domingo, 30 de março de 2014

Starry Starry Night

"Starry, starry night 
 paint your palette blue and gray
 look out on a summer's day
 with eyes that know the darkness
 in my soul shadows on the hills 
 sketch the trees and the daffodils 
 catch the breeze
 and the winter chills
 in colors on the snowy linen land." - Vincent 

Vincent

«Os ciprestes ocupam-me constantemente, gostaria de fazer deles alguma coisa semelhante às minhas pinturas de girassóis, pois admira-me que ainda não tenham sido pintados como eu vos vejo. Nas linhas e nas proporções são tão bonitos como um obelisco egípcio. E o verde é um tom fino muito especial. É a mancha negra numa paisagem batida pelo sol, mas é um dos mais interessantes tons negros; todavia, não, posso pensar em nenhum outro que seja mais difícil de obter. Tem de se ver os ciprestes aqui contra o azul, para dizer melhor, dentro do azul» (- Carta ao Irmão Téo - 1891)

 (A Noite Estrelada), 1889, Saint-Rémy - (Metropolitan Museum of Art)
  Barcos de Pesca, 1888 -(Van Gogh Museum, Amesterdão)
 Campo de Trigo com Corvos, Auvers, 1890 -(Amsterdão Rijksmuseu Vincente Van Gogh)

No nascimento de Van Gogh

Quando vim para cá esperava que fosse possível criar amantes da arte – até agora não fiz nem um centímetro de progresso no coração das pessoas. (…) Mas até agora a solidão não me incomodou muito; encontrei um pôr do sol mais forte e seu efeito na natureza mais interessante.” (1)

Seria necessário algum espaço e muito talento para exprimir com profundidade a vida, o sonho, a consciência, as dificuldades, as ingratas opressões do quotidiano e a arte genial de um dos mais importantes artistas do século XX. Justamente, Vincent Van Gogh.

A Royal Academy of Arts de Londres tem patente uma exposição que junta alguns dos quadros do mestre holandês com as cartas que ele deixou ao seu irmão Téo e onde compreendemos a dimensão imensa de um homem e de um criador de arte.

Na biografia de Vincent o mais importante são as suas telas, a sua atitude para afirmar a sua consciência no quotidiano de dificuldades, a sua luta por uma sanidade mental que tantas vezes lhe escapou da mão. A sua vida de apenas dez anos de pintura deixou-nos uma obra vasta e rica na emoção e nos sentimentos que quis exprimir.

Na verdade, a arte para Van Gogh era a expressão de uma emoção, a transmissão de uma ideia de beleza. Sendo a realidade de uma evidência que se revela por si mesma em grande imponência, a arte deveria saber representá-la como uma ideia, uma palavra bela e significativa. A Luz, como um imenso sol de cor dourada, impregnando o real de emoção.

As cartas desvendadas num trabalho de investigação de quinze anos realizado pelo Museu de Amsterdão que dará lugar à publicação em livro, reflectem um homem diverso, muito distante da imagem que alguns lhe deram, de dominado pela loucura. 
 
Ao contário, elas revelam, que apesar de envolto pela paixão de conter a cor dentro de si e a exprimir também lutava por afirmar racionalmente as etapas de uma vida feita de arte e de ser humano. Para os interessados nas criações de Vincent, fica aqui um recurso disponibilizado pelo Museu de Amesterdão.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Leituras - Firmin

"Como conseguiu ele escapar. Da mesma forma que todos nós escapamos. Por milagre".

Firmin é uma comovente alegoria sobre o que significa nascer, crescer e entrar num mundo connosco, com os sonhos para olhar a realidade, vivê-la e se possível transformá-la. Firmin é a alegoria dos sonhadores, dos que acreditam no milagre, em que cada instante novas possibilidades sonham o real, dão-lhe poesia e consistência. Firmin é uma personagem presa num corpo, mas livre no real e no sonho que constrói em cada momento, em cada gesto de sobrevivência, em cada encontro que pela cidade tenta descobrir as cores e os cheiros que o fazem vivo.

