sexta-feira, 15 de abril de 2022

Leituras - Ernest Hemingway | O velho e o mar

«As nuvens por cima de terra erguiam-se agora como serranias, e a costa era apenas uma longa linha verde com os montes azul-cinzentos por detrás. A água era agora de um azul-escuro, tão escuro, tão escuro que era quase púrpura. Ao olhar para o interior das águas via o vermelho peneirar do plâncton nas águas sombrias e a estranha luz que o Sol fazia. Observava as linhas, para vê-las sumir-se da vista pela água abaixo, e sentia-se feliz por ver tanto plâncton, o que significava peixe. “

 

O velho e o mar publicado em 1952 é um dos livros marcantes do século XX e da obra de um grande escritor, Ernest Hemingway. Santiago, velho pescador desafia-se a si próprio para compreender o mar, os peixes e o modo como os encontrar. Desafio tornado essência de vida, no combate entre o pescador e um peixe enorme, um espadarte, numa luta difícil em que qualquer desfecho resultará sempre na perda do outro.


O velho e o maré uma aventura poética, sobre-humana de luta pela sobrevivência, de vitória sobre o perigo, ainda que dessa vitória se perca tudo. O velho e o mar coloca em confronto a natureza e a humanidade, revelando a dignidade desses dois mundos, as suas características, a sua beleza, mesmo que rodeada de perigos sublimes. O velho e o mar descreve essa luta de superação das próprias forças, a do pescador, a de um pessimismo céptico pelo que não seja experimentado e a solitária luta individual.


O velho e o mar oferece-nos uma leitura sobre esse confronto – natureza e homem. O mar surge-nos com a sua grandiosidade natural e o homem na dimensão mais elevada das suas possibilidades, numa luta pela sua sobrevivência. Luta feita de um conhecimento aprendido e que revela no episódio do pássaro que não conhece os falcões, essa ideia um pouco pessimista, ou talvez só realista, que o não experimentado, não é conhecimento.

 

É ainda um livro sobre a dignidade e majestade da luta humana, mas também das águas e dos seus habitantes graciosos, ainda que ferozes e combativos e dessa ignorância dos que passam e não compreendem – os turistas. Tudo no livro é composto pela ideia de dignidade, a do mar e da sua força, do homem e da sua experiência para sobreviver, do rapaz que acolhe o velho nas suas dificuldades e este que sonha, como última e definitiva possibilidade.
O velho e o maré um livro de uma linguagem muito descritiva, cheia de cores e cheiros, uma escrita fotográfica com os rios de emoções numa luta essencial – ver e pensar o mundo.

 

O velho e o mar / Ernest Hemingway. Porto: Porto Editora: 2015

terça-feira, 15 de março de 2022

Leituras - Sam Shepard | Espião na primeira pessoa


“Às vezes as pessoas aparecem assim vindas não se sabe de onde. Limitam-se a aparecer e depois a desaparecer. Muito depressa. Precisamente como uma fotografia que emerge de um banho químico”. (página 20)

Um homem vive no seu quarto. Dele espreita o mundo que no seu caso é uma rua. Nela vivem casas e pessoas. Uma parece-lhe gémea dele. Vive os dias num alpendre fechado, numa cadeira de verga, onde intermitentemente alguém o vem ajudar. Este outro homem limita-se a baloiçar o dia inteiro. Cá fora aves chilreiam, sinais da sua vida entre as árvores. Parecem cotovias e melros.


 Um homem vive no seu quarto. Tenta lembrar-se da geografia da rua, o seu mundo e recorda que esta tinha extensos pomares, diversos, como laranjeiras, oliveiras ou limoeiros. Lembra-se do aroma, fresco como uma manhã florida de primavera. Um homem vive no seu quarto e dessa rua próxima lembra-se de algo mais distante, os lugares de um caminho, onde em tempos sentia uma paz existencial. Que lugar seria esse?


 Na sua mente surgem os espaços de uma memória. O mar e os surfistas da costa ocidental, as gaivotas e os maçaricos nos seus voos pendurados de azul, banhados de maresia, dançam no volume das ondas. Um homem vive no seu quarto e dessa viagem entre a rua e o que se distancia na sua memória, pergunta-se, “De onde vim realmente?” Num país estrangeiro, vazios de todos os objectos, o que responderia cada um a esta pergunta. Nos nossos passos moram memórias de esquecimento.


