sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

The Pan within - The Waterboys

Come with me
On a journey beneath the skin
Come with me
On a journey under the skin
We will look together
For the pan within (...) 

Memórias ... no Central Park

"A natureza é infinitamente paciente, uma coisa começa a viver depois de outra lhe ter aberto caminho; as flores de magnólia morrem no momento preciso em que nascem as de laranjeira. O sol a atravessar as pétalas das flores de cerejeira salpicava de sombras e erva húmida e novas folhas, aos milhares, dançavam na brisa de abril, de tal modo que, em certos momentos, as árvores na extremidade do relvado pareciam irreais."

Teju Cole, Cidade Aberta, pág. 223

31 de Janeiro de 1891

«Entre monárquicos e republicanos, em Portugal, não há diferença de crenças. O que há é diferença de posições. Republicanos somos todos nós, mesmo os monárquicos. Se estes aceitam a monarquia, é porque a monarquia, existe, nada mais». (1) 

A 31 de janeiro de 1891 eclodia no Porto uma revolta militar que procurava pela primeira vez instalar em Portugal o regime republicano. Nos finais do século XIX um conjunto de condições tinha desacreditado a monarquia e os seus governos. Além da crise económica e social, a difusão de ideias socialistas, mas acima de tudo o desenlace em relação ao Mapa Cor-de-Rosa. Pretensão de um País com um resto de Império que ainda ambicionava chegar às importantes matérias-primas do continente africano. O triunfo da ideia republicana passou muito pela propaganda de que só um novo regime poderia ultrapassar essa humilhação face aos ingleses, mas também as consequências que se sentiam fruto da desvalorização da moeda, da quebra dos investimentos ou das falências.

Importa destacar que o Porto era um local priveligiado, como o tinha sido durante as lutas liberais, pelas características únicas que sempre teve. Uma burguesia que ambicionava construir novos caminhos de progresso, uma ideia de cidadania e um patriotismo tão específicos. Terra de mercadores e viajantes era uma cidade que via naquela cedência uma falha e um retrocesso às lutas liberais a que tanto tinha dado. No 31 de Janeiro, como nas lutas liberais, no Porto, o que mais importou não foi o regime, mas a procura da liberdade, a voz capaz de criar.

Comemorar hoje o 31 de Janeiro deve conduzir-nos a esta ideia de generosidade e de autenticidade própria que o Porto sempre cultivou. Essa ideia de que o Porto é, desculpem-nos a audácia, sempre será, uma geografia que apenas luta consigo próprio para se afirmar diferentemente e ser aquilo que Agostinho da Silva falava com o seu brilho de sempre, «uma ilha rodeada por Portugal». A grandeza do Porto faz-se das relações de proximidade que a cidade estabelece, da capacidade individual da ideia que se constrói. O modernismo do Porto tem de recuperar esta voz que ousa sobre um coletivo para se afirmar apenas na sua respiração.
Comemorar o 31 de Outubro de 1891 deve ser também uma oportunidade para avaliar melhor e clarear a luz que incide sobre este período histórico. Existem muitas certezas que não correspondem àquilo que era de facto a Monarquia e o Partido Republicano, no início do século XX. É preciso saber contornar os discursos vitoriosos da História e dar a voz da individualidade aos que ficaram em segundo plano. O 31 de janeiro é uma oportunidade para compreender as oportunidades perdidas de uma sociedade que se mantém numa longa-duração constante de ineficácia e sem brilho da sua memória.

(1) João Chagas, João Franco, «A estranha morte da monarquia Contitucional»
in, História de Portugal, José Mattoso (direc.)
Imagem, a antiga praça D. Pedro, hoje Praça da Liberdade
(via http://acidadesurpreendente.blogspot.pt)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Gandhi - a consciência da humanidade

"Gerações inteiras mal poderão acreditar que um homem assim, em carne e osso, tenha alguma vez passado por este planeta." (1)

A trinta de Janeiro de 1948, despedia-se deste mundo físico um homem de uma imensa grandeza, que com simpilicidade, determinação e beleza soube congregar em si a dimensão única da consciência da Humanidade. Fez da verdade e da justiça a sua causa de vida, enfrentou o Império britânico com a força do espírito, com a sua satyagraha, onde juntou a sua preocupação com os outros à ideia de não-violência.

