terça-feira, 15 de março de 2022

Leituras - Sam Shepard | Espião na primeira pessoa


“Às vezes as pessoas aparecem assim vindas não se sabe de onde. Limitam-se a aparecer e depois a desaparecer. Muito depressa. Precisamente como uma fotografia que emerge de um banho químico”. (página 20)

Um homem vive no seu quarto. Dele espreita o mundo que no seu caso é uma rua. Nela vivem casas e pessoas. Uma parece-lhe gémea dele. Vive os dias num alpendre fechado, numa cadeira de verga, onde intermitentemente alguém o vem ajudar. Este outro homem limita-se a baloiçar o dia inteiro. Cá fora aves chilreiam, sinais da sua vida entre as árvores. Parecem cotovias e melros.


 Um homem vive no seu quarto. Tenta lembrar-se da geografia da rua, o seu mundo e recorda que esta tinha extensos pomares, diversos, como laranjeiras, oliveiras ou limoeiros. Lembra-se do aroma, fresco como uma manhã florida de primavera. Um homem vive no seu quarto e dessa rua próxima lembra-se de algo mais distante, os lugares de um caminho, onde em tempos sentia uma paz existencial. Que lugar seria esse?


 Na sua mente surgem os espaços de uma memória. O mar e os surfistas da costa ocidental, as gaivotas e os maçaricos nos seus voos pendurados de azul, banhados de maresia, dançam no volume das ondas. Um homem vive no seu quarto e dessa viagem entre a rua e o que se distancia na sua memória, pergunta-se, “De onde vim realmente?” Num país estrangeiro, vazios de todos os objectos, o que responderia cada um a esta pergunta. Nos nossos passos moram memórias de esquecimento.


 Um homem vive no seu quarto e observa outro, aquele que permanece o dia num alpendre à sombra das árvores, acompanhado pela sonoridade das aves. Às vezes torna-se difícil olhar, pois o ar ganhou cores turvas e as aves ficaram silenciosas. O homem do alpendre baloiça-se. Poderiam estes dois homens conhecer a relação das coisas com a sua vida, ali fixada, os sinais evidentes do mistério? Por que acontecem as coisas? As nuvens passam, brancas, como sonhos, as flores no alpendre oscilam ao vento e as aves voltam a chilrear.


Um homem vive no seu quarto, e do mundo que observa, a rua, o céu enorme, o outro homem, o do alpendre decide capturar nesses instante uma outra dimensão do tempo, décadas anteriores àquele momento, esforço e glórias, flashes entre o cansaço dos dias. Surge-lhe a ideia de anos passados ao sabor de uma experiência, com o tempo inicial de um conto de fadas, “era uma vez”. Dessa memória compreende que o presente dispensa a importância das coisas e naquela vive uma imensa fragilidade.


Um homem vive no seu quarto. Compreende que o passado permanece como um fragmento, múltiplos fragmentos e sabe que naquele presente fixo num quarto, ele é limitado como presente. É deste é que se fabricam memórias, mas que experiência evocar naquele presente, naquela rigidez de um olhar para uma janela, suspensa sobre a rua? Pode o presente ser curado, a sua “experiência tangível”, algo possível para um tempo menos frágil e mais lato de significado? Existem milagres nas coisas, ou é só acaso?


Tempo e espaço reúnem-se ali a evocar o seu sinal nas coisas, a degradação na experiência, a progressão ou o desejo para algo mais agradável. Um homem vive no seu quarto. Um outro homem habita no dia um alpendre, silencioso e quase imóvel. Árvores dançam sombras, entre pomares coloridos. O que sentem? Um tempo suspenso, entre o qual sobressaem nas ruas, flores esvoaçantes de perfumes de outono. O pensamento fixa-se em coisas repetidas. Lá fora aves voam entre flores. O crepúsculo leva o dia. Há sempre um depois, o que significa que algo sempre vai acontecer, um enigmático desconhecido. O céu flui. O grande azul expande-se entre tudo.


 Espião na primeira pessoa é o derradeiro livro de Sam Shepard. Nele e devido a uma doença incapacitante descreve do seu quarto, as impressões que sente sobre o seu mundo, a rua e a melancolia, com o espaço geográfico, ou como sentimento existencial. Livro sobre a existência vivida no espaço de uma solidão, é sobretudo a sua voz entre os objetos observados e a memória.


Espião na primeira pessoa / Sam Shepard. Lisboa: Quetzal: 2018.