 Um homem vive no seu quarto e observa outro, aquele que permanece o dia num alpendre à sombra das árvores, acompanhado pela sonoridade das aves. Às vezes torna-se difícil olhar, pois o ar ganhou cores turvas e as aves ficaram silenciosas. O homem do alpendre baloiça-se. Poderiam estes dois homens conhecer a relação das coisas com a sua vida, ali fixada, os sinais evidentes do mistério? Por que acontecem as coisas? As nuvens passam, brancas, como sonhos, as flores no alpendre oscilam ao vento e as aves voltam a chilrear.


Um homem vive no seu quarto, e do mundo que observa, a rua, o céu enorme, o outro homem, o do alpendre decide capturar nesses instante uma outra dimensão do tempo, décadas anteriores àquele momento, esforço e glórias, flashes entre o cansaço dos dias. Surge-lhe a ideia de anos passados ao sabor de uma experiência, com o tempo inicial de um conto de fadas, “era uma vez”. Dessa memória compreende que o presente dispensa a importância das coisas e naquela vive uma imensa fragilidade.


Um homem vive no seu quarto. Compreende que o passado permanece como um fragmento, múltiplos fragmentos e sabe que naquele presente fixo num quarto, ele é limitado como presente. É deste é que se fabricam memórias, mas que experiência evocar naquele presente, naquela rigidez de um olhar para uma janela, suspensa sobre a rua? Pode o presente ser curado, a sua “experiência tangível”, algo possível para um tempo menos frágil e mais lato de significado? Existem milagres nas coisas, ou é só acaso?


Tempo e espaço reúnem-se ali a evocar o seu sinal nas coisas, a degradação na experiência, a progressão ou o desejo para algo mais agradável. Um homem vive no seu quarto. Um outro homem habita no dia um alpendre, silencioso e quase imóvel. Árvores dançam sombras, entre pomares coloridos. O que sentem? Um tempo suspenso, entre o qual sobressaem nas ruas, flores esvoaçantes de perfumes de outono. O pensamento fixa-se em coisas repetidas. Lá fora aves voam entre flores. O crepúsculo leva o dia. Há sempre um depois, o que significa que algo sempre vai acontecer, um enigmático desconhecido. O céu flui. O grande azul expande-se entre tudo.


 Espião na primeira pessoa é o derradeiro livro de Sam Shepard. Nele e devido a uma doença incapacitante descreve do seu quarto, as impressões que sente sobre o seu mundo, a rua e a melancolia, com o espaço geográfico, ou como sentimento existencial. Livro sobre a existência vivida no espaço de uma solidão, é sobretudo a sua voz entre os objetos observados e a memória.


Espião na primeira pessoa / Sam Shepard. Lisboa: Quetzal: 2018.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Leituras - Carson McCullers | O coração é um conquistador solitário

 “Aproximou-se ainda mais do mudo e baixou a voz, num sussurro embriagado: – E porque será? Porque é que persiste este milagre da ignorância? Por causa de uma única coisa: conspiração. Uma conspiração pérfida e imensa. O obscurantismo.

Carson McCullers escreveu nos anos quarenta um livro que retrata todo o desapontamento, toda a angústia de universos inteiros que choram e lutam por uma vida digna. Construído sob a atmosfera social e económica da América sulista dos primeiros anos do século XX, O coração é um conquistador solitário é um libelo sobre as injustiças sociais, sobre uma forma sem brilho, que demasiadas vezes pessoas vivem, nesse desconforto que são vidas sem futuro.

   Um conjunto de personagens desfilam desejos, esforços, caminhos sem futuro, numa ideia de indefinição das suas vidas, de algo concretizável, a que não chegam, embora tudo deem para serem amados e compreendidos, tentando o emprego, o sonho, a amizade, a integração num meio, a sociabilidade que dê sentido às suas vidas.

  Singer e Antonopoulos, dois surdos-mudos que se tentam organizar numa forma de vida, do mais simples possível, da coerência de algum sentido às suas existências, da amizade capaz de construir um quotidiano de significado. A comunidade, os outros, onde todos os gestos não fazem sentido, quando não partilhamos um sentido de pertença. Biff, Jake Blount e o médico negro, Drº Copeland, a luta por uma vida acima das dificuldades da sobrevivência, os gestos antigos por uma luta de direitos e de dignidade humana.

