Imaginem uma mistura de um comentador anónimo cheio de fúria com todos que não são ele próprio com um troll da Internet e alguém que vive entre “gostos” e conflitos nas redes sociais, um participante num reality show,
um espectador obsessivo de televisão do crime, do sangue, dos
escândalos, dobrado de um dos banqueiros que nos fez chegar à crise de
2008, um dos empresários que faz parte da lista das imparidades da
Caixa, do BES, de tudo quanto é banco e continua a viver como se nada
fosse, um menino mimado, um bully que se sente impune para
ameaçar quem quiser e tem alguns meios para ser temido nessas ameaças.
Ao fazer isto tudo, ou algumas destas coisas, ao ter alguns destes
vícios e obsessões, fica-se a pensar e a actuar de uma determinada
maneira? Claro que fica. E não é boa.
Pois deitem salvas e foguetes, uma personagem destas chegou a Presidente
dos EUA. É um populista e um demagogo clássico? Também é, mas é mais
moderno do que clássico, mais novo do que antigo. Esqueçam a senhora Le
Pen (não, não esqueçam), um produto reciclado da extrema-direita
francesa, uma das que têm maior história na Europa, porque Trump é outra
coisa, com outra história, outros know-how, outros riscos
enormes para a democracia e a paz do mundo. Trump é um populista e um
demagogo, mas também é um revolucionário, quer realmente mudar as
coisas, nem que para isso tenha de levar tudo à frente. Para onde as
quer levar sabemos pelos slogans e as intenções, mas eu aconselhava toda
a gente a tomá-los à letra, mesmo quando contraditórios. Quer fazer da
América “grande”; quer “dar voz” aos danados da terra do rust belt;
quer dar aos empresários tudo o que precisam para deixarem de se
preocupar com impostos, com a regulação, com tudo o que lhes dificulte
ganhar mais dinheiro e fazer mais fábricas, mais empresas, mais
automóveis, mais pontes e estradas; quer expulsar os “outros”, milhões
de estrangeiros ilegais, que diz estarem nos EUA, quer-se dar bem com
Putin, que acha que é como ele, esperto, audaz, sem regras, e não está
disposto a ter de pagar a defesa dos europeus, nem dos japoneses, nem
dos coreanos, nem de ninguém que não seja americano.
Mais do que querer controlar como nós pensamos, quer forçar-nos a pensar
como ele pensa. Se não vão a bem, vão a mal. No seu mundo, a sua
opinião sobre as coisas é equivalente à verdade, uma atitude muito comum
nas redes sociais e usa todos os meios para que, se não conseguir que
só a sua “opinião-verdade” circule, pelo menos que circule com o mesmo
estatuto dos factos. Há vários exemplos típicos de como se perde
qualquer conteúdo neste tido de comunicação. Comunica-se apenas a força,
mais nada. Depois de ter feito declarações ofensivas para as mulheres
várias vezes, quando confrontado, repete à saciedade que “ninguém mais
do que [ele] respeita as mulheres”. Repare-se: “ninguém mais…” Fez o
mesmo com os serviços de inteligência. Depois de lhes ter chamado
“nazis”, foi à CIA dizer que “ninguém mais do que [ele] preza os
serviços de informação”- Repare-se, de novo: “ninguém mais…” Tudo se
torna opinião – insisto, como nas redes sociais – e num mundo em que a
opinião, a impressão, o “achar” substituem os factos pela força do
número e a amplitude do vozear. A racionalidade é expulsa. Domina apenas
o pathos.
A relativização do espaço público torna-se total e isso faz depender o
que cada um pensa apenas da força de quem tem mais força. O bullying na
informação é um factor fundamental da “experiência Trump” para varrer o
espaço público dos factos incómodos e mostrar que apenas uma voz tem
força – a sua. É um dos sinais mais preocupantes da tendência para o
autoritarismo em Trump. Veja-se a utilização do Twitter. Trump usa o Twitter para dar notícias,
para emitir opiniões e para fazer uma espécie de decretos presidenciais.
Nada do que ele faz é novo, tudo são formas clássicas de comunicação.