Fimim é uma alegoria sobre como a imaginação, a aventura, o livro pode romper as mais fechadas fronteiras, das a cada um a participação numa festa que é também um grande desalento - a natureza humana nos seus conflitos mais difíceis. Escrito por quem conhece a vida pelo lá de fora, dos sesenqudrados, dos que renascem em geografias descobertas pela ousadia, pela carência e que fazem dos possíveis encontros, a respiração dos objectos partilhados, do sonho de amar o essencial.

Palavras sobre nós próprios, sobre essa revelação do rosto, do perfume no cabelo, do encontro nas mãos, desse encontro sublime pela beleza, mas também a solidão pelas memórias de crepúsculo, sempre com a energia e o contentamento que a aternidade se faz em cada momento. Sam Savage também é um dos grandes.

No dia mundial do teatro

No Dia Mundial do Teatro não é essencial expôr a essência da arte de representar. Como ela é feita de suor, dádiva, luz a que os fenómenos de mercado não permitem envolver nestes tempos em que parece cada vez mais difícil assegurar a diversidade na escolha.

No Dia Mundial do Teatro não é insispensável falar da falha de objectivos em relação a actores, a projectos municipais de participação das pessoas, à ridícula existência de actividades de Teatro nas escolas como opção formativa. No seu papel para alargar horizontes ou enriquecer a personalidade e respectivas capacidades. Nada disso é essencial.

No Dia Mundial do Teatro não é importante remontar à cultura clássica e salientar a evidência da procura do alimento espiritual para convocar a acção dos homens, desenvolver a compreensão dos valores que pela coragem e liberdade permitem atingir novas perguntas. Não é essencial focar mais uma vez essa tentativa de reencontrar um fundo espiritual. Além do mais o imediatismo mais prático não necessita destas ferramentas.

No Dia Mundial do Teatro deixemos uma só, livre e encantada palavra pela sua matéria-prima, o actor. Acima das cerimónias oficiais, a palavra, o sentido, a gratidão do sonho e do cansaço. É uma simples opinião, mas ele é, foi, talvez seja O Teatro.

Nasceu, cresceu e viveu no palco, personagens múltiplas, dádivas em pele por uma humanidade que ofereceu em sorrisos tímidos e palvras de inconformismo. Viveu o futuro, com inspiração e fez das palavras sons de emoção onde nos encontrámos com os momentos de pequenez e grandeza de que somos capazes. Apesar do tempo a sua imagem, os seus gestos, as suas palavras, o seu espírito revela-nos esse ocaso de «poeira cósmica» que parece ainda ser possível desvendar na humanidade.

Chama-se Mário Viegas e foi o actor. Abaixo um excerto de Serenidade, que ainda parece audível na gravidade doce da sua voz.

«Vem, serenidade!
Vem cobrir a longa
fadiga dos homens,
este antigo desejo de nunca ser feliz
a não ser pela dupla humanidade das bocas.
Vem serenidade!
Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros
e com que os lábios cheguem à altura dos beijos. (...)
Vem serenidade,
vem com a madrugada,
vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,
com as nuvens que proibem o céu
vem com o nevoeiro. (...)
Vem, serenidade,
não apagues ainda
a lâmpada que forra
os cantos do meu quarto,
papel com que embrulho meus rios de aventura
em que vai navegando o futuro.(...)
Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,
a confundir, numa só e lúcida claridade,
a palavra esquecida no coração do homem.»(...)

in, Raul de Carvalho, «Serenidade És Minha»
Imagens, Teatro São João no Porto

Dia Mundial do Teatro

Poema Acto III
«O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.(...)
Ninguém ama tão desalmadamemte 
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sol queimado.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor. (...)
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação. (...)
Ninguém ama tão publicamente como o actor,
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama. (...)
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.»
in, Herberto Hélder, «Poema III»
Imagem, in creazeitao07.blospot.com

Nas margens do coração

Deste lado
Sente-se
a estranheza de ser rio
o crepitar do silêncio
a alma suspensa.

Dizem que é apenas um rio.
Não é.
Nunca foi.