Mostrou-nos como as causas são um património de todos, maiorias e minorias e que a injustiça, mesmo de um só homem, é ainda uma injustiça. Com a sua vida exemplificou a procura da identidade que há em cada ser humano e como a paz e a harmonia tem de ser uma acção não só de pessoas, mas também de nações.

É um privilégio e um reconforto encontrar pessoas que na sua passagem por este planeta procuraram fundar a liberdade contra a opressão, em caminhadas de lucidez, tranquilidade e luta abnegada por um ideal. Raramente encontramos o Homem, a Humanidade nessa individualidade capaz de enfrentar impérios estabelecidos derrotando-os pela demonstração da injustiça.
  (1) Albert Einstein, citado de Ghandi, Richard Attenborough 
Imagens, in http://www.finewallpaperss.com

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Memória de Vergílio Ferreira

Há noventa e oito anos que nasceu nas serranias da Estrela, para criar uma obra de trabalho de palavras, um trabalho artesanal, por onde romanceou a nossa existência que em tantos momentos se cerca da solidão e da interrogação do eu, num universo esquecido a uma ideia de protecção maior.

Escreveu alguns dos mais belos textos sobre a condição humana, os limites do espiritual e o corpo que nos embeleza os dias, os sonhos de conquista e a respiração. Foi um escritor de dimensão universal e textos como Manhã Submersa, Aparição ou Em Nome da Terra são livros a recuperar pela vastidão dos horizontes com que humanamente nos confrontamos na nossa individualidade. O excerto de Manhã Submersa, um livro marcante na vida de gerações pelas dúvidas com que confrontou o cinzentismo do real:
 
"(...) o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exactamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. (...)

(...) Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isso a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia a voz por sobre mim e me esquecia. (...)

(...) Quando algum de nós se afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância alarmada dos prefeitos o trazia de rastos cá para fora. Os superiores sabiam que, à pressão exterior, cada um de nós podia refugiar-se no mais fundo de si. Como sabiam também que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada. Nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa íntima liberdade. Por isso nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua, havia ainda o receio de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os outros e ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de ladrilhos."

Vergílio Ferreira, Manhã Submersa

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Adormecer a noite - Mozart


História e cultura

"Ainda está por deslindar o essencial da história desta feliz coincidência entre a desumanidade mais sistemática e uma forma de simpatia ou de indiferença geradora de uma cultura tão elevada". (1)

A vinte sete Janeiro de 2005, a Assembleia-Geral dass Nações Unidas instituiu este dia, como o Dia do Holocausto, em memória das vítimas daquilo que o nazismo chamou a solução final. No mesmo dia, em 1945 era libertado um dos locais, onde a Humanidade perdeu a sua dignidade, os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau. É um dia e um acontecimento que nos remete para o mais difícil de explicar na História da Humanidade. 

Alguns escritores e cineastas têm tentado explicar esta doença mais cruel do espirito humano, que foi o nazismo.  Deixamos alguns dos filmes que melhor deram conta desta incapacidade de como sociedade impedirmos o inaceitável. São muitos deles em grande medida documentos históricos sobre o Holocausto e o Nazismo.
Os filmes são um suporte que nos permitem compreender como a cultura, a educação, a construção de sociedades evoluídas materialmente se podem conciliar com as mais tenebrosas formas de existência. 

