quarta-feira, 6 de julho de 2016

Leituras - Nos mares do fim do mundo

   "Mais uma vez, o sol-poente na Terra Nova. No céu, muito puro por cima de nós, estende-se, lá para o ocaso, uma rede de nuvens brancas, formando delicadas malhas, por onde se escoa o azul doce e levemente róseo... um mar liso, cheio de pequenos blocos de gelo, agora irisados de violeta e oiro. As asas e os gritos das gaivotas riscam com quentes sons vermelhos, vivos,  a brancura gelada do silêncio de que é feito o ar...   Na linha do horizonte, aqui e além, acendem-se os faróis dos outros navios de pesca - (...): são, como as velas acesas num lar, aconchegantes, criadoras de intimidade, estas ilhas de luz semeadas no ar infinito! Manolos e Ramons, Jeans e Pauls, Johns e Thomas, Toinos e Jões...Como nós nos sentimos aqui, perto uns dos outros, fraternos, iguais!: O mesmo ar santo nos liga e torna idênticos, como a graça de Deus une os eleitos das cinco partidas do mundo.", "Poente", página 67.
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  "Corria pelo fundo do mar, perfeitamente livre, como que alado, respirando sem qualquer esforço: apanhava flores lindíssimas, jamais admiradas antes, e escolhia conchas, azuis ou róseas, de formas encantadoramente bizarras. Sentia-se leve e feliz.
   E quando, por acaso, se mirou numa estrela de oiro que, cadente, lhe passava em face do rosto, ficou estupefacto: era muito mais jovem, agora.
   Se, ao mover-se, fazia ondear as águas azuis, destas desprendia-se uma música doce e perfumada, como ele em sua vida nunca ouvira, nem mesmo na igreja, em dias de órgão. A certa altura, porém, lembrou-se dos filhos pequeninos e quis levar-lhes as flores e as conchas: tentou por isso voltar à superfície. Em vão: sempre que experimentava nadar para terra, o mar tornava-se duro e impenetrável. Angustiado, repetiu a tentativa uma, duas... cem vezes: Impossível. Quis gritar: da boca saía-lhe um som, neutro  manso como o duma trompa de caça, quando ouvida de longe. E de novo a estrela lhe passou, lentamente, por diante; ainda uma vez se contemplou nela: sorria! Queria chorar, mas só podia rir. Foi neste momento, no auge da angústia, que o vigia o veio acordar...
   Que sonho mais esquisito! (...)
   Com bom ou mau tempo, com névoa ou com sol, o jovem contramestre do "D. Dinis", naquele dia, àquela hora, iria ouvir a música  do fundo do mar, colher as suas flores maravilhosas, apanhar as suas conchas belíssimas"., "O sonho", páginas 167-168.
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   "Hoje não escrevo sobre pesca ou pescadores. Não posso. Estou cheio de ti, meu amor, da recordação exultante da tua pessoa tão querida, desta ânsia dolorosa com que espero os teus beijos...
   É o fim da tarde, aqui, nestes mares da Terra Nova. E tudo, tudo me fala de ti: As gaivotas, milhares!, brancas, trespassadas de luz, levam nos bicos, alvoraçadas, os fios da saudade que se evola de mim como um perfume roxo e verde (...) e como elas desenham o teu perfil puríssimo e único... E alinha do horizonte, subtil, definida e límpida, fala-me do corte dos teus lábios, como ela delicada, rosados...
   Este ar frio, de neve rarefeita, imaculado... como me faz lembrar a linha da tua fronte tão nobre!
   E até as nuvens, pequenas, oiro e rosa, que outra coisa querem dizer que não seja as nossas mãos, as minhas e as tuas, longas... que se buscam?
   Meu amor, meu amor, como tu me habitas, a mim, a tudo em meu redor e até à distância!...
   E a neve, aquela cobertura virginal que não deixa o castelo da proa, sabes o que é? A oferenda que ambos nos fazemos, olhos nos olhos, entre os lábios e a ave do infinito...", "Poema", página 97.

