quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Leituras - As núpcias silenciosas


Hoje aviso-te
que ficarei para sempre
arquejando no teu corpo,
na orla infinita da tua mão,
no teu ombro, que é uma espada.
Na tua língua, que é a minha.
Só o teu coração saberá
se é
promessa ou ameaça,
mas ficarei para sempre
e basta
.

("Mesmo que as tuas velas gelem"). 
 
Lourdes Espínola é uma poeta, crítica literária e jornalista natural de Assunção, Paraguai, onde nasceu em nove Fevereiro de 1954. Com uma formação diversificada nas áreas da Ciência, da Biologia e da Literatura tem representado o Paraguai em programas de leitura em diferentes universidades dos Estados Unidos e desempenhado o corpo de conselheira cultural do Paraguai em diferentes países  europeus.

Lourdes Espínola publicou mais de uma dezena de livros, com destaque para Timpano Y silencio (Alcantara Editora, Paraguai); La Estrategia dell Caracol (Manrique Zago Editores, Buenos Aires); Encre de Femme (Indigo Editions, Paris), Les Mots du Corps (Indigo, Paris) ou ainda Desnuda en la palavra /Ediciones Torremogias, Madrid). Com tradução em várias línguas, a sua obra tem recebido diferentes prémios literários, como o Prémio Sigma Delta Pi (E.U.A.), o Prémio La Porte des Poètes (França) e o Prémio Nacional de Poesia Herib Campos Cervera (Paraguai). 

Nesta edição da Glaciar e com tradução de Albano Martins esta 1ª edição procurou associar-se aos 205 anos de independência do Paraguai. Lourdes Espínola trata na sua obra da siuação da mulher, reflectindo sobre o corpo e a condição amorosa. As formas de exercício de liberdade e da condição da mulher no mundo actual é uma temática frequente na sua obra.

 Lourdes Espínola. (2016). As núpcias silenciosas. Lisboa: Glaciar. - (Cadernos de poesia). 

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Leituras - O lugar supraceleste

"O corpo não é o inimigo da alma. É essa a minha crença. Ambos precisam do mesmo sustento, que a ambos liberta: a verdade. Nas palavras de Goethe, "amaldiçoo a  mentira: ela não liberta a alma, ao contrário da verdade". Tal como Goethe, não falo aqui de uma verdade teológica, filosófica ou outra. Falo apenas da limpidez autêntica da verdade, em todos os nossos actos, gestos e palavras. Assim, o inimigo da alma não é o corpo; o inimigo da alma é o contrário da verdade."  

Existem livros que não nos narram histórias, eventos, ou experiências. Existem autores que não escrevem sobre o imaginário que não conhecemos ou sobre as experiências que a vida nos oferece no sentido da apresentarem como aquilo que são, apenas a face externa delas próprias. Existem livros que procuram no silêncio da realidade uma forma de encontrar uma extensão possível do que cada um é. Existem autores que procuram já no âmago da pedra verificar o sentido do enigma, o que Rilke chamaria a melodia das coisas.

O Lugar supraceleste de Frederico Lourenço é um desses livros e ele um desses escritores à procura da chama íntima das coisas, quando o futuro ainda é presente e quando o real é ainda uma possibilidade de cada um de nós, de construção de uma sabedoria. É um livro lindíssimo, no sentido de uma revelação, de uma caminho que sobe uma escadaria para chegar a um lugar mais elevado, o supraceleste.
"O mais íntimo tutano da alma", expressão de Eurípedes, a que Frederico dá corpo como uma linha desenhada na vida, construída no tempo. Livro lindíssimo, sim, mas de uma dificuldade imensa para o capturar, para o trazer para nós, nesse conhecimento que é uma sabedoria de que Frederico dá conta de forma tão substantiva que nos deixa à mercê de um sonho, o nosso, o que faremos dele.

Livro que procura uma ascensão, que tenta chegar às estrelas, às circunferências iluminadas de azul, às rosas de Píndaro para escrever a identidade de um caminho muitas vezes feito de angústia e por onde esse perfume de rosas faz avançar para outras formas de ser, sempre na margem de uma verdade pessoal, uma respiração das coisas em nós, quer dizer, nele. Em nós, também porque o livro é uma conversação, porque nos tenta dizer o que já fizeste para encontrares na manhã dos dias, "o mais íntimo tutano da alma?"