Se em A Noite e o Nevoeiro, de Alain Resnais, tomamos contato com o foco onde as imagens de uma câmara de filmar projectam o fundo trágico do cenário inquietante e incompreensível da Soah, em O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, onde este nos dá a procura de uma resposta para que se visualize a origem desse mal e o modo como os fantasmas emergiram da noite para a luz. 

Em A Saudade de Veronika Voss de Rainer Werner Fassbinder, reconstroem-se as memórias do nazismo, onde somos devolvidos à construção de vidas, de uma sociedade triunfante sobre os escombros de uma moralidade sem direitos humanos e onde a reconstrução do pós-guerra se torna impossível de concretizar, para os que no passado recente o tinham alcançado. Em A Vida Maravilhosa e Horrível de Leni Riefenstahl, de Ray Muller, temos acesso a um documento interessante para compreender como ocinema e a arte podem estar ao serviço da propaganda que condicionaou milhºoes nas suas vontades e opções de vida. 

Leni Riefenstahl, em O Triunfo da Vontade, filma todo o aparato das massas nos comícios do partido nazi em Nuremberga. Apesar de trágico, é um filme que nos mostra como o cinemapode criar líderes e influenciar multidões e como ele pode funcionar como documento da História e criador de ideologias. 

A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, dá-nos o retrato do que significa o Holocausto para milhões de judeus e o como estar vivo era apenas uma questão de sorte, a de alguém escolher para um trabalho que permitisse a sua sobrevivência. Oscar Shindler optou, como membro do partido, de usar a sua influência para salvar pessoas da morte. O Pianista de Roman Polanski, confirma-nos essa ideologia de morte, dos mais baixos níveis de indignidade humana, numa história verídica sobre um homem que viveu esse pesadelo e pôde sobreviver.

(1) George Steiner, O silêncio dos livros

Testemunhos - O diário de Anne Frank

"Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. Imagina a Policia a remexer na estante da nossa porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco! Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos bondosos protectores.

Estamos salvos. Não nos abandones! É apenas isto que podemos suplicar.Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório do Kraler mas sim no quarto de banho. Às oito e meia e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e meia não podemos utilizar o autoclismo do W.C. Hoje à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se devia mandar fazer isso.

O Kraler censurou a nossa imprudência e também o Henk disse que não devíamos em tais casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que somos «mergulhados», judeus enclausurados, presos num sitio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia em que também nós voltaremos a ser gente como os outros e não apenas judeus.

Quem foi que nos impôs este destino? quem decidiu excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará Se apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro pais. Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.

Não percamos a coragem. Temos de ter consciência da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não morrerão!

Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela Policia, estava preparada como os soldados no campo de batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra. E Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não conseguir este meu fim.

Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser mulher, uma mulher com força interior e com muita coragem.

Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que a mãe. Não quero ficar insignificante. quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
O que sei é que a coragem e a alegria são os factores mais importantes na vida!"

(Excertos do diário de Anne Frank, um dos muitos testemunhos sobre a representação no quotidiano do Holocausto e da ameça aos judeus).

Auschwitz - Explicar o Inexplicável


«Esta censura, estas perseguições aos espíritos livres, o incêndio de bibliotecas e a corrupção das universidades haveriam de merecer a tua indignação, mesmo que ninguém tivesse levantado a mão contra os da minha raça". (1)


(...) Há momentos que são muito maiores do que os homens que os desencadeiam. (...) Que podes tu saber disto, tu que te limitas a ficar sentado a sonhar? Nunca viste Hitler. É uma espada desembainhada. É uma luz brilhante, mas tão ardente como o sol de um dia novo». (1)


Passam hoje sessenta e nove anos sobre a libertação do campo de extermínio de Auschwitz pelos aliados, a vinte e sete de Janeiro de 1945. A data taz-nos à memória algo que nos coloca questões que não são do passado, mas que servem para interrogar o presente. Conseguem as sociedades, pela sua evolução criar um património cultural capaz de proteger os direitos básicos da Humanidade?
O nazismo é um fenómeno que está permanentemente sobre a interrogação dos historiadores, na medida em que ele representa a mais difícil explicação que se pode dar aos acontecimentos que decorreram entre os anos trinta e 1945. Como foi possível? Esta é a questão. Como foi possível que no País com um património cultural tão rico, que na terra de Goethe, Einstein ou Beethoven, entre tantos, fosse possível acontecer a tragédia de encaminhar para a morte tantos milhões de seres humanos? Como foi possível que o espírito humano se tivesse quebrado de forma tão radical perante uma doutrina absurda que propagava a morte?