Joana Padrão, "Ribeira sobre o rio", in Porto, uma imagem para o mundo, página 20
Imagem, desendo a lápis (Barão de Forrester)

terça-feira, 25 de março de 2014

Akira Kurosawa

(Como inscrevemos a realidade nos sonhos e os retemos no nosso olhar, perante a fragilidade do mundo e as dificuldades de assumir os valores da coragem e da lealdade? Em oito histórias que se unem pelas dificuldades existenciais vividas pelo Homem, existe algum tempo, algum local onde o seu coração possa ter o encontro com a felicidade? Akira Kurosawa no seu brilhante filme Dreams interroga-nos sobre a natureza da condição humana. Recordamo-lo aqui num excerto em que revisita a pintura de Van Gogh, no conto Corvos. O mestre do cinema japonês celebrou há quatro dias cento e quatro anos do seu aniversário).

segunda-feira, 24 de março de 2014

A universidade...de 69 a dias tardios

Há justamente uma semana (17 de Março de 1969), ou seja há um pouco mais de quarenta anos, que em Coimbra, na sua academia universitária, um grito envolvente, indignado, convicto de estudantes que queriam ter direito a exprimir a sua palavra. Não foram autorizados. Nascia um protesto de uma geração, resultado de uma inflamação profunda de um País doente cercado em si próprio e sem a voz que da periferia do Maio de 68 lhe chegava em imagens isolados de um futuro que parecia aqui não poder existir.

A crise académica de 1969 conduziria ao fim governativo de um ministro que anos mais tarde se estrearia na popularidade dos néons. Estranho o modo como a coerência não é um crédito para a consistência das acções no domínio público deste País. Mais protestos e greves ocorreriam com a crise académica. Foi o princípio do fim do Salazarismo e a crença de que nos verdes anos nasceria um horizonte novo. Mais um engano.

A Primavera marcelista revelaria ser desprovida de flores e comprovar-nos-ia como homens cultos e inteligentes podem comprometer a dignidades dos seus cidadãos. Preso na hierarquia do Poder, o Marcelismo manteria essa tradição de uma obrigação fútil e sem respeito por uma consciência humana e historicamente digna.

E hoje, que palavras temos? Quais as que podemos usar? Queremos falar ou estamos abandonados ao compromisso velho, sem miragem, nem distância, onde o carácter e a ética são palavras de museu pouco significante para os vivos. E o que é hoje a Universidade Portuguesa?

De 1969 até ao século XXI que caminho passou oferecer a Universidade à formação dos jovens? É livre nos seus domínios de saber ou está condicionada a uma tecnocracia economicista de lobbies privados? Está organizada para a exigente criação e transmissão do saber ou é apenas uma locomotiva para a promoção social? Continua a promover o prazer de estudar, o viver o estudo com uma missão para a sabedoria e a construção dos valores?

O estado lastimável da Universidade portuguesa em 2014 é o espelho, o mais decepcionante deste fracasso cultural em que a sociedade deste País se tornou. A banalização dos valores e das instituições consagrou uma formação intelectual de valor medíocre. Nos anos sessenta a Universidade era frequentada por uma minoria, oriunda das famílias ricas que abasteciam o Estado para os cargos executivos. A pouco transparente coesão social era suportada por uma arquitectura de poder autoritária. E hoje?

Temos a palavra, dirão muitos. Quantos se levantam e indignam para a usar? Que significado lhe é dada pelos que ocupam o Poder? Vale o cidadão mais do que o seu voto circunstancial? Conseguiu a Universidade formar com competência para uma sociedade aberta, onde as instituições dependem da existência de mecanismos de justiça e oportunidade? A verdade, por muito que custe admitir, é que a Universidade portuguesa mostra-se incapaz de criar elites, que sejam património de conhecimento onde exista igualdade no acesso e responsabilidade na sua formação.

A Universidade portuguesa não soube evoluir do valor medíocre do Estado Novo, alicerce de uma sociedade fechada para o alargamento disciplinado, consistente e partilhado do conhecimento. Quem a serviu nos órgãos tutelares do Estado nunca compreendeu a sua real dimensão transformadora para o País. As suas essenciais funções dissolveram-se numa classe política que sem conhecimento histórico e rigor de cidadania a conduziu a esta dimensão lamentável.