   Mick, o sonho interior, a imaginação dentro da cabeça, a que supera todo o real adverso e insensato. Willie e Portia, entre os caminhos de uma sociedade sem justiça, a alienação moral da comunidade negra e a família ainda e o que pode ser neste mundo de fome e dívidas contínuas.  O coração é um conquistador solitário é um livro sobre a natureza humana, os bloqueios do obscurantismo que se propaga como uma doença. A doença da civilização, onde ficamos sozinhos em cada respiração, em cada sonho.

   Escrito apenas com vinte e três anos por Carson McCullers, The heart is a lonely hunter, ou o coração é um conquistador solitário é dos marcos da literatura do século XX. Carson McCullers, a sua obra, a sua vida é o mundo e aquilo que não se compreende e são as pessoas, todos aquelas que pisam territórios de fim do mundo, onde a timidez, o pudor impede os sonhos mais básicos, os mais simples de um fazer humano. As suas palavras são o quadro de um isolamento das pessoas dentro de si, com os outros e toda a intolerância moral que negros e mulheres sofreram numa América sem fim. As suas palavras maiores ficaram em quatro livros, O coração é um conquistador solitário, A balada do café triste, Relógio sem ponteiros e Reflexos nuns olhos de ouro, entre contos e outras narrativas. As suas palavras são um retrato de seres abandonados, mas são mais do que isso, são o espírito livre que se preza de narrar injustiças e com elas encontrar qualquer outra palavra, qualquer coração que possa construir uma luz, ainda que noutra cidade, ainda que noutro país.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Leituras - Herman Hesse | O último Verão de Klingsor

“(…) e se pude dar um sentido à minha existência, isso só foi possível através de uma inversão e uma introversão radicais, pela despedida de tudo o que conhecia até então, através de uma tentativa de me colocar entre os anjos.” (pág. 113)

Os primeiros anos do século XX edificaram o fim de um tempo, que tinha sido uma sociedade, que em muitos aspetos ainda procurava um sentido de harmonia, onde as possibilidades e os sonhos ainda tinham lugar. A incerteza e a dúvida, a degradação da vida humana, a anarquia e o caos nasceram amplamente no século XX, nas vésperas dos anos vinte de novecentos.

  A arte de viver, a valorização do belo, a sensatez e a nobreza de espírito foram sendo valores em queda, princípios que o século XIX tinha vivido, na sua própria memória. Com o novo século algo se rompe e o mundo que se vê nascer é de um horror pela violência industrial, com que as guerras introduziram a morte e a degradação da vida humana.

  As democracias iniciadas em diferentes locais da Europa sob a forma de repúblicas constitucionais tinham em si dificuldades de organização que tornaram muito difícil responder às contradições da industrialização emersas entre as novas ideias socialistas, a pobreza do operariado e o enriquecimento de uma burguesia ascende em poder económico e político.

 O Último Verão de Klingsor é uma de Herman Hesse, datado de 1920 e é um livro com muitos elementos autobiográficos, pois ele responde como um retrato desse mundo perdido, logo no início da segunda década do século XX, é o testemunho da perda dessa paisagem e ao mesmo tempo enuncia uma das formas possíveis de sobreviver a esse caos. História de um pintor e da sua procura por algo que possa permanecer, ou tão só na capacidade de entender o efémero, O Último Verão em Klingsor é uma visita a uma lembrança, a de um Verão concreto que busca no natural, ainda uma forma de libertação para criação de algo novo, diverso que libertasse o coração dos desastres vividos com o conflito de 1914-1918.

 A perda desse tempo e o regresso a uma sociedade já com outras pessoas, com outra geração enunciava essa dificuldade de encontrar um sentido para o mundo, tal como tinha sido conhecido. A intranquilidade e a relatividade do tempo tornavam difíceis recuperar valores antigos, como um certo sentido aristocrático da vida, ou a procura de novas formas do belo atirou essa geração para uma dificuldade de integração nesse novo mundo formalizado em caos e indiferença. O que Herman Hesse nos dá com este livro é a tentativa de realizar essa viagem e construir algo novo. A capa escolhida para esta edição, justamente os campos dourados de Vincent Van-Gogh expressam bem essa necessidade de viver entre um mundo desajustado de valores e ingrato para o Homem, para a sua liberdade criativa, enquanto ser individual.

O Último Verão de Klingsor / Herman Hesse. Lisboa: D. Quixote, 2020.