É preciso dizê-lo. O nazismo representou no século XX, a maior regressão da História da Humanidade. Um poder absoluto feito de loucura fez da violência gratuita o emblema de um regime. Mas o regime não esteve isolado. Teve até sinais de popularidade que não são de desprezar. Encenando, protelando, o regime ganhou admiradores. E é isto que é difícl de explicar. Como acreditaram milhões de alemães no seu Fuhrer, acabando tantos dispostos a por ele morrer, por esta sinistra realidade? Evidentemente que houve opositores, mas o seu número foi insignificante. E é isto que é dificil de explicar numa sociedade com as representações culturais que a Alemanha tinha.

Evidentemente que se encontram respostas, mas elas são insuficientes e não nos explicam como se pôde organizar e sustentar esta doença do espírito que foi o Nazismo. Naturalmente, o Tratado de Versalhes, mas também a crise económica e social, a crise monetária, a propaganda, o armamento do regime. É pouco para a criação deste mal absoluto que respirava beleza no sofrimento humano.

Não é fácil dizê-lo. Mas o mal pode ser servido por génios. O nazismo levanta-nos a importante questão de saber como a História se relaciona com a cultura e como esta muitas vezes é já uma expressão de ideologia ao serviço de causas destruidoras da humanidade. Nos 69 anos da libertação de Auchwitz é importante lembrar pela vítimas, pela memória, mas também para acautelar formas perigosas no futuro. 

Se a História é irrepetível, as formas da sua desumanização estão ao alcance da consciência dos homens. Se há uma constante histórica, é aquela que um piloto da Luftwaffe confidenciava no fim da guerra: «As guerras podem ser causadas por indivíduos fracos ou cretinos do ponto de vista moral, mas são combatidas e suportadas por gente muito decente». (2)
(1) Katherine K.Taylor, Desconhecido nesta morada
(2) Angela Lambert, A vida perdida de Eva Braun
Imagens, in http://en.auschwitz.org

Mozart - a virtude do génio

«Aquele que possui em si a plenitude da virtude
É como uma criança acabada de nascer» (1)

Mozart, cujo data de nascimento celebramos, é um dos mais elevados marcos da música universal e do pensamento. Criança prodígio na execução dos sons, compositor de centenas de obras musicais tentou por sua conta e risco mostrar o seu talento sem a sombra de patronos.
 
Tendo sido um dos maiores compositores universais onde a complexidade nos é transmitida de forma simples, morreu jovem. Homem optimista, esforçado nas suas tentativas para ser livre, viu postumamente o seu génio ser reconhecido. Músico brilhante nunca quis abdicar da sua honra e da sua consciência, mesmo perante os mais poderosos.
 
Mozart é igualmente um marco na história do pensamento porque representou um esforço para libertar a sociedade humana do controle apertado e sufocante da Cidade de Deus. No século XVIII a Europa Continental ainda estava longe de tolerar diferenças religiosas. Algumas das óperas de Mozart, procuraram mostrar que no serviço a Deus existiam diferentes caminhos. A tolerância e a procura do próprio conhecimento é um direito do Homem. Don Giovanni representa a tentativa de procurar esse caminho novo, ao encontro de uma liberdade que seja acessível ao género humano. 

