quarta-feira, 29 de junho de 2016

Meninos d´água...

   O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar.  Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo. Saberia dele escondido na mais insignificante gota de água. Jurava. Se o seu menino estivesse por perto, ela nunca o ignoraria.

   Nadou ao fim do mar, à boca dos tubarões, dentro do vazio das baleias, sob as barrigas cegas dos barcos, no pensamento dos peixes e nas suas costas, entre as areias, atrás das pedras e debaixo. Buscou na cintilação quando a luz entrava água adentro fazendo de tudo um cristal gigante, podia ser que o filho fosse agora uma estrela e só soubesse brilhar. A mãe olhava o brilho como se o brilho a estivesse também a observar. Esperava e, de todo o modo, ficaria para sempre a esperar.

   Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu menino. Molhava-se, entendia as mãos em redor como radares aflitos por um abraço e imaginava que a criança fazia as ondas. Talvez as ondas fossem um modo de falar.
E ela ondulava. Sentia as marés como a respiração do mundo a caminho. Sentia que o tempo todo era deslocação e viagem. Era como sabia que a demora lhe criava uma distância insuportável, como se o planeta inteiro fosse constantemente para outro lugar. Como se o planeta inteiro estivesse a ir embora e ela precisasse de agir com urgência.

   Ela também achava que o seu corpo a secar era uma partida do filho. Quando sentia a roupa e a pele seca, dizia: partiu. Como se o filho levantasse do colo. De dormir no seu peito, como era costume. O menino evaporava talvez para observar as coisas desde as nuvens. A mãe ficava sozinha. Fechava-se em casa a recordar.
Pensava que o corpo do mar era o corpo do filho, sem distinção. O amargo do sal nunca a enganaria perante a falta dos beijos, a nostalgia dos beijos e a delicadeza da sua criança. Ela nadava dentro do filho. Era por causa disso que se estendia e só então acalmava.

   Uma vez, a mãe encheu de água um enorme jarro que levou para casa sem entornar. Fitou-o perplexa. Resplandecia na luz da tarde igual a uma lâmpada líquida ou a uma estrela guardada. Cuidadosamente, abraçou o jarro e longamente o acarinhou. Era então um lugar do seu filho. Depois, a mãe afundou um soldadinho para que a água pudesse brincar. Ela disse: brinca, filho. A água aquietou-se. Talvez o menino apenas brilhasse para brincar.

   A cada dia, assim repetiu até que a casa inteira fosse o mar. Um mar em vidros puros, transparentes, através dos quais ela o vigiava e expunha ao sol. Afundava lobos e carrinhos de corrida, super-heróis e dinossauros. Flutuava neles barquinhos de papel e afundava mais soldadinhos.  Um exército de brinquedos que, na transparência dos vidros, também esperava. E a mãe perscrutava o bulício das águas ou a maior cintilação para saber se o seu menino estava a comunicar.

   Circulava igualmente aquática, bailarina cautelosa, por entre os vidros sagrados, e eles evaporavam lentamente como se, lentamente, sem que o percebesse ou confessasse, a mãe se vingasse ao matar o mar. Haveria de o ver evaporar jarro a jarro, o tamanho de um menino pequeno, até ao infinito. Amaria e culparia o mar até ao infinito.

(O mundo grande apenas por que pertence aos crescidos é um mundo de tragédia. As crianças deveriam estar imunes a essa tragédia. Este ano contam-se oito crianças que morrem de forma violenta com as famílias que os originaram. Tão estranho mundo talvez se possa explicar por que se mistura na mente essa ligação entre a criança e o mar que se enleva de sinais não definidos, os elementos como forma de uma redenção que não se entende, ou talvez só o desespero mais absoluto, de que as palavras não sabem dar conta).

Valter Hugo Mãe. (2016). "O menino de água", Contos de cães e maus lobos. Porto: Porto Editora, páginas 31 - 39.
Imagem: Copyright - David La Mano

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Leituras - Chá e Amor

   Quente, quente era o dia. Kikuji, uma a uma, foi correndo as portas do pavilhão de chá. Os carvalhos explodiam de verdura para além da janela que enquadrava Fumiko - e a sombra das folhas, ramo após ramo, caía pelos cabelos da jovem...
   Inesquecível: a cabeça e a garganta de Fumiko eram tomadas pela luz da janela - e os braços , surgindo das curtas mangas de um vestido que ela parecia usar pela primeira vez, eram brancos, tão brancos!, com um leve toque de verde. Embora ela não fosse cheia, os ombros eram deliciosamente plenos e redondos, condição essa que  que, em discreta harmonia, lhe descia pelos braços.
   Chikako, entretanto, só tinha olhos para o jarro Shino.
   - Um jarro - disse - só é verdadeiramente um jarro quando utilizado para o chá. É um desperdício, quase uma ofensa, enchê-lo de flores estrangeiras, exóticas, alheias...
    - Pois a minha mãe também o utilizava como floreira - interrompeu-a Fumiko.
   - É como um sonho! Como se estivesse a sonhar... Estarmos aqui sentados com aquela lembrança de sua mãe! Tenho a certeza de que ela se sente feliz por ver esse jarro entre nós.
    Estaria Chikako a ser irónica? Sarcástica...?
    Mas Fumiko fez-se desentendida e disse:
   - Atrevo-me até a pensar que o senhor Mitani se serviu do jarro como se fosse um recipiente para flores. Quanto a mim, sinceramente!, não mais encarei este jarro como um utensílio do ritual do chá. (...)
   - E Chikako passou os olhos por todo o pavilhão. - Unicamente me sentirei em paz quando me for permitido que me assente aqu. Sabido é que frequento todos os pavilhões de chá, sejam eles quais forem, mas... - Só então é que olhou para Kikuji. - No ano que vem passa o quinto ano aniversário da morte de seu pai. Deveríamos evocar essa data através do ritual do chá. (...)
    A taça... Pois nunca me servirei da taça como se ela fosse uma simples chávena de chá. Trata-se de uma preciosidade. - Mas há exemplares de qualidade muito superior... Quando bebe por essa taça, é impossível que não pense nessas outras chávenas de chá. Sinto-me muito infeliz, mesmo muito, por lhe ter oferecido uma coisa tão fraca...
   - Mas tu acreditas realmente que nada mais podes oferecer do que peças de chá de refinado gosto...?
    - Isso depende das pessoas e das circunstâncias.
    As palavras de Fumiko soaram a Kikuji ricas de tonalidades harmoniosas.
  Seria ela tão ingénua que pudesse pensar que a lembrança de sua mãe, ou uma lembrança de si própria (talvez até algo de mais íntimo...), poderia ser inferior à taça de chá mais preciosa de todo o Japão...?
   O desejo e a desculpa (palavras entrançadas uma na outra), de que somente o que fosse belo é que faria com que a senhora Ota fosse recordada, apoquentaram Kikuji por longos momentos. Mas também foi um reencontro com as emoções mais subtis - e, como testemunha de tudo isso, eis que se erguia, na sua mente, o jarro de água Shino.
   O íntimo aspecto desse jarro, incandescente e frio a uma tempo, levava Kikujia pensar na senhora Ota. E como essa peça era de tão fina contextura, tão e tão fina!, sucedia que a lembrança da mãe de Fumiko lhe surgisse isenta dos tons obscuros da fealdade e da culpa.

