As
debilidades do nosso país face
à crise da pandemia da covid-19 não se encontram apenas no Sistema
Nacional de Saúde, ou no tecido económico, nem na falta de testes ou de
ventiladores. Há uma mais invisível, que é a falta de preparação de muitos
portugueses para poderem ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente,
eficaz para o que se está a passar. Essa debilidade está a crescer à medida que
há uma substituição de uma cultura de experiência indirecta (que se obtém nos
livros, filmes, etc.), na curiosidade e no saber, por uma ignorância atrevida e
agressiva com origem nas redes sociais. Uma protege-nos mais na crise, a outra
agrava os factores de crise e não nos protege.
Bem
sei do clamor que estas frases, que hoje são classificadas de “elitistas”,
suscitam: “Com que então, os livros, em vez da vida?” Mas qual vida? A dos
dependurados 24 horas no Facebook e noutras redes sociais? Sim, a vida
protege-nos, se transportar consigo experiência, dificuldades, sentido das
proporções, riqueza, enfim, “vida”. E se tiver em acrescento livros, filmes,
músicas, arte e jornais, ainda mais nos protege. Não é remédio absoluto, mas
ajuda.
Há
um outro clamor, mais intelectual: mas o que é isso da “cultura”? Sim, são
questões complexas e ambíguas, mas, para o caso, basta o senso corrente, mesmo
que seja um lugar-comum. Em tempos de guerra, não se limpam armas e toda a
gente sabe o que é ser “culto”, mesmo que saiba menos o que é ser ignorante.
Culto, interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e
não necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas
ajuda.
Mas,
resumindo e concluindo, três coisas contam nesta pandemia: vida, cultura e
dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a
última. Mas, pelo menos na cultura, sempre se pode combater a incultura que
cresce perante a cobardia e a inércia de muitos que acham que esta é a
“realidade” dos nossos tempos e não há nada a fazer. Há e
muito. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Quem
lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para
olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o
que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma
noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico,
entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer
minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as
fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam.
Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
E
não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre as
mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como
funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar
experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia,
história, transporta. E na literatura e nos filmes também não se trata de
procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo de situações
que vivemos, como A
Peste, de Camus, ou os contos de Edgar Allan Poe (em ambos os
casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros,
seja o 1984, de
George Orwell, seja a Montanha
Mágica, de Thomas Mann (onde o lugar da tuberculose, o
sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de
Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar um exemplo
não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa da mesma maneira que se não
o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa experiência estética, é
provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto, pela actividade cívica,
pela opinião. Como em tudo, não é regra absoluta, mas mais vale ter lido do que
ter passado ao largo. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
O
problema é que estamos a andar para trás, e não se pense que isso é assim tão
excepcional na história. Os progressistas acham que se anda sempre para a
frente, que a humanidade caminha sempre para o melhor, e o pior é incidental.
Não é assim, claro; há momentos da história em que tensões sociais, epidemias,
guerras, destroem o saber e o modo de vida.
O
problema com a ignorância arrogante dos nossos dias começa logo no bloqueio de
toda a informação e a sua substituição pela desinformação. Os que vivem nas
redes sociais acham que os jornais, os influentes, os políticos lhes sonegam a
verdade, lhes ocultam os factos, numa conspiração vinda do Grupo de Bilderberg,
da Internacional Sionista, do grupo de pedófilos que governa o país, de George
Soros, da Nova Ordem Mundial Maçónica, dos sistemas 5G, de Deus para punir a
homossexualidade e a generalizada dissolução dos costumes, seja lá do que for.
Todos estes exemplos foram tirados das redes sociais. E o que fazem é disseminar
falsas afirmações, teorias conspirativas, boatos e rumores, pseudociência,
acusações caluniosas, ressentimentos e invejas sociais, que, por sua vez, são
consumidas pelos seus semelhantes num eco especular, que, em tempos de crise,
tende a criar um imenso ruído. E a reacção a esse ruído é frágil, porque muitos
dos que se lhe deveriam opor nas instituições e individualmente têm soçobrado
nessa obrigação.
Uma
das grandes forças do livro de Edward Gibbon sobre a queda do império romano é
descrever o desprezo pelas ruínas de muitos habitantes de Roma que, muitos
séculos depois, viviam nos restos dos monumentos imperiais achando que eram
empecilhos – os “romanos eram insensíveis às belezas da arte” – e a
humilhação de homens como Petrarca pela “supina indiferença” com que eles eram
tratados. Chegados a esta crise, confinados a casa, com os restos da ciência,
da arte, da literatura, do saber atacados pelos atrevidos ignorantes, ao menos
esta “guerra” tem mais sentido. E ajuda a sobreviver.
José Pacheco Pereira, "Ler e saber ajudam mais a atravessar esta pandenia", in Público, 21/03/2020