A condenação final é ainda a confirmação de uma sociedade velha onde o controle apertado da religião sobre os indivíduos é manifesta. De uma forma geral, pelos sons que criou Mozart, perto dos finais do século XVIII, ajudou a construir esse trajecto que levaria à liberdade individual do Homem em criar o seu próprio caminho. Naturalmente pela vida que teve e pelo património que deixou, podemos concluir com Zhu Xiao - Mei «Mozart é uma criança (...) que tudo conheceu. Uma criança que teve a profundidade de um velho sábio».
(1) Zhu Xiao-Mei, O Rio e o seu Segredo

Mozart nas suas palavras...

Palavras de Mozart onde se sisualiza o seu génio humano, feito de de determinação, vontade, mas sempre preenchido pela consciência da sua voz.

"Ainda estou vivo, e muito bem disposto (...) temos a honra de conviver com um certo dominicano, que é considerado santo. Eu não acredito (...)" - 21 de Agosto de 1770

"(...) no aposento do imperador se toca música que afugenta os cães." - 13 de Novembro de 1777

"(...) outros, que de mim não sabem nada, observam-me com olhos grandes, igualmente risíveis. Pensam que, por eu ser pequeno e jovem, não poderá haver em mim nada de grande e adulto (...) - 31 de Outubro de 1777

"Dêem-me o melhor piano da Europa, mas com uma audiência que nada percebe, ou que nada quer perceber, e que não sente comigo aquilo que toco, e perderei todo o prazer (...) Pois também aqui tenho os meus inimigos, mas onde é que os não tive? No fim de conta, é sempre um bom sinal (...) - Paris, 1 de Maio de 1778

"(...) vejo por aqui tantos medíocres que fazem carreiara, e eu com o meu talento não deveria ser capaz? - 31 de Julho de 1778 

"(...) infelizmente acresita mais no falatório e rabiscos de outras pessoas que em mim (...) permanecerei o mesmo homem honrado de sempre (...)" - 5 de Setembro de 1781

"(...) a minha honra está para mim (...) acima de tudo. - 19 de Maio de 1781
                            Wolfgang Amadeus Mozart, Uma vida secreta

sábado, 25 de janeiro de 2014

Tom - o amor, o sorriso e a flor

É uma das figuras imortais dos nossos dias. Cantou a beleza, os encontros e desencontros dos seres humanos, revelou as paisagens quotidianas de um País diferente que ajudou a criar e participou na dinamização de um movimento cultural de grande valor, A Bossa Nova. Chama-se António Carlos Brasileiro Jobim e a sua arte musical e poética encheu de graciosidade todos os que tiveram a oportunidade de o ouvir.

Nasceu a 25 de Janeiro de 1927 no Rio de Janeiro e foi compositor, pianista, maestro, conversador nato e criador de uma paisagem poética que deslumbraria o Mundo, revelando como a cultura pode criar um País novo. Com simplicidade, continua a encantar-nos. Um excerto para melhor conhecer o Tom

Desafinado
 
Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, que isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar, viu
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito
Bate calado, que no peito dos desafinados
também bate um coração.”

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A respiração da História

Na memória de Adriano, nascido na longínqua manhã de 24 de Janeiro de 76, Marguerite Yourcenar deu-nos um livro admirável, um expoente da literatura do século XX, onde desenhou com humildade e sabedoria o olhar sobre a vida do imperador Adriano. 

Na sua escrita, quase um documento histórico lembramos o imperador, a materialidade dos sonhos do Alto Império e a capacidade da escrita levantar todos os olhares, mesmo os que precedem o horizonte inexorável do fim, entre as máscaras da voz. 

Livro que nos chega de um tempo que já não é o nosso, mas ainda próximo pela descoberta íntima da voz, do sentido mais partilhado de uma vida. Yourcenar e as suas memórias, são com o Imperador uma representação da aventura humana, da sua dimensão, no seu sentido mais global.

Libertas, Humanitas, Felicitas

"Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem (1).