Quando passam quarenta e cinco anos sobre a crise de 1969 é importante deixar aqui, em memória deles e de nós, os que precisamos de falar, um som de sempre. Afinal a História, enquanto disciplina é uma construção de cada geração, e não uma colecção de palavras gastas e bolorentas que alguns representam, ainda que com aparente sucesso.


sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia Mundial da Poesia

Poeta

O poeta é igual ao jardim das estátuas
Ao perfume do Verão que se perde no vento
Veio sem que os outros nunca o vissem
E as suas palavras devoraram o tempo (1)

Hoje, 21 de Março celebra-se o Dia Mundial da Poesia. A poesia é, como o pensava Sophia a celebração do mundo em si, a descoberta e compreensão da beleza das coisas reveladas. Joan Margrit chamou-lhe «a última casa da Misericórdia». Uma forma sublime de recanto, de refúgio onde podemos reordenar o que sentimos e dar consistência humana à desordem que tantas vezes nos rodeia. A poesia permite-nos olhar para o mundo, para o real, o ausente dos dias com as palavras dos outros, mas com as nossas referências de alegria, trsiteza ou entusiasmo. Afinal recolher nas horas quem saiba connosco «enfrentar a imagem límpida do mar». (2)
 
Sophia, «O Poeta», «Prece», in No tempo Dividido

quinta-feira, 20 de março de 2014

A Primavera

As Flores

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma mnhã futura.

Sophia, "As Flores", in No Tempo Dividido, página 53

(É um pouco isso o que sonhamos, em cada equinócio de Primavera, em cada novo amanhecer que o real nos concede de forma única).

Imagem (olharfeleliz.typepad.com)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Pensar as ideias... José Medeiros Ferreira

"(...) estou sempre a reflectir, a ponderar, a tentar ver para lá das aparências. Não me deixo levar por epifenómenos". (entrevista a Aabela Mota Ribeiro)

Alguém esreveu que a vida que vivemos é feita de muitas outras, das que passam por nós e nos redimensionam o que amamos, fazemos ou conhecemos. Das que se formaram no sorriso aberto, nas ideias claras, na sabedoria tão essencial do que significa pensar por si.

Dele retenho um olhar diferente, fisicamente mas sobretudo a capacidade de reflectir, de fazer do estudo da História Contemporânea, uma forma de criar utensílios, ferramentas para um pensamento que compreenda o real. O sorriso e o abraço como forma inteligente e sedutora de acompanhar a palavra. E a ideia que o tempo formaliza as nossas possibilidades, é no seu momento a nossa forma de o amar no possível cintilante das formas que soubermos ousar.

Lembro-o de muitos sítios, mas tal como outros será da Universidade que a sua influência foi maior, pois ele é do tempo em que aquela funcionava como um templo do conhecimento, uma iniciação para transformar o mundo. Deixou nos media e nos livros muito da sua sabedoria, do seu encanto, do seu pensamento feito de palavras e interrogações sobre o real. Marcou em diferentes momentos a vida política, transmitiu os seus valores de social-democracia num óasis político feito de funcionários ideológicos e por isso muitas vezes foi ultrapassado pelas lesmas de serviço.

Enganou-se algumas vezes, mas quase sempre por solidariedade, por uma amizade feita de cumplicidades de sonhos. Era um dos poucos que valia a pena ouvir a comentar a actualidade, pois a sua bússola não era a do funcionalismo político, mas o de pensar, com o sorriso aberto do Atlântico, das vagas que reclamam e dão consistência a um pensamento original e criativo. Havia nele, na sua resiração algo de nórdico, algo pela construção do essencial, do indivíduo no seu papel para o bem comum. Foi um exemplo na sua vida e deixou-nos o maior, o da cidadania.

