segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Leituras - A vida no campo

" - A incultura - digo, com o ar professoral que me resta - não será tanto a ignorância como a falta de curiosidade. Portanto, a cultura também não é o conhecimento. O conhecimento  está ao alcance até de um coleccionador. A um coleccionador não se exige empatia. Mesmo um sociopata pode ser um homem de conhecimento.
Fixo-o nos olhos.
- O homem inteligente é aquele que se deixa maravilhar." (p. 203)

A vida no campo é o testemunho de uma experiência, a vida construída num regresso, a geografia, as pessoas, os pequenos instantes capazes de uma redenção essencial. Livro auto-biográfico sobre essa experiência de regresso aos Açores, à ilha Terceira, onde se misturam as memórias, a paisagem que tanto dita da forma de ver e construir com os outros.

A vida no campo procura ainda fazer uma leitura do que significa viver em Lisboa, ser um urbano emprestado à cidade e realizar uma comparação, com o que se pode ser regressando ao lugar de origem. Livro de uma experiência intensa e maravilhada que descobre no quotidiano valores e uma sabedoria evidentes. João Neto escreveu uma não-ficção recorrendo à memória da sua família, aos modos simples da  Terra Chã e deu-nos uma pérola onde descobrimos, quem ainda não o soubesse, que a vida pode ser mais serena, mais viva e mais livre junto da natureza.

A vida no campo convida-nos para um conhecimento com o mais simples, o que nos faz crentes do mais importante, a que respira tranquilidade com os outros, porque a faz connosco, a que constrói esperança e reforça a intimidade. A que junta o Homem e a Natureza, comprovando o poema de Alberto Caeiro, na cidade a vida é mais pequena que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

A vida no campo é um livro de uma imensa luz, com o coração dos que em simplicidade transportam "o nome das coisas". Livro que nos ilumina, portador de uma linguagem emotiva, cuidada e que contribui para o papel da literatura, como evocação dos esquecidos, que em gestos de afecto nos salvam por nos aproximarem da essência perfumada do silêncio.

sábado, 28 de janeiro de 2017

A bullshit universe - Trump world

Imaginem uma mistura de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos” e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show, um espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise de 2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades da Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se nada fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas ameaças. Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns destes vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma determinada maneira? Claro que fica. E não é boa.

Pois deitem salvas e foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente dos EUA. É um populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais moderno do que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le Pen (não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é outra coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e um demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar as coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde as quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu aconselhava toda a gente a tomá-los à letra, mesmo quando contraditórios. Quer fazer da América “grande”; quer “dar voz” aos danados da terra do rust belt; quer dar aos empresários tudo o que precisam para deixarem de se preocupar com impostos, com a regulação, com tudo o que lhes dificulte ganhar mais dinheiro e fazer mais fábricas, mais empresas, mais automóveis, mais pontes e estradas; quer expulsar os “outros”, milhões de estrangeiros ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com Putin, que acha que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está disposto a ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem dos coreanos, nem de ninguém que não seja americano.

Mais do que querer controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar como ele pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua opinião sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir que só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule com o mesmo estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de como se perde qualquer conteúdo neste tido de comunicação. Comunica-se apenas a força, mais nada. Depois de ter feito declarações ofensivas para as mulheres várias vezes, quando confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais do que [ele] respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado “nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza os serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém mais…” Tudo se torna opinião – insisto, como nas redes sociais – e num mundo em que a opinião, a impressão, o “achar” substituem os factos pela força do número e a amplitude do vozear. A racionalidade é expulsa. Domina apenas o pathos.

A relativização do espaço público torna-se total e isso faz depender o que cada um pensa apenas da força de quem tem mais força. O bullying na informação é um factor fundamental da “experiência Trump” para varrer o espaço público dos factos incómodos e mostrar que apenas uma voz tem força – a sua. É um dos sinais mais preocupantes da tendência para o autoritarismo em Trump. Veja-se a utilização do Twitter. Trump usa o Twitter para dar notícias, para emitir opiniões e para fazer uma espécie de decretos presidenciais. Nada do que ele faz é novo, tudo são formas clássicas de comunicação. Se, em vez de dizer no Twitter “Amanhã haverá novidades sobre segurança nacional”, os seus serviços de imprensa fizessem uma nota dizendo “O presidente Trump anunciará amanhã numa visita à sede de CIA novas iniciativas sobre segurança nacional”, o conteúdo seria exactamente o mesmo. Se fizesse uma declaração à imprensa à saída ou à entrada de uma reunião, como é habitual acontecer em Portugal, dizendo que é um escândalo a CNN manipular o número de pessoas na tomada de posse, é o mesmo que no Twitter dizer as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. O uso do Twitter para anunciar uma decisão é o mesmo que emitir uma “ordem executiva” que depois assina em papel numa pasta de couro emoldurada a ouro. 

Nada disto é novo, só teve um upgrade tecnológico que lhe dá uma dimensão nova e essa dimensão tem sérias consequências sociais, culturais e políticas. Ao escolher um sistema de mensagens que tem o limite de 140 caracteres, Trump está a fazer uma declaração, um grito, uma ordem, mas prescinde de qualquer explicação racional para o que está a dizer, porque não cabe na mensagem, nem ele o quer fazer. Mas está também a falar do local do poder, a tornar puramente pessoal a comunicação e a pretender fazê-lo sem mediação. Aqui está outra coisa em que ele é moderno: para ele não importa, nem ele deseja, que haja qualquer mediação que “inquine” a sua voz. É ele e o “povo”. O Twitter substitui a comunicação social.