A escrita do livro  que Frederico propõe a si e que nos revela a nós faz-se muito da ideia de ascensão, de subida a um tempo de reconstrução pessoal, como forma de avançar. Ideia alimentada pela atmosfera musical e estética da Bach. O Lugar supraceleste é o desenho de um caminho, uma rota feita e é nesse sentido uma viagem, não com um traçado definido, mas na sua forma mais sublime, viajar para conhecer o mundo e os outros.

Ana Mota Ribeiro na apresentação do livro falou da erudição de Frederico como uma das suas chaves, erudição que nos comove, nos alimenta em pequenos pormenores, pois nós não somos desse mundo, ao contrário dele que parece ser "de outro tempo, de outro lugar". Frederico vive em diferentes tempos, esse de onde ele espalha uma sabedoria e um cuidado com que relata a melodia das coisas e as imagens com que escreve o tempo actual. E nesse sentido essa vivência em tempos diferentes permite-lhe "falar das insónias de Zeus como se falasse das nossas. (1)"

O Lugar supraceleste é uma ascensão que parte de lugares, de pessoas e de afectos. O Lugar supraceleste é uma ascensão que vive de atmosferas formativas, os pais, os lugares sagrados, os sons de uma aprendizagem para reordenar a mente para novas possibilidades. O Lugar supraceleste é uma ascensão tentada como uma vida a construir-se e a perguntar-se que valor e sentido tem, que perguntas importa responder. Sem dúvida a concretização da ideia de Eurípedes, o conhecimento do nome das rosas, da sua fragância e a descoberta de um belo que é tocante, do qual nascerá outro, assim o saibamos formular. 

O Lugar supraceleste é sobre uma viagem, um caminho de ascensão que já sabe na revelação de um belo que ele é um efémero e que essa dicotomia é a base de qualquer forma de revelação. A resposta mais bela para esse conhecimento é construir uma sabedoria que se faz de interrogação e de um caminho que cada um entrega a si próprio. Viagem confrontada com os caminhos nem sempre agradáveis da infância/adolescência, daquilo que só mais tarde se compreende.

O Lugar supraceleste revela um sentido de procura para em tempos diferenciados entender o que antes não se entendeu e compreender a fragância que os pais sempre dão e ver nela o que se pode entender dentro de nós, dentro dele, mas também os que quiserem ter a coragem de realizar essa viagem. O Lugar supraceleste é um livro de uma imensa e clarividente coragem, de uma exposição à procura de uma revelação. A que transporta a doçura herdada, como no seu caso da mãe que é imensamente tocante, uma definição sobre o amor, uma memória de todo o futuro, ou na memória do pai e do seu sentido redescoberto mais tarde.

E, finalmente a conquista de uma sabedoria que importa que nós façamos, a de compreender a frase de Voltaire, “Le paradis terrestre est où je suis.” E aprendemos com ele essa lição maior que os Gregos já conheciam, a identificação de paraíso com jardim, o que nos conduz ao corpo e à substância das experiências e do que cuidamos. E ainda essa ingenuidade ou saber feito dedicação vinda de Witenstein, de que as flores falam, o que nos faz acreditar em nós como cuidadores de fragâncias. E ainda e sempre a música, a cartografia desenhada de sons que permitem simbolizar essa ascensão. O Lugar supraceleste fala de tudo isso que é a vida, estabelece connosco uma conversação para que da experiência de Frederico nós também saibamos fazer perguntas e encontrar as nossas respostas, realizar a nossa viagem. Um livro deslumbrante de uma figura fascinante.

(1) - Anabela Mota Ribeiro, apresentação do livro, blog da Cotovia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Leituras - Uma casa na escuridão

Uma casa na escuridão. Sim, é o que somos. Pequenas linhas de fogo a romper horizontes de rara claridade, a luz breve de um crepúsculo que se alonga sobre sombras de imbondeiros. Uma casa na escuridão. Sim.  Um local que abriga a memória das pedras tumulares, os rostos imateriais do que amamos um dia, a luz de uma noite branca, as formas inocentes da beleza, as manhãs a nascer dentro dos olhos.

