terça-feira, 25 de outubro de 2016

Leituras - Escrito no mar

Os Açores são antes de mais nada uma construção do mar. São depois uma terra, um conjunto de Ilhas que nos coloca de frente para um desassossego. Pessoa teria encontrado nelas matéria-prima maior do que em Lisboa para esse sentido da viagem que procurava, para esse desafio de nós e o infinito. Mais do que em qualquer outro sítio, ali, nas Ilhas, nos defrontamos com a existência, com a precaridade da vida, mas também vivemos como em nenhum outro lugar a fantasia, o sonho, a pura imaginação dada pelos espaços, pela bruma, pela luz, pelo mar.

Escrito no mar dá-nos essa aproximação pelas palavras a um universo poético que é o das próprias Ilhas. Nestas somos convidados a olhar, a sentir. Terra e mar e entre a beleza de um mundo acabado de criar verificamo-nos a nós próprios, o desejo natural de existir. Ilhas de céu e de mar, mas também de pessoas, de memória, um sentido solidário que é o da relação ainda viva com a terra.

Olhar, desfrutar, compreender o sentido dos elementos e descobrir a que pode ainda não vimos, a Ilha que pode estar à nossa frente como disse Raul Brandão ou tão só encontrar a nossa própria utopia, o ser por desvendar. E saber que como disse Manuel Alegre, "um dia cheguei. E vi as Ilhas escritas, inscritas no mar." (página 9)

Manuel Alegre. (2008). Escrito no mar. Lisboa: Sextante Editora, 2ª edição. 

Leituras - A Pérola

"Kino ouviu o rebentar sereno das ondas matinais na praia. Gostava de o ouvir. Kino fechou os olhos de novo para escutar a sua música. (...) O seu povo tinha sido outrora grande cultor de canções, de tal modo que tudo o que via ou pensava, ou fazia e ouvia, se transformava numa canção."

A Pérola é um clássico da literatura. A reedição dos livros lidos dá-nos a possibilidade de voltar a ler o que já lemos e construir uma nova leitura. Nesta leitura a dimensão de parábola devolve-nos pormenores já esquecidos ou recortes de um drama humano que já tínhamos esquecido. A Pérola é uma pequena narrativa de um sonho, a luta persistente para mudar as linhas escritas da pobreza. 

Nela vemos a luta antiga por esse ideal que sonha em ultrapassar a fome e a doença e dar a cada homem a possibilidade de construir o seu mundo, ainda que seja só um plano, um esboço de felicidade. O canto da terra, a natureza com as suas formas e cores, os seus silêncios e rumores e a linguagem do canto interior às coisas. A linguagem que pressente o bem e o mal, a esperança, a raiva e a ambição fazem parte desta adaptação de um conto popular mexicano, uma obra de grande significado.

A Pérola é quase uma parábola sobre a vida. Condensa o bem e o mal com que os humanos habitam a vida, entre a maior nobreza e a cobiça mais feroz. História de uma solidariedade, de uma família e desse canto mais íntimo ligado à terra e ao que ele transporta. Um exemplo de uma escrita em que Steinbeck alia a descrição rápida com o sentimento das personagens fazendo correr a narrativa com um brilho que nos faz ler com grande prazer. O escritor de Salinas é um dos grandes escritores do século XX pela capacidade de construir personagens que são memória e fruto desse património, a ruralidade, aqui num espaço localizado, numa cultura de pescadores.

A Pérola acaba por ser uma visão do que pode ser a vida, entre a maior rudeza, as necessidades mais essenciais e a conquista pelo privilégio do dinheiro e do poder pelos que já o têm. O fim do livro é uma pequena vitória para Kino e Juana, mas há nessa restituição ao mar algo de protecção à cobiça dos mais ricos, dos instalados no poder. E, no fim o valor da Natureza como consagração da essência que o homem tenta destruir. Fim que não deixa de ser desolador por um sonho que morre perante os contrafortes da ignorância, alimentada em universos dominados pela corrupção e pela insensibilidade.

A Pérola é assim um livro eterno de um escritor essencial, narrador da América, das condições de trabalho das pessoas, mas também um escritor do mundo, pela sua consciência universal. Uma escrita a envolver-nos com essa grandeza, que aqui Kino dá conta, "tinha perdido o seu mundo anterior e agora tinha de se agarrar a um mundo novo. Porque o seu sonho de futuro era real e não podia ser destruído" (p. 498). A grandeza de pensar um mundo e torná-lo real faz de A Pérola um livro notável e de Kino uma das grandes personagens da Literatura.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Leituras - Viagens com o Charley

"Por outras palavras, não melhoro, ou, indo mais longe, quem foi vadio é sempre vadio. Receio que a doença seja incurável. Menciono este assunto, não para ensinar os outros, mas para me informar a mim mesmo". (1)

Viagens com o Charley é um livro de John Steinbeck, publicado em 1962, nas vésperas de ele receber o Prémio Nobel da Literatura e que recentemente foi editado pelos livros do Brasil. Trata-se de um livro delicioso, uma daquelas obras raras que consegue ser uma conversação com o leitor. Escrito com grande honestidade, o livro funciona como uma leitura de um País, a América no início dos anos sessenta e a revelação mais íntima de uma história de vida, de um conjunto de memórias, de um património cultural. Lendo-o, conhece-se melhor John Steinbeck, a sua personalidade, as suas opções de vida e os seus valores humanos.