Yasunari Kawabata. (2003).Chá e Amor. Bibliotex Editor, páginas 95 e 118
(A literatura japonesa do século XX tem algumas referências importantes, sendo Yasunari Kawabata uma das mais relevantes. Prémio Nobel da Literatura em 1968, a sua vida cheia de privações afectivas, de recomeços quase como formas de sobrevivência influenciou uma obra, onde dos títulos com alguma relevância surge este seu livro, Chá e Amor
Primeiro publicado em revistas japonesas foi editado em livro nos anos cinquenta dos século XX. Tal como outros seus livros, em Chá e Amor são ainda as referências de uma sociedade que enfrentava as mudanças vindas do Ocidente que marcam as personagens, numa tentativa de resgatar valores tradicionais do Japão. 
A cerimónia do chá acompanha uma história de diferentes figuras, um triângulo afectivo, por onde se encontra uma narrativa poética, onde a figuração da delicadeza, da serenidade são elementos que procuram conviver com um ambiente de algum drama e ressentimento. 
Utilizando descrições sobre o chá e a louça que o identifica vemos ao mesmo tempo descrições do simbolismo no vestuário sobre os valores da nobreza e da felicidade. Yasunari Kawabata concilia o património de uma cultura ancestral, o valor da sua arte milenar e o confronto no quotidiano com uma cultura social mais moderna, sempre com alguma melancolia, uma doce tristeza vinda também da efemeridade do tempo e da própria natureza do homem e das relações que estabelece com os outros).

segunda-feira, 13 de junho de 2016

No nascimento de Pessoa

Vejo-os belos aristocratas bem vestidos, a confluência da política por avenidas sem decência humana. Vejo-os belos e ricos chefes de informação de televisões que confundem tudo, a informação e o poder. Vejo o grande século e olho estas tuas palavras e elas bastariam para enunciar a tua universalidade, a falência humana dos séculos sem a dignidade e a inteligência das ideias... 
Obrigado Fernando...
"Abram todas as janelas do mundo..." 
Mandado de despejo aos mandarins do mundo

Fora tu,
reles
esnobe
plebeu
E fora tu, imperialista das sucatas (...)
Ultimatum a todos eles
E a todos que sejam como eles
Todos!
Monte de tijolos com pretensões a casa
Inútil luxo, megalomania triunfante (...)
Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular
Que confundis tudo (...)
Sim, todos vós que representais o mundo
Homens altos
Passai por baixo do meu desprezo
Passai aristocratas de tanga de ouro
Passai Frouxos
Passai radicais do pouco
Quem acredita neles?
Mandem tudo isso para casa
Descascar batatas simbólicas
Fechem-me tudo isso a chave
E deitem a chave fora
Sufoco de ter só isso a minha volta
Deixem-me respirar
Abram todas as janelas
Abram mais janelas
Do que todas as janelas que há no mundo (...)
E o mundo quer a inteligência nova
A sensibilidade nova
O mundo tem sede de que se crie
Porque aí está apodrecer a vida
Quando muito é estrume para o futuro
O que aí está não pode durar
Porque não é nada
Eu da raça dos navegadores
Afirmo que não pode durar
Eu da raça dos descobridores
Desprezo o que seja menos
Que descobrir um novo mundo
Proclamo isso bem alto
Braços erguidos
Fitando o Atlântico
E saudando abstratamente o infinito."


Álvaro de Campos, 1917

domingo, 12 de junho de 2016

Amadeo de Souza-Cardoso - A criação do artista


Um pequeno filme sobre o percurso curto de vida e a genialidade de uma obra que se integra nas vanguardas que no início do século XX marcariam a cultura e a ruptura de valores na sociedade. Amadeo de Souza-Cardoso é um dos pontos mais altos da arte do século XX. Aqui o evocaremos em diferentes materiais que fomos produzindo em outras plataformas e que procuraram relacionar o 1º Modernismo com outros dois nomes essenciais, Almada Negreiros e Fernando Pessoa.