Uma casa na escuridão. Sim, é o que somos. O rosto antigo, como a formulação de um pesadelo, a despedida da memória visual e o vazio da escuridão, pontos de luz que circulam em desordem, como uma casa velha por arrumar. Uma casa na escuridão. Sim.  A solidão dos outros que já partiram, a culpa escondida do frio em nós, no abandono do que não se sabe explicar e as palavras escritas como um desarranjo de lágrimas, humildade em páginas por desvendar. 

Uma casa na escuridão. Sim. A que faz reconhecer os nossos olhos, o espelho onde revemos o que somos interiormente, o lugar infinito que é "o amor nos nossos olhos." E a luz rodeando os nossos passos, que iluminava a sala tardia da infância a nascer, e do reconhecimento do teu nome, nos meus lábios e como os canteiros de lilases se iluminavam em ti. Os meus olhos que te viam e te abraçavam, a tua fisionomia de luz num corpo ondulado, moldado a formas de seda.

Uma casa na escuridão. Sim. E as tuas palavras a descrever o fogo que faz nascer os momentos, essa felicidade onde tudo se compreende e tudo se perde. Uma casa na escuridão. Sim. A que sabe e experimenta que em cada olhar se entende como a beleza  e o amor são mistérios proibidos, ainda que por momentos em palavras de silêncio se tenha construído qualquer eterno sentimento. E esse medo, quase terror de tudo perder. A dor que acabamos por conhecer e o medo como uma sombra que nos lembra o que se pode ausentar, como o céu que vai perdendo as nuvens a circular pelo infinito e todo o mundo se esquecesse de uma letra, nós. 

Uma casa na escuridão. Sim. E, no entanto, nessa casa na escuridão, nessa falência de possíveis, a certeza de que se o amor é impossível, ele é tudo o que existe, ele é "o sangue do sol dentro do sol." A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Uma casa na escuridão. Sim. Ela é o fogo onde nascemos, o tempo e o espaço onde fazemos nascer o amor, "o sentido de todas as palavras impossíveis."

sábado, 19 de novembro de 2016

So long, Leonard




                                     

(Maybe, just maybe this van help yu in your journey! Take care, my friend)

Suzanne leva-te até o canto dela perto do rio
Tu podes ouvir os barcos passarem
Tu podes passar a noite ao lado dela
E tu sabes que ela é um pouco doida
Mas é por isto mesmo que tu queres estar lá
E ela alimenta-te com chá e laranjas
Que vem lá da China
E exactamente quando tu pensas contar-lhe
Que tu não tens nenhum amor para lhe oferecer
Então ela te alcança na sua própria onda
E ela deixa o rio responder
Que tu sempre foste o seu amante
E tu queres viajar com ela
E tu queres viajar sem pensar
E tu sabes que ela vai confiar em ti
Pois tu tocaste o seu corpo perfeito
Com a tua mente

E Jesus era um marinheiro
E quando ele andou sobre as águas
Ele passou um longo tempo assistindo
Da sua solitária torre de madeira
E quando teve a certeza que
Apenas os homens afogados podiam vê-lo
Ele disse: "Então todos os homens serão marinheiros
Até que o mar os liberte"
Mas ele mesmo estava quebrado
Muito antes que o céu se abrisse
Desamparado, quase humano
Ele se afundou na vossa sabedoria como uma pedra
E tu queres viajar com ele
E tu queres viajar cego
E tu acreditas que talvez possas confiar nele
Pois ele tocou o teu perfeito corpo
Com a sua mente

Agora Suzanne pega sua mão
E ela te leva até o rio
Ela está vestida de trapos e penas
Dos balcões do Exercito da Salvação
E o sol derrama feito mel
Em nossa dama do cais
E ela te mostra onde olhar
Entre o lixo e as flores
Há heróis entre as algas
Há crianças na manhã
Elas estão inclinando-se para o amor
E se curvarão assim para sempre
Enquanto Suzanne segura o espelho
E tu queres viajar com ela
E tu queres viajar sem pensar
E tu sabes que pode confiar nela
Pois ela tocou o teu corpo perfeito
Com a mente dela.

Leituras - Arquipélago

"A benção do instante: de novo nos encontrarmos nos círculos da eternidade." (Schiller)

A Geografia e a História. A Antropologia, a memória, as relações humanas, as ideias, a sociedade, o espaço onde nascemos e como o vemos. A Literatura tem em si a possibilidade de construir os quadros de vida com que cada um interage ao nascer. Quadros muitas vezes incompreedidos, inseguros, onde as puras contradições e a solidão tornam difusos e criadores de universos nem sempre inteligíveis para o rosto, ou para a respiração do coração.

