sexta-feira, 31 de maio de 2013

Adormecer a noite


Perícia voadora

"(...)
É uma cilada, sim
Mas a vossa plumagem
A atenção ao mundo
A cabeça inquieta
Tudo tão destudo para o fascínio absoluto
Que venha uma
Se arrebate
E se perca no enigma
Armadilha de guerra
Sabe Deus quanto a beleza me fascina
Com este jogo
Que se devoro o mundo
Também o mundo me devora
Oh, malícia!
Oh, perícia voadora!"


Herberto Helder, 3º poema, in Servidões

sábado, 25 de maio de 2013

A casa desmedida III

A casa que, como a quinta, aparece em versos e contos que escrevi, era desmedida. Um casarão do século XIX com grandes janelas, grandes portas, tectos altíssimos e ao centro um enorme átrio, para onde  davam todas as salas do andar de baixo e a galeria do andar de cima. No alto uma imensa clarabóia iluminava a sucessão dos espaços. 

Por mais atentos que fossem os adultos era maravilhosa a liberdade das  crianças nessas casas grandes. Era possível passear uma hora no telhado, ou vaguear na cave, ou comer fora de horas, ou tocar piano na sala de baile sem que ninguém desse por isso.E também ninguém atendia o telefone, fixado numa parede da copa e que durante horas tocava sozinho. O tempo (naquela época) parecia espaçoso como mas casas - quem falava do lado de lá não tinha pressa.

Não era como agora quando numa casa muitas e muitas vezes mais pequena corro desabalada para o telefone e mal o toco logo ele se cala. Um dia, a correr para o telefone, parti um pulso - e mesmo assim amigos meus me dizem que tentaram falar para minha casa mas ninguém atendia. O homem actual perdeu o Tempo.Na minha infância e na minha adolescência os dias eram compridos e, apesar do colégio e dos estudos, cheios de horas livres, de demoras em que se podia cismar. Como disse Goethe, "o ócio é o trabalho do poeta".

(Originais integrados na exposição da Biblioteca Nacional e disponíveis a todos a partir de 2016)

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Memória da Palavra dita - Villaret


Nasceu em Lisboa, a dez de Maio de 1913, com o nome de João Henrique Pereira Villaret. Cresceu nos tumultuosos tempos da 1ª República. Estudou no Conservatório Nacional, foi actor de cinema, integrou grupos teatrais, mas foi sobretudo um artesão da palavra.

Declamou poesia para o grande público, tendo a televisão e o registo em disco deixado uma imagem da sua imensa genialidade. Num país cinzento, foi com Solnado uma das figuras capazes de sugerir imagens de transformação. Se Solnado o fez pelo riso, Villaret tinha também uma doçura e uma grandeza nos gestos e nas palavras, que deram tons novos à poesia de Pessoa, de Camões, de Florbela Espanca, entre muitos outros.

Villaret é um exemplo porque muitas das suas declamações são insuperáveis. Nem Mário Viegas soube ultrapassar a tonalidade da voz, a expressão de contrastes que ele pôs na Tabacaria de Pessoa. Contador de histórias, o seu exemplo é ainda maior pelo exemplo moral. Não são muitos os que usam as suas capacidades para o engrandecimento cultural e humano do País onde nasceram. Aqui fica um exemplo eterno da sua graça, num poema de José Régio.


A Casa Desmedida II

Na primavera a quinta enchia-se de abismos de verdura no parque sob os plátanos, as bétulas, os carvalhos, havia um intrincado, onde rente ao chão cresciam os morangos selvagens muito pequeninos e vermelhos como num conto de fadas. Para os colher picava-me e arranhava-me e rasgava os bibes e os vestidos. Aliás as crianças daquele tempo andavam sempre arranhadas e esmurradas por mil aventuras.Tínhamos continuamente "os joelhos deitados abaixo" das inúmeras correrias e trambolhões. 

Nas cidades, excepto nos centros, havia mais jardins e quintais, mesmo nos bairros pobres. Nós morávamos na periferia da cidade, entre a cidade e o mar, e à roda havia campos e campos e pinhais. Aí corriam e saltavam as crianças pobres, os "garotos da rua", como se dizia. Andavam quase sempre esfarrapados e descalços, alguns estariam subalimentados e alguns habitavam miseráveis casebres. Mas tinham para si vastos espaços livres e lúdicos, o ar fresco, a sombra das árvores, o sol, o verde dos campos.

Nâo tínhamos por eles grande admiração pois eram demasiado destemidos, saltavam todos os muros, corriam como gamos, trepavam às àrvores como esquilos e, com um galho de árvore, dois cordéis e uma tira de borracha fabricavam fisgas infalíveis. Hoje terão melhor alimentação, mais escolas, mais assistência médica, e as suas famílias terão melhores salários. Mas o desenvolvimento da cidade, em troco do que lhes deu, tirou-lhes o ar livre e o espaço da sua expansão. Por isso tanta agressividade, e droga e crime entre os muros cinzentos do inabitável. Naquele tempo, quando corriam e saltavam entre campos e pinhais, mesmo esfarrapados eram reis. Pelo menos assim nos parecia a nós que, sempre que podíamos, abríamos o portão ou saltávamos o muro, para os seguirmos como seus aprendizes, embora sabendo que nunca igualaríamos nem a sua velocidade nem a sua pontaria.