O tempo parece já tão afastado, está já muito distante de nós e respiramo-lo em formas longínquas, quase desconhecidas no seu sentido mais quotidiano. Fazemos dessa memória uma reconstrução, construída de imagens, das que fomos dsesenhando, recorrendo às formas materiais que o Alto Império deixou de uma civilização grandiosa e enigmática.

É, na verdade um tempo distante, que ousou pensar o real, com o cuidado da análise filosófica, mas com a ambição de construir um sentido mais prático da sociedade. Herdeiros da cultura grega, menos dados a riscos, por grandes ideais, os Romanos legaram uma civilização material riquíssima e influenciaram áreas essenciais de sociedades futuras. O Direito e a Língua foram as mais visíveis, dessa eternidade de uma Roma dominadora. Muitos consideraram esse regresso a uma arqueologia quase sem tempo, uma perda de oportunidades. No entanto, os dias dizem-nos que o seu património é insubstituível pela ousadia com que criaram o seu património civilizacional.

Uma das figuras mais interessantes do Império, nasceu a 24 de Janeiro do distante ano de 76 e ficou apenas conhecido, como imperador Adriano. Nasceu no território que hoje corresponde à Espanha, era descendente de colonos romanos e era primo do imperador Trajano, que viu nele quase um filho. Desempenhou vários cargos, como governador da Síria, foi tribuno de diversas legiões e comandaria a Minervina, e em 117 sucederia ao seu primo no governo do Império.


A importância de Adriano releva da noção que tinha do Império, um espaço humano que devia preocupar-se mais com o sentido da vida dos homens que o habitavam e não ser só um espaço civilizacional dominador de povos e culturas. Aprendeu com os Gregos, a dimensão do homem e tentou estater as diferenças sociais extremas. Renunciou às contribuições das cidades para o Imperador e procurou dinamizar o cultivo de terras. Ensaiou dar mais dignidade ao papel da mulher no casamento e em certas circunstâncias procurou substituir o escravo pelo colono livre.

Humanitas. Felicitas. Libertas - foi a sua divisa e são símbolos de uma governação que aspirava a estes máximos da consciência humana. Conscientes das fragilidades da natureza, esperava ainda assim uma renovação, em que cada ser humano ousasse nas suas ações dar continuidade aos valores e construções  mais perenes. Acreditava que sobre as ondas do tempo surgiriam homens capazes de reconquistar, na efémera possibilidade dos dias, uma dimensão justa do Homem, " a sua intermitente imortalidade" (2).


(1); (2) - Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano
Imagem, busto de Adriano, Museu arqueológico de Atenas

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Orwell


"Numa época de mentiras universais, dizer a verdade é um acto revolucionário." (1)

Imaginámos no mais puro engano que o crescimento civilizacional apuraria os nossos ideais por uma sociedade digna de se chamar humana, que os valores espirituais acompanhariam o crescimento económico e o desenvolvimento tecnológico. Imaginámos que a ilusão seria a forma acabada de uma certa hipocrisia política de conceber a organização social e cultural das sociedades. Imaginámos que a vitória nessa luta era uma aquisição da Humanidade.

Há figuras, personalidades que pensam os seus dias, dão-nos formas de desenhar a construção do quotidiano e lembram-nos como a nossa fragilidade, o nosso desamparo se apresenta como um molde por onde os mais desajustados à dignidade humana se confinam em páginas de indiferença. Fez ontem, um pouco mais de sessenta nos que deixámos de visitar a presença física de um homem que compreendeu como poucos o que foi o século XX - George Orwell. Foi um dos escritores que mais influenciou o século XX. Deixou uma obra importante que soube diagnosticar a tragédia humana que representou o século XX em tantas geografias. De «A Quinta dos Animais», entre nós, «O Tiunfo dos Porcos», a 1984, a sua obra traçou, como uma alegoria, os mecanismos do desprezo pela humanidade que marcaram significativamente o século passado.

