Um homem vive
no seu quarto. Dele espreita o mundo que no seu caso é uma rua. Nela vivem
casas e pessoas. Uma parece-lhe gémea dele. Vive os dias num alpendre fechado,
numa cadeira de verga, onde intermitentemente alguém o vem ajudar. Este outro
homem limita-se a baloiçar o dia inteiro. Cá fora aves chilreiam, sinais da sua
vida entre as árvores. Parecem cotovias e melros.
Um homem vive no seu quarto. Tenta lembrar-se da geografia da rua, o seu
mundo e recorda que esta tinha extensos pomares, diversos, como laranjeiras,
oliveiras ou limoeiros. Lembra-se do aroma, fresco como uma manhã florida de
primavera. Um homem vive no seu quarto e dessa rua próxima lembra-se de algo
mais distante, os lugares de um caminho, onde em tempos sentia uma paz
existencial. Que lugar seria esse?
Na sua mente surgem os espaços de uma memória. O mar e os surfistas da
costa ocidental, as gaivotas e os maçaricos nos seus voos pendurados de azul,
banhados de maresia, dançam no volume das ondas. Um homem vive no seu quarto e
dessa viagem entre a rua e o que se distancia na sua memória, pergunta-se, “De
onde vim realmente?” Num país estrangeiro, vazios de todos os objectos, o que
responderia cada um a esta pergunta. Nos nossos passos moram memórias de
esquecimento.
Um homem vive no seu quarto e observa outro, aquele que permanece o dia
num alpendre à sombra das árvores, acompanhado pela sonoridade das aves. Às
vezes torna-se difícil olhar, pois o ar ganhou cores turvas e as aves ficaram
silenciosas. O homem do alpendre baloiça-se. Poderiam estes dois homens
conhecer a relação das coisas com a sua vida, ali fixada, os sinais evidentes
do mistério? Por que acontecem as coisas? As nuvens passam, brancas, como
sonhos, as flores no alpendre oscilam ao vento e as aves voltam a chilrear.
Um homem vive no seu quarto, e do mundo que observa, a rua, o céu enorme, o
outro homem, o do alpendre decide capturar nesses instante uma outra dimensão
do tempo, décadas anteriores àquele momento, esforço e glórias, flashes entre o
cansaço dos dias. Surge-lhe a ideia de anos passados ao sabor de uma
experiência, com o tempo inicial de um conto de fadas, “era uma vez”. Dessa
memória compreende que o presente dispensa a importância das coisas e naquela
vive uma imensa fragilidade.
Um homem vive no seu quarto. Compreende que o passado permanece como um
fragmento, múltiplos fragmentos e sabe que naquele presente fixo num quarto,
ele é limitado como presente. É deste é que se fabricam memórias, mas que
experiência evocar naquele presente, naquela rigidez de um olhar para uma
janela, suspensa sobre a rua? Pode o presente ser curado, a sua “experiência
tangível”, algo possível para um tempo menos frágil e mais lato de significado?
Existem milagres nas coisas, ou é só acaso?
Tempo e espaço reúnem-se ali a evocar o seu sinal nas coisas, a degradação na
experiência, a progressão ou o desejo para algo mais agradável. Um homem vive
no seu quarto. Um outro homem habita no dia um alpendre, silencioso e quase
imóvel. Árvores dançam sombras, entre pomares coloridos. O que sentem? Um tempo
suspenso, entre o qual sobressaem nas ruas, flores esvoaçantes de perfumes de
outono. O pensamento fixa-se em coisas repetidas. Lá fora aves voam entre
flores. O crepúsculo leva o dia. Há sempre um depois, o que significa que algo
sempre vai acontecer, um enigmático desconhecido. O céu flui. O grande azul
expande-se entre tudo.
Espião na primeira pessoa é o derradeiro
livro de Sam Shepard. Nele e devido a uma doença
incapacitante descreve do seu quarto, as impressões que sente sobre o seu
mundo, a rua e a melancolia, com o espaço geográfico, ou como sentimento
existencial. Livro sobre a existência vivida no espaço de uma solidão, é
sobretudo a sua voz entre os objetos observados e a memória.
Espião na primeira pessoa / Sam Shepard. Lisboa: Quetzal: 2018.