Bernardo Santareno. (2016). Nos mares dos confins do mundo.E-Primatur.
(Um livro sobre a aventura enorme da pesca do bacalhau nas décadas de cinquenta praticada por portugueses nos mares da Terra Nova. Testemunho de António Marinho do Rosário que integrou a equipa de médicos da frota bacalhoeira. Um testemunho de grande humanidade sobre a viagem e a dureza desse trabalho. Acima da propaganda oficial do regime as palavras sempre mais nobres dos sonhos e das lágrimas dos homens que participaram nessas viagens).



segunda-feira, 4 de julho de 2016

Leituras - Os Transparentes

Acabou o tempo de lembrar
choro no dia seguinte
as coisas que devia chorar hoje
[do bilhete amarrotado de Odonato]

     era um prédio, talvez um mundo,
para haver um mundo basta haver pessoas e emoções. as emoções, chovendo integralmente no corpo das pessoas, desaguam em sonhos. as pessoas talvez não sejam mais do que sonhos ambulantes de emoções derretidas no sangue contido pelos pêlos dos nossos corpos tão humanos. a esse mundo pode chamar-se "vida".

   nós somos a continuidade do que nos cabe ser. a espécie avança, mata, progride, desencanta, permanece. a humanidade está feia - de aspecto sofrido e cheiro fétido, mas permanece porque tem bom fundo.                                                                 [das anotações do autor]
     - mas quem manda em tudo isto?
     - gente muito superior.
     - superior... como Deus?
     - não. superior mesmo! aqui em Angola há 
pessoas que estão a mandar mais que Deus.
[da voz do povo]

(Ondkaki já nos deu em diferentes obras uma narrativa poética capaz de nos devolver os elementos que no quotidiano africano nos permita compreender uma forma única de olhar o mundo, de o compreender, ou tão só de o experimentar. Os Transparentes é um livro sobre Angola, a cidade e o seu imaginário pós-colonial, onde nos é falado sobre a pobreza e corrupção com tons que oscilam entre o sarcasmo e uma abordagem hilariante. O livro centra-se na narrativa de personagens que circulam num prédio de Luanda. As personagens têm nomes invulgares, como "vendedor de conchas", " camarada mudo" ou "joão devagar" e essa própria construção dá o sinal de que a transparência que o livro procura é também alimentada por uma forma particular de ver a realidade. Os Transparentes tenta ler a cidade, através de um colectivo que experimenta uma atmosfera de modernidade e degradação. Os Transparentes é um colectivo feito de uma cultura de corrupção, de um quotidiano de pobreza, um sacrifício diário que não contempla necessidades básicas e a magia de uma cultura popular que se vê a si e às suas capacidades de resistência como a forma de existir. Desta retenhamos um dos excertos de Odonato, quando nos diz: "já não tinha força para desenhar nos lábios um gesto mínimo de espanto ou o que fosse um vulgar sorriso, a temperatura chegava-lhe à alma, os olhos ardiam por dentro chorar afinal não tinha que ver com lágrimas, antes era o metamorfosear de movimentos internos, a alma tinha paredes - texturas porosas que vozes e memórias podiam alterar."
Um livro a que vale a pena descobrir e uma obra literária de grande valor que volta a cimentar o nome de Onjaki na literatura africana de expressão portuguesa.)

domingo, 3 de julho de 2016

As muralhas do jornalismo...

"É possível ser-se isto, ou não ser nada disto", verso simbólico de Fernando Pessoa que revela a universalidade de um pensamento que o País provinciano jamais entendeu, que o Portugal futuro, o de hoje nunca saberá compreender. Pessoa pertenceu a uma geração profundamente transformadora do modo de apreender o mundo, dando-lhe conceitos de abordagem de clara dimensão de modernidade. 

O 1º modernismo vivido em Portugal nos primeiros anos do século XX e protagonizado por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, José de Almada Negreiros ou Amadeo de Souza-Cardoso produziram a construção de um conjunto de vanguardas, de que a revista Orpheu deu conta. O País não entendeu. 

O País nunca foi nada de relevante, estruturalmente construído porque todas as vozes de dimensão espiritual foram sempre afastadas, ou ignoradas. De Sá de Miranda a Miguel Torga, de Agostinho da Silva a Pessoa, de Eça a Bento de Jesus Caraça, o poder apenas se viu  a si próprio, essa irrelevante forma de domínio sobre a sociedade. Os media e em destaque as televisões que funcionam como agências de comunicação de interesses partidários e ideológicos particulares dão hoje corpo a produtos que são só ideologia e não são o que deveriam ser, a informação esclarecida e discutida par melhor conhecimento dos cidadãos.

As televisões privadas são o expoente de um produto que funciona como instrumento de poder. O Srº Sérgio Figueiredo, Director de Informação da TVI escreveu em 07.06.16 um artigo "O Orpheu não morreu", onde justamente revela a ignorância perfeita do que foi o Orpheu e utiliza palavras vagas para as conclusões que quis enunciar sobre o congresso do PS. Desgostado com a incapacidade da direita se reocupar nos sistema político, pensa que a ausência de crítica é a formulação de um País "domado, desaparecido", como se não tenha sido essa a vocação da direita, na c´pia sem inspiração do neo-liberalismo já visto em Regan ou Tatcher. O problema do Sr~Sérgio Figueiredo é não analisar, como sempre fazem a quase totalidade dos comentadores, os fundamentos de bloqueio da sociedade portuguesa, não formulando as consequências das normas jurídicas que os tecnocratas impõem ao sabor da indústria alemã.