Orwell, demonstrou com clareza, como o controle da informação, o apagamento da memória, a destruição de uma consciência humana, a ausência da individualidade, a anulação da espiritualidade construiram regimes inquietantes, feitos de angústia e sofrimento de dimensões indescritíveis. Revelou nas suas páginas, o que muitos respeitados intelectuais não souberam verificar, quando as marchas de paz no Mundo, eram a expressão armadilhada de uma doutrina de tirania.

O início do século prometia uma difusão de regimes democráticos, perto do que alguns consideraram a progressão da História. Vivemos a confirmação do regresso da História, onde a promessa de uma humanidade «feliz», onde a dignidade seja respeitada continua, não só por construir, mas como regrediu a níveis preocupantes. Ao poder esmagador dos estados autoritários do século XX, assiste-se pela fragmentação dos poderes tradicionais à mesma limitada oportunidade que o indivíduo tem em garantir a sua voz de individualidade.

As transformações tecnológicas têm contribuído para isolar o indivíduo, pelo controle quase de ubiquidade que as máquinas permitem e pelo tempo desperdiçado na sua aprendizagem que nunca poderá ser de igual riqueza ao que se dispende a alimentar o conhecimento dos outros. Sendo o tempo uma realidade tão preciosa, a evolução económico-social tem garantido a liberdade humana, nas instituições que devem garantir a Democracia?

Tocqueville há dois séculos lembrou que para as sociedades democráticas, as que respeitam a identidade humana, o mais perigoso é que «no meio das pequenas ocupações incessantes da vida privada, a ambição perca o seu ímpeto e a sua grandeza (2)". Estamos pois de regresso às palavras de Orwell e essa é a sua grande "vitória", do tempo que o compreendeu muito limitadamente. Orwell, como Camus compreenderam mais que o século XX, compreenderem as motivações e as formas que organizam as formas políticas na ambição de dominar os cidadãos numa sociedade de ilusão e de privilégios de uma minoria. Na "Quinta dos Animais", há novos "líderes", para a confirmação da velha ideia tão do agrado de um certo poder político, "todos somos iguais, mas uns mais iguais que outros".

(1) George OrwellSelected Writings, Penguin
(2) Alexis de TocquevilleDa Democracia na América
Imagens, in http://www.famousauthors.org/george-orwell

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Memória de Audrey


"Remember, if you ever need a helping hand, it's at the end of your arm, as you get older, remember you have another hand: The first is to help yourself, the second is to help others".
 
Vinte e um anos sem a graça e a beleza de uma mulher e de uma actriz que faz parte da memória do cinema e das tardes encantadas quando o cinema era uma celebração e uma iniciação a mundos novos. Lembramo-la pelo seu  sorriso doce, de um tempo em que o cinema era ainda uma entrada artesanal no sonho e na aventura de descobrir. Evocação de fitas que acompanharam várias gerações. 

De Roman Holiday a Breakfast at Tiffany's, Guerra e Paz, até My Fair Lady, mas também a generosidade por causas nobres. Audrey Hepburn, quando o tempo ainda parecia domesticado pela doçura do sorriso. Um ícone, por onde a alegria e a a elegância se afirnaram como formas sublimes e sedutoras da beleza.)

Fica a sua lembrança, na memória dos dias. O seu site além de muito material fílmico agrupa uma das suas causas, justamente, a das crianças desfavorecidas. Pode ser consultado, aqui.



domingo, 19 de janeiro de 2014

Elis

Tantos séculos de saudades de uma voz e de um sorriso acima das palavras

A cidade de Garrett

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito  que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.

 O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lárimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia. 

O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida. Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser de cal.