Assim, também nos longos verões das férias dessa época, o nosso pai dava sofisticadas canas de pesca, com pequenas bóias encarnadas que mostravam o menor toque. Acocoradoss no rochedo pouco, e às vezes nada, pescávamos. Puxávamos a linha antes do tempo, dávamos esticões e o peixe quase nunca ia no engodo. Mas nos rochedos próximos, os filhos dos pescadores com o anzol de drogaria e um cordel pescavam sem parar e enfiavam cachos de bressolhas contorcidas no gancho de arame. Por isso os pescadores chamavam ao seu trabalho "arte".

(Segunda parte do de "A casa desmedida", integrado nos inéditos que a BN abrirá oa público em 2016).

Jardim Botânico de Porto Alegre: pinheiros, ciprestes e palmas-de-ramos.
(via  http://commons.wikimedia.org)

sábado, 4 de maio de 2013

A liberdade de imprensa

«A ideia de dignidade individual adquiriu um novo significado pelo facto de a informação se ter tornado mais acessível na sequência da invenção da imprensa». (1)

A Liberdade de imprensa (dia que se comemorou ontem) devolve a cada um de nós a importância da informação nas sociedades contemporâneas, onde o pensamento, as ideias se pensam como o principal motor de organizar a sociedade e das escolhas feitas.

Associada à Democracia, a liberdade de imprensa é um dos elementos da sociedade ocidental que em alguns países souberam caminhar para a defesa do valor da liberdade individual, como suporte da legitimidade dos que governam. Evidentemente que o uso da razão, condição para o exercício da liberdade é limitado de imensas formas. A Democracia não é um estado natural do homem e das sociedades mais desenvolvidas. Ela carece de um trabalho profundo intimamente ligado à liberdade de informação.

Quando o sistema político dilui a capacidade dos cidadãos em formular opiniões por acções dominadas pelos factores económicos ou pela simples distorção dos factos a Democracia torna-se meramente formal. Em último caso é a própria legitimidade dos que governam que carece de fundamento.

O papel de uma imprensa independente do poder político, com capacidade financeira, interessada em ajudar a criar uma opinião pública é uma das bases de uma real Democracia. Jornalistas credíveis, cuja palavra é um recurso de fundamentação no espaço público, é uma das garantias da liberdade individual. Há ainda perigos para a escrita livre?

A Liberdade é assim, ainda um risco, um ideal para combater. Pelo controle económico das  empresas de media, pela condução de figuras menores à possibilidade de influenciar em discursos de cor única as possibilidades dos cidadãos e a sua dignidade. Em termpos de aparente abundância, a concretizaçãoi dos valores humanistas implicam uma atenção ao valor essencial de uma IMprensa comprometida com a civilização. 
 
A Liberdade de Imprensa é assim, não uma questão de países pobres, mas também das sociedades ocidentais, onde o espaço público é frágil. A Liberdade de Imprensa remete-nos em última instância para a leitura e para a escrita. Mostrando-nos como os recursos tecnológicos, sem uma massa crítica de ideias se esvazia em silêncios ameaçadores.

(1) AL Gore, O Ataque à Razão
Imagem, in http://notasaocafe.wordpress.com

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Dia 1 de Maio

Se a crise da sociedade ocidental se funda no presente momento numa decadência moral, uma das suas manifestações mais preocupantes é a forma como o trabalho é encarado. A ideia e função do trabalho evoluiu muito nas últimas décadas, a ponto de ser difícil reconhecer os valores de dignidade que já teve.

O trabalho é hoje uma simples mercadoria e o seu operário fabrica as relações de produção numa doutrina economicista, onde os valores estão desregulados. O poder instala-se para reproduzir relações de trabalho de dominância, onde o valor do indivíduo está esquecido, numa doutrina dizem para responder às necessidades do mercado. Puro engano. As necessidades do mercado de trabalho está construído em aparentes verdades, que servem não o mercado, mas os mercadores que o regulam.

Por isso o tempo natural do trabalho não é respeitado e todos na sociedade se tornam apenas utilizadores de variados serviços. Já não há doentes, utilizadores de serviços de saúde. Já não há alunos, mas sim os que utilizam a escola. Já não há pessoas, mas apenas autómatos que respondem ao mercantilismo onde o esforço e a dedicação não se valorizam mais. O conteúdo dispensa a forma.

É este neoliberalismo que reina, também em Portugal, onde após um curto e limitado Estado Social os progressistas avançam para o futuro, onde a dignidade do homem é uma utopia do passado. É preciso lutar contra esta ideia que pretende subdesenvolver o trabalho e quem o realiza. É preciso neste dia 1 de Maio lutar contra esta aparência de Democracia que pretende restringir o Homem a uma dimensão que não é a sua.

Um Estado que legitima os crimes económicos dos poderosos, que não fiscaliza os contratos laborais nas empresas que financiou, que desperdiça em obras de fachada, que manipula a imagem com o fim elevado de se perpetuar revela estar distante do valor do trabalho. Ele é o que dignifica e aquele através do qual o homem, pela sua inteligência pode repartir a criação de riqueza. Quando o trabalho tem menos importância que o capital, a sociedade só poderá antever graves crises de subsistência, mas também de coerência colectiva.

 Imagem, in http://www.flickr.com/photos/parkbes/4015327738/in/set-72157619947984876/