Chamou-se José Medeiros Ferreira e veio das ilhas frias para revelar "nas praias tristes" a nossa incapacidade de ser e de transformar, mas sempre a acreditar na possibilidade, sempre buscando o caminho mais original, mais certo do brilho da vida. Um abraço professor. Sentiremos a sua falta, da sua palavra e do seu espírito num País dominado por génios a banalidade.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O voo das palavras

«Tenho a ternura simples mas aos nós. Como as tuas unhas são mais compridas do que as minhas desata-me isto tudo. Mãos impregnadas de nuvens, ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. É bom nascer no instante em que o ar é mais frio do que a água. (...) no terceiro minuto a partir do crepúsculo, não no segundo, nem no quarto, a inventar uma flor.» (1)

«Fazer de cada página um barquinho de papel e deixá-lo navegar pelas sarjetas na esperança de que outra mão as receba», é um dos seus convites permanentes, no artesanato das palavras. Gostamos muito dele, quem nos comove pelas palavras que traçam a nossa respiração. Ele não acha nisso grande significado, mas realmente ninguém escreve como ele. 

Poucos pensam a literatura como oportunidades de crescimento, onde nos podemos ver, escritor e leitor com o espelhos do que somos. Raros respiram nas palavras a voz dos olhos e a limpidez descoberta do desconhecido. Olhá-lo com os seus contornos esbranquiçados, o jogo de mãos quando nos lembra os pedaços com que construímos a realidade, o olhar pensativo e o sorriso doce de quem sugere interrogações da nossa existência, são outras formas de aprender a respirar com a vida.

As suas palavras são quase tudo. Apresentou-nos a inteligência, mas também a humildade de criança, sempre a questionar o que somos. Deu-nos nas palavras a inspiração de momentos sublimes, onde nos revelou como precisamos do sorriso e de chegar à pertença de atmosferas tão etéreas como a nuvem, o pomar e os pássaros. Falamos de António Lobo Antunes, um arqueólogo da vida, onde se misturam as perguntas e os sonhos, como realidade única da nossa dimensão humana.

Tratar aqui dessa revelação, neste curto beco de palavras é uma tarefa de alcance miscroscópico e sem qualquer sucesso. É mais, é só, a apresentação de um amor, mais do que a sua explicação. Os livros de António Lobo Antunes não se explicam. Eles ambicionam chegar à respiração individual de cada um de nós, documentando o silêncio, estimulando a abertura das nossas portas, dando-nos o material «a pedra de que somos feitos».

Não há nas suas palavras narrativas com desejos de idealismos impossíveis, nem panfletos sociais, apenas o possível que nos habita. Nas suas palavras discute-se aquilo que nos organiza, a morte, e por isso a vida, e assim o que a dignifica, o carácter, a consciência, a inteligência, mas também a bondade e a alegria. Os seus livros são só companheiros, oráculos de um material, a vida, onde se tenta ultrapassar a solidão e marcar renovados encontros onde nos relembramos e amamos.

Encontros de voz e doçura onde em cada acordar ansiamos receber novos vestígios da manhã que nos liberte do cansaço do tempo. Em Babilónia, claro. Aqui, onde com os olhos no mar reconstruimos o ser de modo a sermos inteiramente humanos, com o espanto, a incerteza e o silêncio. Em Babilónia onde nos confrontamos, onde jardinamos a alma com as nossas contradições e onde percebemos que só podemos ser material de uma «dignidade inteira e completa». 

Seres universalmente finitos, onde nos compreendemos feitos de fraqueza e genialidade, «de ranho e poeira cósmica» e onde em cada página ficará como um longo caminho onde aspirámos à vida em todas as suas formas. E afinal seremos só e apenas principiantes desse tempo inicial, límpido, mágico de deslumbramento. Poderá a Literatura ser «a infância finalmente reencontrada» (2), num tempo contínuo de conquista e esperança? Ele tem-nos ajudado nessa magia do tempo.