Eugénio de Andrade, A Cidade de Garrett

A sabedoria do silêncio

Estive sempre sendo nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha coração
magoado (porque o0 amor, perdoa dizê-lo, 
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação). Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

Eugénio de Andrade, Poesia, Modo de Ler    
Imagem, via  http://art-of-dreaming.tumblr.com/

O retrato de um amigo


« Cocteau dizia que há homens com com coração de diamante que apenas reagem ao fogo e a outros diamantes e negligenciam o resto. É junto destas raras vocações de sarça ardente que me sinto em família, o que equivale a explicar que quase sempre estou só. Mas não posso queixar-me: os acasos da vida ou o facto de navegar, por instinto, na direcção certa, fizeram que encontrasse, de longe em longe, Açores e Madeiras no vazio das ondas (...).

Eugénio de Andrade, vulcões de camaradagem exigente e limpa, ilhas fraternas de rigorosa ternura, abrigos de pedra suave onde encostar a inquietação da febre, pessoas que nos reconciliam com a noite mais escura da alma de que Scott escrevia, por dela nos trazerem vestígios da manhã. E é de Eugénio de Andrade que falo hoje, perpétua varanda de basalto em chamas de frente para o mar.

Chamam-lhe o amigo mais íntimo do sol: de acordo, se o sol for obstinado e severo. Chamam-lhe poeta: de acordo, se as palavras nos trazem notícia da veemência do sangue. Chamam-lhe difícil: de acordo, se notarem a bondade de menino na pomba do sorriso que de tempos a tempos acende os passos seus e os nossos e nos mostra a única vereda que caminha a direito, macieiras fora, na direcção do rio. Não conheço ninguém com gestos tão longos e com uma tão aguda inteligência de alma. Onde poisa a atenção do ouvido tudo se torna búzio. Onde descansa os dedos tudo se torna gato comedido e atento. Onde os olhos lhe nascem aprendemos com ele o intransigente júblio do mundo. E no entanto que geografia de dor no país do seu rosto, que discrição no sofrimento, que impediosa dignidade medida em cada sílaba. A total ausência de vaidade do seu orgulho foi o que, ao encontrá-lo pela primeira vez, mais profundamente me comoveu.

José Cardoso Pires, que não tinha admiração fácil, contou-me do poema que Eugénio compôs na morte de José Dias Coelho, quando os heróis retrospectivos se calavam de medo nos anos de alcatrão sujo da ditadura. Não um panfleto, não um manifesto, não um grito: apenas a serena voz de um homem falando de outro homem, fitando-nos da sua altura terrena e, por consequência, desmedida. Um dos seus livros intitula-se Rente ao Dizer e esse rente ao dizer, despido do que não é corpo, devolve-nos a nós mesmos na condição de bichos sublimes em que nas páginas que acede a publicar nos tornamos.

Ainda que em guerra Eugénio reconcilia-nos connosco ao deixar entrever os degraus que nos falta subir para estarmos lá em baixo, no lugar que é o nosso, manchados da comovida urina e dos líquidos obscuros que nos protegem ao nascer e nos esperam, na sombra da morte, a fim de nos ajudarem a partir, pobres criaturas mudas vestidas de ranho e de poeira celeste. Para além da amizade que nele é dura e nobre, isto lhe devo também: o retrato da minha condição e a certeza de que algo para além de mim continuará nos seus versos, seja pássaro, nuvem ou laranja madura.

Escrevi um dia que quando o coração se fecha faz mais barulho que uma porta. Não imagina como lhe agradeço, Eugénio, que o seu se mantenha calado num vigilante desvelo, convidando-me a entrar onde uma máscara de bronze nos aguarda para ficar connosco, naquela sala aberta rumo às palmeiras da voz. » (1)

António Lobo Antunes, sobre Eugénio, num retrato de um amigo, no dia em que lembramos o nascimento de um poeta que de forma imensamente bela nos deu a musicalidade e os limites do coração perante o tempo.

(1) António Lobo Antunes, «Bom Dia Eugénio»,
in Segundo Livro de Crónicas, Págs. 301-302, D. Quixote