quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Memória de Erico Veríssimo

«(...) Quero falar de ti. Lembras-te daquela tarde em que nos encontramos nas escadas da Faculdade? Mal nos conhecemos, tu me cumprimentaste atrapalhado, eu te sorri um pouco desajeitada e cada qual continuou o seu caminho. Tu naturalmente me esqueceste no instante seguinte, mas eu continuei pensando em ti, e não sei porquê, fiquei com a certeza de que havias de ter uma grande, uma imensa importância na minha vida. São pressentimentos misteriosos que ninguém consegue explicar.

Hoje tens tudo quanto sonhavas: posição social, dinheiro, conforto, mas no fundo te sentes ainda bem como aquele Eugénio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo subindo as escadas do edifício da Faculdade, envergonhado da sua roupa surrada. Continua em ti a sensação de inferioridade (perdoa que te fale assim…), o vazio interior, a falta de objetivos maiores. Começas agora a pensar no passado com uma pontinha de saudade, com um pouquinho de remorso. Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas e eu chego até a amar o teu sofrimento, porque dele, estou certa, há-de nascer o novo Eugénio.

Uma noite me disseste que Deus não existe,que em mais de vinte anos de vida não o pudeste encontrar. Crê que nisso se manifesta a magia de Deus. Um Ser que existe mas é invisível para uns, e mal perceptível para outros e de uma nitidez maravilhosa para os que nasceram simples ou para os que adquiriram simplicidade por meio do sofrimento ou da profunda compreensão da vida. (...)
Quero que abras os olhos, Eugénio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues na minha Bíblia, que está na estante de livros, perto do rádio, e leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar, pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e meditar nesse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo, que não trabalham nem fiam e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu com um deles. Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar de papo para o ar, esperando que tudo nos caia do Céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do Céu. (...)
Há na Terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão. Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de acção e não um puro contemplativo. Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, do espírito de cooperação. E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do Mundo. Refiro-me, sim, à aceitação da luta necessária, do sofrimento que essa luta nos trará, das horas amargas a que ela forçosamente nos há-de levar. Precisamos, portanto, de criaturas de boa vontade».
in Erico VeríssimoOlhai os Lírios do Campo
(A memória de um grande escritor, pleno de humanidade, num dos grandes livros do património em língua portuguesa, aqui pela mão e voz de um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX).

Sem comentários:

Enviar um comentário