(1) António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas, Página 81
(2) Georges Bataille, citado por Fernando Savater, A Infância Recuperada

domingo, 16 de março de 2014

Leituras - Mrs. Dalloway

"Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria flores. (...) 
Que delícia! Que mergulho! Era sempre assim que se sentia em Bourton, quando, com um leve chiar das dobradiças, semelhante ao que agora ouvia, escancarava as portadas das janelas e mergulhava no ar puro. Como era fresco, como era calmo, mais silencioso, muito mais do que ali, o ar ao início da manhã; era como o bater de uma onda, o beijo de uma onda; frio e cortante, e contudo solene, sentindo como sentia, virada para a janela aberta, que algo maravilhoso estava prestes a acontecer; a olhar para as flores, para as árvores de onde a neblina se desprendia, para as gralhas que se erguiam, que se deixavam cair. (...)
Agora, nunca mais diria de ninguém no mundo que essa pessoa era isto ou aquilo. Sentia-se muito jovem; ao mesmo tempo, indizivelmente envelhecida. Atravesssava as coisas como uma faca e, ao mesmo tempo, ficava de fora, a olhar. Tinha a perpétua sensação, enquanto observava os táxis, de estar longe, longe, muito longe, no meio do mar; sempre tivera a sensação que era muito, muito perigoso, viver um só dia que fosse. (...)

São as visões que flutuam incessantemente, que contornam as coisas, que interpõem o rosto entre elas e a realidade; dominando frequentemente o viajante solitário e tirando-lhe o sentido da terra, o desejo de regressar, concedendo-lhe por sua vez uma paz absoluta, como se toda aquela febre de viver fosse a própria simplicidade; e míriades de coisas se dissolvessem numa só; e aquela figura, feita com o é de céu e ramos, se erguesse do mar turbulento como uma forma que pode ser sugada para fora das ondas e fazer chover das suas magnificentes mãos a compaixão, a compreensão, a absolvição". (1)

(Um livro que discute uma procura íntima, a procura de uma identidade, a insistente procura por um sentido interior de uma mulher que faça sentido por si, por ela, não por respostas sociais convencionais. Uma narrativa sobre a vida que construímos em cada momento por nós, sem os recursos sociais e as suas avaliações. Analisando o seu real, as suas relações diárias, Clarissa questiona-se o que significa ser cada uma das nossas possibilidades. Um livro onde a modernidade do romance se constrói pela capacidade de absorver o real, sem uma definição particular do que somos). 

(1) Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, páginas  13, 18 e 67.

Natália

«Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamante (...)

Creio nas lendas, nas fadas, (...)

Creio no engenho que falta mais fecundo (...)
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,


Creio nos deuses de um astral mais puro
Na flor humilde que se encosta ao muro(...),

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen"
(Nos vinte e um anos de memória de uma poetisa e de uma mulher inesquecíveis que reconstruiu em palavras e em gestos toda a força da palavra e todas as possibilidades que temos como pessoas, numa ideia suprema de divinizar os dias e as emoções).

sexta-feira, 14 de março de 2014

O livro e a leitura

"(...) Santo Ambrósio, que constava ter encontrado uma maneira de ler sem dizer as palavras em voz alta (...) ainda me impressiona que possamos compreender palavras sem as pronunciarmos.

Para Santo Agostinho, o peso e a vida interior das frases sentia-se melhor se ditas em voz alta, mas muita coisa mudou desde então. Ensinaram-nos durante demasiado tempo que um homem a falar sozinho é sinal de excentricidade ou de loucura.

Deixámos de estar habituados à nossa própria voz, a não ser em conversa ou no meio de uma multidão aos gritos. Mas um livro também suscita conversa: uma pessoa está a falar com outra e o som audível é natural, ou devia ser, na troca que se produz. É por isso que leio em voz alta, sou o espectador de mim mesmo e dou voz a palavras de outros."

Teju Cole, A cidade aberta, pág. 13-14

Leituras - Os sonhos de Einstein

Suponham que o tempo é um círculo que se curva para trás sobre si próprio. O mundo repete-se a si mesmo, rigorosamente, até ao infinito. A maior parte das pessoas ignora que voltará a viver a sua vida uma e outra vez. (...) No mundo em que o tempo é um círculo, cada aperto de mão, cada beijo, cada nascimento, cada palavra, irão repetir-se com precisão. (...) Tal como um objeto se pode deslocar em três direções perpendiculares umas às outras, horizontal, vertical e longitudinal, também um objeto pode participar de três futuros perpendiculares uns aos outros. Cada futuro é real (...) Alguns menosprezam as decisões, argumentando que todas as decisões acabarão por ocorrer. Num mundo assim, como poderia alguém ser responsável pelas suas ações?"