Todas as suas declarações e medidas são quase sem excepção inaceitáveis numa sociedade democrática, e não adianta dizer que tudo foi sufragado pelo “povo” em eleições. Uma democracia, vale a pena estar sempre a repeti-lo, não é apenas o voto – é também os procedimentos e o primado da lei. O modo como fala de deportar os ilegais só pode ser feito com um enorme reforço policial e campos de concentração. E depois onde é que os deixam? Na fronteira com o México? Atiram-nos ao mar para eles regressarem à Síria ou ao Brasil? Deportar dois milhões de pessoas não tem precedente desde a Segunda Guerra e não pode ser feito em tempo de paz sem uma mudança estrutural do Estado, tornando-o um Estado policial. O modo como fala da tortura viola várias convenções sobre a guerra e as declarações de direitos humanos que os EUA assinaram, para além de que qualquer militar lhe dirá que isso expõe os soldados americanos ao mesmo tipo de práticas. As guerras não são só com o ISIS, que não conhece qualquer regra, mas com outros inimigos, que estarão agora à vontade para aplicar aos americanos os mesmos métodos. A Administração Trump ficará igual aos torcionários argentinos e brasileiros.

A imediata ameaça e chantagem às empresas que trabalham fora dos EUA, às cidades que se recusam a entregar informação sobre emigrantes ilegais que nelas habitam, como Nova Iorque, ou que se recusam a aceitar as políticas de discriminação religiosa contra os muçulmanos, a todos os sectores da administração ligados a políticas de natalidade, de controlo dos nascimentos, de igualdade de género são também mais típicas de uma governação autoritária do que democrática.
Trump quer fazer o que quer sem qualquer entrave. Não é um democrata, não é um liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um nacionalista, é um demagogo revolucionário, egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz do seu próprio sucesso. E, como sucesso não lhe falta, essa voz soa-lhe bem alto. Milhões de americanos já entenderam que com Trump a resistência tem de ser imediata e constante e não pode ser complacente ou adiada. Como Trump tem com ele também muitos milhões, o ambiente político nos EUA é de cortar à faca e vai-se agravar todas as vezes que ele abrir a boca, e vai abri-la todos os dias, porque precisa de um contínuo fluxo para alimentar o seu estilo revolucionário. Menosprezem-no e pagarão um preço bem alto.

José Pacheco Pereira. "Trump, o rei dos tempos modernos", Público, 28.01.17
Imagem - Copyright, Los Angeles Times

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Leituras - Apologia do ócio

"A devoção perpétua ao que o homem considera o seu trabalho só pode ser sustentada negligenciando todas as outras coisas. E não é de forma alguma uma certeza que o trabalho de um homem seja a coisa mais importante. De uma perspectiva imparcial, parece evidente que muitos dos papéis mais sábios, virtuosos e proveitosos no teatro da vida são desempenhados gratuitamente, e são vistos, pelas pessoas em geral, como produtos de ócio." (1)

"Apologia do ócio" e "A conversa e os conversadores" são dois pequenos ensaios de Robert Louis Stevenson publicados em 1887 e 1882 na revista Cornhill Magazine e agora editados pela Antígona sob o título, Apologia do ócio.

Stevenson é um dos grandes  nomes da Literatura anglo-saxónica tendo deixado páginas muito significativas na leitura da alma humana, em duas obras marcantes, A ilha do Tesouro de 1883 e O médico e o monstro de 1886. Conhecido como um exímio contador de histórias e um infatigável viajante dá-nos em Apologia do ócio, um pequeno livro cheio de da vida mais luminosa que ainda é possível os seres humanos cultivarem.

No 1º ensaio Stevenson com aproximações a Thoreau explica-nos o valor cultural do ócio, um instrumento para cultivar uma arte de viver, onde a satisfação e a alegria possam enriquecer individualmente cada um, mas também a sociedade. A palavra ócio está impregnada de falsas atribuições, também porque no mundo dito civilizado apenas as actividades lucrativas devem merecer o entusiasmo dos vivos. Há na verdade uma religião social e política que consagra a sua fé a proclamar que os que não se deixam motivar / participar pelo espírito das moedas são gente de modesto valor humano. 

O ócio não é, como geralmente é tratado a pura negação de qualquer actividade. O ócio tem em si o gesto de uma concretização. Coisas que os princípios dogmáticos dos instalados no poder não pretendem aceitar. A indiferença do ócio pelas grandes e árduas tarefas do dinheiro e da conquista é a que fez Alexandre estranhar que Diogénes pela sua conquista de Roma. 

O ócio cultiva uma aprendizagem, a que se realiza nas margens de uma ribeira, junto a um muro de lilases ou sobre as copas das árvores, onde as cotovias abraçam o vento. Essa aprendizagem procura a maior lição de todas, "Paz, ou contentamento" (pág. 17). A aprendizagem assim feita dispensa conceitos e categorias e é por isso que é desprezada pelos grandes "sábios".

O mundo dedicado a uma actividade frenética, a acumulação retórica do saber ou o lucro interminável de vinténs produz pessoas com pouca consciência do seu próprio estado - estarem vivas e reduz-lhes a capacidade de exploração da curiosidade. Há um conjunto de coisas nobres que essa devoção quase exclusiva ao trabalho faz perder. A capacidade de estabelecer uma conversação agradável, a descoberta do mundo natural que nos envolve são caminhos para a construção do "teorema da viabilidade da vida" (pág. 27). 

A sensatez que um homem de ócio cultiva é de uma imensa generosidade, pois o que o mundo precisa não é de doutores a lutar por medalhas, mas pessoas felizes. Pessoas que iluminam espaços e que influenciam positivamente os outros. Apologia do ócio é um livro-pepita, um tesouro para salvar a vida, num mundo escravizado pelo dinheiro, pelo poder e dominado por uma aparente vitalidade.

(1) Robert Lous Stevenson. (2016). Apologia do ócio. Lisboa, Antígona, páginas 23 e 24.