domingo, 17 de novembro de 2013

Livros e Leituras - Os Enamoramentos

Há livros que aspiram a ser uma revelação sobre a própria vida, condensá-la nos seus silêncios, nos espaços em que sonhamos o amor com alguém, em que perdemos quem amávamos, estando sobre o foco das sombras, da memória, do que queríamos ainda sentir e que já não é possível. 

A palavra perdeu como outras o simbolismo, mas usemo-la como propriedade, com honestidade, pois Os Enamoramentos é uma obra-prima. É um daqueles livros que nos chegam com raridade durante uma vida meia dúzia de vezes. A vida, a sua soberania do momento em que o real se nos oferecia no sorriso de quem amamos. Somos essa fragilidade que o infortúnio, o acaso desperta sobre um nome e perdemo-nos no pó dos dias, até no sorriso enamorado de quem gostamos. Um livro imenso sobre a vida, sobre nós.

"Quando uma pessoa deseja uma coisa durante muito tempo, é muito difícil deixar de o desejar, isto é, de admitir ou dar-se conta de que já não a deseja ou de que prefere outra coisa. A espera alimenta e potencia esse desejo, a espera é cumulativa relativamente ao que se espera, solidifica-o e torna-o pétreo, e então resistimos a reconhecer que malbaratámos anos enquanto aguardávamos um sinal que, quando finalmente aparece, já não nos tenta, ou nos dá uma infinita preguiça de correr à sua chamada tardia de que agora desconfiamos, talvez porque não nos convém movermo-nos. Acostumamo-nos a viver dependentes da oportunidade que não chega, no fundo tranquilos, a salvo e passivos, no fundo incrédulos de que alguma vez venha a surgir. (...)

Sim, tudo se atenua, mas também é verdade que nada desaparece nunca nem se vai de todo, permanecem fracos ecos e fugidias reminiscências que surgem a qualquer instante como fragmentos de lápides na sala de um museu que ninguém visita, cadavéricos como ruínas de frontões com inscrições partidas, matéria passada, matéria muda, quase indecifráveis, quase sem sentido, absurdos restos que se conservam sem qualquer propósito, porque não poderão recompor-se nunca e já são menos iluminação que treva, e muito menos memória que esquecimento. E no entanto lá estão, sem que ninguém os destrua e os junte com os seus fragmentos esparsos ou perdidos há séculos: lá estão guardados como pequenos tesouros e superstição, como valiosos testemunhos de que alguém existiu um dia e morreu e teve nome, embora não o vejamos completo e a sua reconstrução seja impossível. e ninguém se importe para nada com esse alguém que é ninguém". 

Javier Marías, Os Enamoramentos, (págs. 170,171, 337 e 338)

Sem comentários:

Enviar um comentário