sábado, 7 de novembro de 2020

Leituras - Contra mim

 O importante era a expectativa de as palavras fazerem um milagre. Para mim, as palavras prometiam milagres, nunca pertenciam ao normal. Eram instrumentos de partida. Iniciavam deslocações e mudanças profundas. Talvez até nos impedissem o regresso, por maior esforço ou inteligência. Abria o meu caderno como se preparasse a mesa para uma evocação. “ (págs. 96-97).

Se há assunto em que a Literatura supera a História é nas narrativas de memórias, dessa etnografia que retrata modos de vida, espaços e tempos com o encantamento ou a desilusão de quem as viveu. Às vezes parece quase inexplicável que nestes tempos de grande velocidade tecnológica, de sofisticada mobilidade e de informação generalizada o encantamento pareça distante dos dias. Entre as últimas décadas do Estado Novo e a Democracia o país era de uma pobreza muito substantiva em largas zonas do País, com uma incidência particular no país agrícola e interior. A infância é um país distante, acho eu. Entra-se nele em diferentes latitudes e um dia esse território chegou ao fim e dizem-nos, - you may leave!

Esse país pobre e distante do litoral criava formas de olhar que lhe davam uma riqueza nobre. A infância que é um lugar onde se é pequeno, quase minúsculo vê esse mundo e deslumbra-se entre a urgência de ver o que não entende e a sua experimentação. Ouvir e ver eram as formas supremas de tentar entender, o que era só deslumbramento, onde as coisas tinham cores, cheiros e sabores. Nessas dificuldades de sobrevivência nascia com a infância um espaço de magia, de lugar de referências míticas. Era difícil? Era! Mas tinha um sentido existencial, como se fosse a própria revelação das coisas. Da nostalgia das cores, das formas geográficas e das pessoas subsistia algo como uma aprendizagem, ou uma inserção no que haveria de ser o mundo.

Sobre essa entrada na infância alguns imaginaram aventuras de respostas impossíveis, como que a demonstrar que o mundo, esse que fica fora da toca coelho branco é uma irracionalidade. Outros contaram-no dentro da ternura da própria existência. O meu pé de laranja lima foi um desses marcos a inaugurar a vivência da infância dentro de um sonho por realizar, nas franjas do que se anuncia grave e árduo. Valter Hugo Mãe fez o mesmo exercício sobre o que significou ser criança nesse País pobre, distante do mundo, a aprender a ser alguma coisa, entre o mistério e o desencanto, entre o sorriso e os outros. Mas fê-lo com uma imensa autenticidade, inscrevendo-se no tempo, dando o que foi e o que ainda é.

O livro, Contra mim, é uma peça de memória sobre a infância de um escritor, os seus medos, as suas alegrias breves, as suas capacidades para se reinventar continuamente. O livro é de um humor e ternura tocantes e nele se compreende como uma criança se tornou num homem inspirado, com um sentido para encontrar nas palavras e nos outros uma forma de mudar o mundo. A linguagem recria-se com uma substantiva criatividade e ao lê-lo o que nos é dado é uma bela conversação. Um livro pode contar uma história, ou pode falar connosco sobre o que já foi, sobre essa experimentação de criar uma composição de humano. Tudo se alimenta numa experiência e na edificação de uma colecção de palavras que juntas, como as pessoas podem criar novos significados, novos mundos e neles dar sentido à memória dos que partiram, ou até a esses bocados deixados em instantes para serem recriados em cada um. 

Contra mim ultrapassa a memória de um crescimento, de uma experiência social e representa o que foi o País em tantos sítios abandonados a si próprios, providos com a magia de quem vê. Lendo este livro ficamos mais uma vez a saber que a escrita das palavras é uma recolha elaborada, sentida sobre um tanque cheio de vozes e memórias, como um sinal de um tempo. Contra mim é uma criança a escrever, entre a sua infância e esses “bocados de Deus”, entre a companhia de um mundo e o que vai sabendo de si, na relação com os outros. Será talvez um dos melhores livros de Valter Hugo Mãe. É sem dúvida, um grande livro, uma leitura afectiva do mundo, como uma criança a escrevê-lo.