(Num pequeno livro, Alan Lightman conseguiu de uma forma admirável dar-nos os tempos do tempo, numa poesia dos dias, a exatidão dos princípios com que Einstein sonhou o Universo e a sua organização). 

Albert Einstein - Uma Biografia

«Sou como um castelo encantado, onde penetram todos os ventos que passam. Por vezes, sigo o mesmo percurso de pensamento cem vezes por dia. Volto atrás, altero um pormenor, recomeço... É um rascunho que nunca acaba. O mundo é o nosso rascunho.» (1)

Há justamente cento e trinta e cinco nasceu um cientista, um pensador que tentou admirar e compreender o universo, os seus fundamentos usando as nossas humanas capacidades. Com a imaginação, a dúvida e o rigor da linguagem matemática deu-nos uma nova visão do universo. A revista Time considerou-o o homem mais importante do século XX. Justamente, Albert Einstein.

Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha a catorze de Março de 1879. Filho de uma família judaica de classe média, o pai era comerciante, fundando com o seu irmão em 1880, em Munique, uma empresa de material eléctrico, a J. Einstein&amp Cie que alcançaria um relativo sucesso nos primeiros anos de difusão da industrialização na zona de Munique. A família sendo judaica não deu ao jovem Einstein uma educação religiosa, na medida em que não seguia os procedimentos rituais dessa cultura. A partir de 1885 Einstein inicia a sua formação numa escola pública de Munique. Aos dez anos a influência de Max Talmud inscreve-o no mundo dos livros, dando-lhe a conhecer Euclides e Kant. O modo racional de obervar o mundo começa a desenhar-se no jovem de Ulm.

A partir de 1895 Einstein parte para Itália, entrando no ano seguinte no Instituto Politécnico de Zurique. Começa a testar as suas ideia em laboratório, dedica-se ao estudo e falta às aulas, o que lhe criará mais tarde algumas inimizades no mundo académico. Irreverente e imaginativo, abdica em 1896 da cidadania alemã, obtendo em 1901 a nacionalidade suiça, que sempre considerou a sua em todas as viagens que fez.

A partir de 1905 Einstein fará parte já da memória científica da humanidade com os seus diferentes estudos que darão uma luz nova aos estudos da física. Do campo fotoeléctrico, à confirmação do movimento dos átomos, ao estudo dos corpos em movimento até à construção da sua famosa equação E = mco contributo de Eisntein para a compreensão do Universo foi imensa.

Na década de vinte inicia-se como professor das Universidades de Praga, Berlim e na Academia Prussiana das Ciências, recebendo em 1921 o Prémio Nobel da Física. A sociedade alemã dos anos vinte vivia no rescaldo do desastre da 1ª Grande Guerra e das condições do tratado de Versalhes. A partir dos anos trinta todo o quadro cultural, social e económico se deterioraria com a ascensão do Nazismo. As fogueiras, a destruição dos locais de cultura, as perseguições dariam o tom negro da falta de racionalidade que em tantos tempos destruiu a humanidade. Einstein compreendeu que tal como o universo, também a estupidez humana é por vezes infinita.

Einstein abandonou a Alemanha em 1940 e tornar-se-ia cidadão americano. Aqui tentou desenvolver as suas ideias relativas aos campos gravitacional e eletromagnético, de modo a criar uma teoria que explicasse como elas se poderiam unir num único campo. A fusão nuclear, aplicada em Hiroshima, momento trágico da memória humana, não foram concebidos por Eisntein, embora os seus estudos sobre a matéria tenham ajudado a essa fatal experimentação. A sua carta a Roosevelt mostra-nos como era sobretudo um pacifista e um homem admirado, seduzido pelo universo e pela vida.