A América de Steinbeck, aquela que ele nos dá é ainda uma América que não conhece ainda as contradições que o final da década acentuará, mas há já uma visibilidade às transformações de uma sociedade em mudança. O valor do livro passa por essa capacidade de revelação da América, mas também pela perceção da mudança. Com grandes descrições do natural, das paisagens de um conjunto alargado de estados, Viagens com o Charley é um convite para conhecer um escritor que faz da terra, das condições de vida e do património da América a matéria-prima da sua escrita.

Com Steinbeck e Viagens com o Charley compreendemos  como o particular pode ter uma dimensão universal. A escrita do autor nascido em Salinas tem em Viagens com o Charley um momento mais, de grande valor literário e cultural, pela descoberta que ele nos revela de uma América e para a compreensão dos seus valores mais característicos, no início de uma década, que em muitos sentidos mudaria o mundo.

Escrito numa linguagem dominada pelo humor e por algum ceticismo, Viagens com o Charley acaba sendo uma reflexão crítica sobre a América, a sua história, as suas paisagens humanas. Nele vemos já a discussão do que tem feito o mundo caminhar por linhas preocupantes de abandono do seu património natural. Viagens com o Charley em muitos aspetos é um alerta profético, uma campainha a tocar sobre a ideia que a mudança em si nem sempre serve o homem e a sua felicidade.

sábado, 1 de outubro de 2016

Leituras - O enigma da chegada

"Eu via uma floresta. Mas não era realmente uma floresta; era a penas o velho pomar nas traseiras do casarão em cuja propriedade se encontrava a minha casa. Aquilo que via, via-o muito claramente. Mas não sabia para que estava a olhar. Não tinha nada em que pudesse encaixar aquilo que via. Sentia-me ainda uma espécie de limbo." (1)

V. S. Naipul tem uma obra longa e premiada, com destaque para o Booker Prize de 1971 e o Prémio Nobel da Literatura em 2001. Natural de Trindade, nas Caraíbas descende de uma família de origem indiana, cujos antepassados vieram da Índia para as Antilhas no processo de globalização económica que foi o Império Inglês no século XIX. V. S. Naipul concilia uma ironia e uma observação britânica com um espírito de análise e um minimalismo de vida ligado ao hinduísmo e à sua memória.

Partiu jovem para Inglaterra para estudar Literatura em Oxford e a sua vida de escritor   mistura-se, a partir de certo momento com a do homem. Processo e descoberta difícil, enquanto o escritor não compreendia que homem o habitava, nessa relação de culturas que viveu de forma intensa. O enigma da chegada, livro de 2008 é um testemunho deslumbrante desse percurso de vida e do nascimento do escritor e dos temas que o fundiram com o homem, o adolescente e criança em Trindade e o adulto em Oxford.

O enigma da chegada descreve-nos a evolução de um escritor, os locais por onde viveu, com destaque para o lugar que o fez renascer. Justamente um vale perto de Stonehenge, onde habitou uma casa que integrava uma grande propriedade rural, o que nos permite conhecer uma região, a sua ocupação humana no tempo. Espaço pertencente à aristocracia rural, nela vemos desfilar as personagens que lá trabalhavam, as suas motivações e compreendemos a atmosfera que as envolvia, o seu trabalho, a sua visão do mundo, a sua intimidade com as coisas. A casa habitada pelo autor e as experiências vividas nessa propriedade deram-lhe a possibilidade de encontrar o sentido, o significado para a efemeridade da vida humana.

O enigma da chegada faz a descrição precisa da paisagem, como o autor a via nos seus passeios e permitiu-lhe abordar um microcosmo, a sua relação com a sociedade e como o tempo vai desfazendo sentidos antigos. O enigma da chegada é um livro que pertence a uma categoria muito restrita. Aquela que tem a capacidade de dialogar com o leitor, como se falasse com ele directamente. O enigma da chegada é uma longa e aprazível conversa, onde se revela uma grande sensibilidade na observação. Os passeios de V. S. Naipul dão-nos uma observação muito cuidada da Natureza, da sua evolução no tempo. "O jardim de Jack" e os trabalhadores da mansão dão oportunidades de reflexão ao autor sobre a vida, as escolhas que se fazem e delas extrai sentidos que parecendo particulares são absolutos sobre a própria existência.

O passado, os seus fragmentos sem memórias, os vestígios, relíquias de outras vidas, de outros sonhos procuram dar um significado para a ideia de ruína e degradação. Sendo um livro auto-biográfico é muito, uma obra literária sobre o Homem no Tempo. Uma geografia antes dos homens, o trabalho humano como uma declaração poética, um sentido vivo da vida ou só mais uma ruína, são questões colocadas. Como lidar com essa mutação da vida, dos seus objectos no tempo, como compreender a degradação contínua, a mudança constante em nós, no nosso tempo?

A experiência do que vivemos e a linguagem, como instrumentos de uma memória e de uma exaltação são tentativas para obter uma resposta. E ainda a consciência final de que sobre a melancolia e as nossas dores é importante compreender "que a vida, o ser humano, era o mistério, a verdadeira religião dos homens, a dor e a glória" (p.438). E compreendê-lo com assombro pela vida e pelos homens. E aceitar que a vida é sempre o recomeço de nós próprios. E verificar mais uma vez que a Literatura pode ser em alguns circunstâncias um instrumento de contextos, de significados poéticos para uma sobrevivência. A da memória .


(1) V. S. Naipul. (2013). O enigma da chegada. Lisboa: Quetzal.