A Literatura é também uma viagem, um mapa de estradas, de geografias, onde a vida se define, onde a intimidade se revela sobre o mundo interior de cada um, os seus sonhos, as suas dores. A Literatura é assim uma forma de conhecimento. Conhecimento de estados humanos e dos territórios onde se desenvolvem. Conhecimento de uma geografia poética, do natural e das narrativas que a ciência dos números não revela.

Arquipélago de Joel Neto olha para o património natural e humano de uma ilha, a Terceira e dá-nos formas de vida de um conjunto de ilhas, nas suas representações culturais, a sua História, as pessoas e a sua afectividade. Arquipélago é a narrativa de uma viagem, a de José Artur, entre o Continente e a Terceira, a sua redescoberta como pessoa, o seu sentido humano à procura da sua integridade, mas também da própria Ilha, da sua mitologia, dos seus valores etnográficos e antropológicos. 

Arquipélago procura trazer na Literatura as ideias de alguns estudos antropológicos que associam a Terceira a vestígios materiais e geológicos encontrados na Europa do norte e às comunidades do megalitismo. Tenta subscrever na acção de uma das suas personagens, nos seus estudos a ideia de que a Atlantida teria tido existência no espaço ocupado pela ilha Terceira, nos Açores. Arquipélago revela-nos o imaginário espiritual de lugares, as suas memórias e a construção de uma autonomia que soube dar voz a essas palavras, "antes morrer livres do que em paz sujeitos". Narrativa de personagens, de uma esperança feliz que se reconstrói de uma paisagem e da ideia que um lugar, como uma casa, como um amor, pode orientar a conversação de que se fez a vida.

Narrativa iniciada em 1980, com o terramoto que se abateu sobre a Terceira e a reconstrução que é também das histórias pessoais e da redescoberta na paisagem da idealização da beleza, entre o presente e as historias ocultas dos mitos. Narrativa de um presente, da insularidade, dos lugares, dos seus nomes, da sua etimologia e das suas referências ao que se procura desvendar do passado.

Geografia à procura das formas humanas que lhe dão sentido, nas suas expressões de intimidade, de formulação de recomeços para quem sabe que "o ignorante, sim desconfia. O homem culto acredita." Arquipélago é a construção de uma esperança.  

domingo, 13 de novembro de 2016

Leituras - M Train (I)

Acredito no movimento. Acredito no mundo, esse balão que vai continuando ininterruptamente a sua rotação. Acredito na maia-noite e na hora do meio-dia. Mas em que mais acredito? Às vezes em tudo. Outras vezes em nada. É uma coisa que varia como a luz que vai passando de um lado ao outro de um lago. 
Acredito na vida, que um dia todos nós iremos perder. Quando somos novos achamos que não, que somos diferentes. Em criança pensava que nunca iria crescer, que podia estabelecer isso para sempre. Mas apercebi-me, muito recentemente, de que terei atravessado uma linha inconscientemente escondida na verdade da minha cronologia

M Train é uma narrava fascinante sobre os dias vividos, no sentido que Marcel Proust lhe deu, uma forma de encontrar as memórias no presente, de recuperar o tempo passado. M Train é a apresentação honesta e livre de uma escritora, da sua vida, o seu assombro pelos despojos do vivido, os objectos, as viagens, os escritores, as suas marcas entre o sonho e a realidade. 
 M Train é a formulação de uma melancolia representada num olhar sobre as memórias, nessa indagação que procura saber, se qualquer divagação de pensamento é ainda uma inscrição no tempo real. E se este é coerente com uma vida vivida no presente e reflectida com os despojos do que já passou, do que já já não regressa.
M Train pertence a uma classe muito pequena de livros que têm a capacidade de estabelecer uma conversação, um diálogo com o leitor, retirando de histórias específicas valores de grande densidade humana. Livro que traz consigo uma recuperação mística da memória, um halo de magia sobre o que passou, um mapa sobre o que podemos recuperar, entre os sonhos e a realidade, uma melancolia doce sobre o tempo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016