Se, em vez de dizer no Twitter “Amanhã haverá novidades sobre segurança
nacional”, os seus serviços de imprensa fizessem uma nota dizendo “O
presidente Trump anunciará amanhã numa visita à sede de CIA novas
iniciativas sobre segurança nacional”, o conteúdo seria exactamente o
mesmo. Se fizesse uma declaração à imprensa à saída ou à entrada de uma
reunião, como é habitual acontecer em Portugal, dizendo que é um
escândalo a CNN manipular o número de pessoas na tomada de posse, é o
mesmo que no Twitter dizer as mesmas palavras, sem tirar nem pôr. O uso
do Twitter para anunciar uma decisão é o mesmo que emitir uma “ordem
executiva” que depois assina em papel numa pasta de couro emoldurada a
ouro.
Nada disto é novo, só teve um upgrade tecnológico que lhe dá
uma dimensão nova e essa dimensão tem sérias consequências sociais,
culturais e políticas. Ao escolher um sistema de mensagens que tem o
limite de 140 caracteres, Trump está a fazer uma declaração, um grito,
uma ordem, mas prescinde de qualquer explicação racional para o que está
a dizer, porque não cabe na mensagem, nem ele o quer fazer. Mas está
também a falar do local do poder, a tornar puramente pessoal a
comunicação e a pretender fazê-lo sem mediação. Aqui está outra coisa em
que ele é moderno: para ele não importa, nem ele deseja, que haja
qualquer mediação que “inquine” a sua voz. É ele e o “povo”. O Twitter
substitui a comunicação social.
Todas as suas declarações e medidas são quase sem excepção inaceitáveis
numa sociedade democrática, e não adianta dizer que tudo foi sufragado
pelo “povo” em eleições. Uma democracia, vale a pena estar sempre a
repeti-lo, não é apenas o voto – é também os procedimentos e o primado
da lei. O modo como fala de deportar os ilegais só pode ser feito com um
enorme reforço policial e campos de concentração. E depois onde é que
os deixam? Na fronteira com o México? Atiram-nos ao mar para eles
regressarem à Síria ou ao Brasil? Deportar dois milhões de pessoas não
tem precedente desde a Segunda Guerra e não pode ser feito em tempo de
paz sem uma mudança estrutural do Estado, tornando-o um Estado policial.
O modo como fala da tortura viola várias convenções sobre a guerra e as
declarações de direitos humanos que os EUA assinaram, para além de que
qualquer militar lhe dirá que isso expõe os soldados americanos ao mesmo
tipo de práticas. As guerras não são só com o ISIS, que não conhece
qualquer regra, mas com outros inimigos, que estarão agora à vontade
para aplicar aos americanos os mesmos métodos. A Administração Trump
ficará igual aos torcionários argentinos e brasileiros.
A imediata ameaça e chantagem às empresas que trabalham fora dos EUA,
às cidades que se recusam a entregar informação sobre emigrantes
ilegais que nelas habitam, como Nova Iorque, ou que se recusam a aceitar
as políticas de discriminação religiosa contra os muçulmanos, a todos
os sectores da administração ligados a políticas de natalidade, de
controlo dos nascimentos, de igualdade de género são também mais típicas
de uma governação autoritária do que democrática.
Trump quer
fazer o que quer sem qualquer entrave. Não é um democrata, não é um
liberal, não é um conservador, nem um fascista, nem um nacionalista, é
um demagogo revolucionário, egocêntrico e autoritário, que só ouve a voz
do seu próprio sucesso. E, como sucesso não lhe falta, essa voz soa-lhe
bem alto. Milhões de americanos já entenderam que com Trump a
resistência tem de ser imediata e constante e não pode ser complacente
ou adiada. Como Trump tem com ele também muitos milhões, o ambiente
político nos EUA é de cortar à faca e vai-se agravar todas as vezes que
ele abrir a boca, e vai abri-la todos os dias, porque precisa de um
contínuo fluxo para alimentar o seu estilo revolucionário.
Menosprezem-no e pagarão um preço bem alto.
José Pacheco Pereira. "Trump, o rei dos tempos modernos", Público, 28.01.17
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