«Tenho a ternura simples mas aos nós. Como as tuas unhas são mais compridas do que as minhas desata-me isto tudo. Mãos impregnadas
de nuvens, ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. É bom
nascer no instante em que o ar é mais frio do que a água. (...) no
terceiro minuto a partir do crepúsculo, não no segundo, nem no quarto, a
inventar uma flor.» (1)
«Fazer de cada página um
barquinho de papel e deixá-lo navegar pelas sarjetas na esperança de que
outra mão as receba», é um dos seus convites permanentes, no artesanato das palavras. Gostamos muito dele, quem nos comove pelas palavras que traçam a nossa respiração. Ele não acha nisso grande significado, mas realmente ninguém escreve como
ele.
Poucos pensam a literatura como oportunidades de crescimento, onde
nos podemos ver, escritor e leitor com o espelhos do que somos. Raros
respiram nas palavras a voz dos olhos e a limpidez descoberta do
desconhecido. Olhá-lo com os seus contornos esbranquiçados, o jogo de
mãos quando nos lembra os pedaços com que construímos a realidade, o
olhar pensativo e o sorriso doce de quem sugere interrogações da nossa
existência, são outras formas de aprender a respirar com a vida.
As
suas palavras são quase tudo. Apresentou-nos a inteligência, mas também a
humildade de criança, sempre a questionar o que somos. Deu-nos nas
palavras a inspiração de momentos sublimes, onde nos revelou como
precisamos do sorriso e de chegar à pertença de atmosferas tão etéreas
como a nuvem, o pomar e os pássaros. Falamos de António Lobo Antunes, um
arqueólogo da vida, onde se misturam as perguntas e os sonhos, como
realidade única da nossa dimensão humana.
Tratar aqui dessa
revelação, neste curto beco de palavras é uma tarefa de alcance
miscroscópico e sem qualquer sucesso. É mais, é só, a apresentação de um
amor, mais do que a sua explicação. Os livros de António Lobo
Antunes não se explicam. Eles ambicionam chegar à respiração individual
de cada um de nós, documentando o silêncio, estimulando a abertura das
nossas portas, dando-nos o material «a pedra de que somos feitos».
Não
há nas suas palavras narrativas com desejos de idealismos impossíveis,
nem panfletos sociais, apenas o possível que nos habita. Nas suas
palavras discute-se aquilo que nos organiza, a morte, e por isso a vida,
e assim o que a dignifica, o carácter, a consciência, a inteligência,
mas também a bondade e a alegria. Os seus livros são só companheiros,
oráculos de um material, a vida, onde se tenta ultrapassar a solidão e
marcar renovados encontros onde nos relembramos e amamos.
Encontros
de voz e doçura onde em cada acordar ansiamos receber novos vestígios da
manhã que nos liberte do cansaço do tempo. Em Babilónia, claro. Aqui,
onde com os olhos no mar reconstruimos o ser de modo a sermos
inteiramente humanos, com o espanto, a incerteza e o silêncio. Em
Babilónia onde nos confrontamos, onde jardinamos a alma com as nossas
contradições e onde percebemos que só podemos ser material de uma
«dignidade inteira e completa».
Seres universalmente finitos, onde nos
compreendemos feitos de fraqueza e genialidade, «de ranho e poeira
cósmica» e onde em cada página ficará como um longo caminho onde
aspirámos à vida em todas as suas formas. E afinal seremos só e
apenas principiantes desse tempo inicial, límpido, mágico de
deslumbramento. Poderá a Literatura ser «a infância finalmente
reencontrada» (2), num tempo contínuo de conquista e esperança? Ele tem-nos ajudado nessa magia do tempo.
(1) António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas, Página 81
(2) Georges Bataille, citado por Fernando Savater, A Infância Recuperada