de oitocentos, do enquadramento temporal e pela oferta de uma possibilidade, que a cada dia mais carecemos. A Natureza como forma e expressão de satisfação e de encontro, com o mais importante - a beleza. É nela que desenhamos com harmonia a nossa respiração e a graça que nos envolve. É na Natureza que descobrimos o melhor de nós, as janelas que fazem nascer o sol com todas as possibilidades.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Livros e leituras - As velas ardem até ao fim


Título: As velas ardem até ao fim
Autor: Sándor Márai
Edição: 25ª
Páginas: 160
Editor: D. Quixote
ISBN: 978-972-2020-6-26
CDU: 821.511.143-31"19"
"Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida" (pág. 41)

Que perguntas essenciais podemos colocar para entender o significado da vida? Vivemos em gestos quotidianos, sabendo-os como parte das palavras antigas, da memória que herdamos ou somos quase sempre esse esquecimento, o ânimo da beleza que nos surpreende. É a amizade e o amor a pergunta mais difícil, no sentido do que vincula o outro a nós e o afasta de uma parte do mundo? 

Em As velas ardem até ao fim, Sándor Márai dá-nos uma obra-prima, que entre a delicadeza dos gestos criados, usa uma linguagem que emerge para nos revelar a solidão do homem no tempo, os mecanismos supérfulos do poder, os laços que tentamos construir contra os estranhos que em nós moram. É uma narrativa fluida de sabedoria, de desconstrução dos tons obscuros em que as paixões humanas dissolvem as mais belas promessas de beleza e harmonia. 

É a história de uma amizade, de uma paixão e a descrição de um mundo, do seu ocaso, das suas figuras e de um real com os objectos que permitem a ordem no fim de um tempo. É ainda o testemunho de uma construção aristocrática, onde o silêncio e a ordem guardavam  os limites de um mundo construído de compromissos mútuos, dos que outorgam poder e dominação, pelo que conhecemos ou o que não sabemos decifrar.

É no fim, um livro sobre a amizade, essa superior forma de criar laços, sem o desconcerto do amor e das suas manifestações menos harmoniosas. E nesses laços, como separamos a respiração que não nos envolve, o gesto que atraiçoa o que sempre amamos? Pode a solidão e o silêncio das pedras, o abraço da cidade e os olhos da multidão, entre os sorrisos que nos são devolvidos, voltar a reconstruir o momento inicial?

Percebemos em As velas ardem até ao fim, os duelos que enfrentamos na vida, a solidão e a memória e o ideal antigo, do outro, qualquer um, como o amigo que aceitamos inequivocamente. E também, as diferentes formas de conceber o real, o simbolismo dos gestos, o despertar para o momento vital, a dignidade humana. O valor mais elevado sobre os pormenores da paixão, a solidão da noite, a casa antiga da humanidade, onde nos aceitamos no que somos, com os artefatos que moram no nosso coração.

Descendo a avenida ... rapidamente

Descia a avenida rapidamente, fugindo o mais possível, desse lugar que amou e já não compreende. Participar no mundo tornou-se difícil. Amou o latim e o grego, quis doá-lo como oferta de uma cultura, como um património para todos os renascimentos geracionais. Já é tarde, dizem, os que no delírio dos soundbytes, usam uma aparente simplicidade que tudo faria compreender, tudo transformaria. 

Na rapidez do passo, outra geografia, outros sonhos, onde a escrita possa ser possível, onde os gestos cuidados tinham um sentido, uma gratidão pelo sorriso generoso e riso aberto. Por aqui, por estes muros, a ousadia parece-lhe cansada, sem brilho, desfocada da ideia de beleza. Propostas rápidas para gestos cansados confirmam um novo tempo, crescente das mágoas insuficientes, para voltar a criar nos contornos dos dias. A rapidez do seu passo é a fuga de uma mágoa, tão presente como o arco-íris.

E destas múltiplas respirações, deste abandono sem grandeza, chegam à praia, a espuma do consolo econométrico, da grandeza romântica que transformou a escola num ATL sem imaginação. Outros virão, de um tempo sem memória, confirmando o sono civilizacional que a elite inspiradora de tempos modernos recriou em receitas de prosperidade infalíveis. Observo-lhe ainda os passos e fico com esta imagem perdida, de que perdemos como sociedade, como possibilidade de inscrevermos o dia de cores autênticas.

(No início de mais um ano escolar, a saudade dos que à pressa saíram para conservar uma dignidade que desapareceu das paredes de saber e escrita, do que ainda se chama escola).

Imagem, Faisal Almalki, Lastest in Street, in http://1x.com/ 

Recomeçar...

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses
De nehum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez te reconheças

Miguel Torga, Diário XIII