O srº comentador que orienta a informação desse canal privado está tão preocupado com a viabilidade civilizacional do País que lamenta que quem governa tenha feito esquecer o activo certamente brilhante do senhor irrevogável. É certamente por isso que já lhe deu voz na sua televisão, onde alguns imaginam que o antigo jornalista fará comentários que não sejam a reprodução do seu clube de interesses. Não é difícil compreender que o Srº Sérgio Figueiredo e a TVI pretendem "vender" ao País daqui a uma década outro presidente da república. Talvez se enganem, pois a transparência ideológica do srº Portas é de uma evidência que faz ver até os cegos de espírito. É a construção política dos media. Está no seu direito, mas percebe-se o truque, causa de tanta mediocridade no sistema político.

Não valia a pena fazer a utilização da história e da literatura para demonstrar o que pensa da esquerda e da ausência momentânea da direita. Tudo o que é e foi poder em Portugal dese 1974 se merecem por falta evidente de dignidade da expressão política. Nada em Pessoa foi feito, como o artigo escreve, como marketing de venda, foi  a construção de um processo de transformação cultural e o actual governo e nenhum governo será alguma vez uma sombra do valor cultural do que foi o Orpheu. A utilização da História para fins de análise de causalidade quotidiana e convicção políticas são antigas. O artigo já citado revela uma completa ausência do significado do que foi o Orpheu e vende Fernando Pessoa como um comerciante. 

Não sei se as ideias do actual governo poderão triunfar. Mas elas pelo menos têm a decência de questionar o real e não ver o inevitável poder dos burocratas como a essência da civilização. O que importa é que é mais um exemplo de mau jornalismo, um jornalismo que não comenta, que não informa, que é já um produto acabado de um ponto de vista que desconhece a realidade cultural de um movimento essencial na História do século XX. É mais um exemplo dos nobres comentadores que nada comentam, que declamam a oratória de ideologias sem rosto humano, porque nem sequer compreendem o sentido, neste caso da universalidade do Orpheu. A todos eles, como dizia Pessoa, "um desprezo pelos aristocratas de tanga de ouro".

Imagem - Copyright: Keisuke Blackcoffee Ikeda

sexta-feira, 1 de julho de 2016

meninos...

   
O seu choro era calmo e doce porque cansado, perdido da sua casa desde os primeiros instantes do fogo, buscou primeiro referências visuais que o fumo impediu, entregou-se ao tacto e queimou a ponta dos dedos, e caminhou, forçando a sua coragem de menino gigante que recusava entregar-se à morte, caminhou, buscando os irmãos ou uma voz conhecida, buscando a vida ou o que fosse uma saída, caminhou como se as ruas menos queimadas fossem a saída do labirinto, molhou o corpo e o cabelo e a boca com a primeira água que encontrou e, no meio dos estranhos ruídos, o menino, no seu choro cansado, começou por descobrir uma espécie de silêncio, uma cama de tons não musicais que nasciam dos ruídos vindos das árvores e das casas em queda.

   Os longínquos todos no seu rosto (...), o que era lágrima e medo, tudo isso se esvaiu numa sensação repentina em que o incrível monstro da solidão gemeu e se desfez - o menino viu um peixe arfante saltitando, cheirando, se fosse isso, mínimas gotículas de água onde ela houvesse, para saber, também ele, da possível salvação,
   do outro lado, como se duas criaturas salvadoras se tratasse, um pássaro branco, chamuscado e manco, compunha o cenário que, repentinamente, como um poder renovador do mundo, fazia o menino, no meio do fogo, começar a sorrir,
    não hesitando, a criança, em transportar consigo o seu sorriso, os seus dedos queimados, as unhas doloridas, levando a fome no seu estômago em ardência, trazia um de um lado do peito, por segurança, restos de um sólido medo, do outro, meio apagada, uma intensa saudade da mãe e
    acometido da sábia sabedoria, pegou no peixe trémulo e deu de comer ao pássaro - como se aquele gesto resolvesse o mundo.

[das anotações do autor]
Ondjaki. (2015). Os Transparentes. Lisboa: Caminho. 
Imagem: Mauro de Bettio