quinta-feira, 11 de julho de 2019

Leituras - Nem todas as baleias voam

"I committed crime Lord I needed / Crime of being hungry and poor".  (1)

Existem livros inquietantes capazes de nos contar uma história e de ao mesmo tempo pronunciarem em si um diálogo largo, aberto e pungente entre o real que nos é dado a viver jogando uma dupla viagem, emersa entre o belo e a crueldade mais evidente. Nem todas as baleias sabem voar é um livro de Afonso Cruz composto de múltiplas camadas e de cada vez que chegamos às suas palavras constrói-se um sentido novo feito de significados desbravados por uma história, pelas suas personagens, pelo contexto de uma vida.

Nem todas as baleias sabem voar é um livro sobre Erik Gould, um pianista genial, capaz de ver nas notas, imagens a fluir, como um desenho a revelar-se. É um livro sobre uma vida integrada num projecto que tentou colocar a música como forma de aproximação entre países distanciados pela guerra fria, justamente, o Jazz Ambassadors. É um livro de palavras à procura de um belo dentro da crueldade, da maldade humanas de uma forma entre o poético e uma crueza de significados.

Nem todas as baleias sabem voar é um livro de continuidades e descontinuidades, como quem faz uma viagem informado por dados pessoais a correr no quotidiano de uma história. O livro convida a prosseguir e a parar, remete-nos para imagens de um belo a procurar soltar-se de uma crueldade do quotidiano. É um livro sobre Erik Gould, mas também sobre a sua relação com Natasha Zimina e sobre Tristan numa procura para afastar a dor como algo que incapacita uma leitura fantasiosa do mundo, mas que é também o sinal da presença da vida, do seu afecto num ser humano.

Nem todas as baleias sabem voar é uma obra literária que vale muito pela sua leitura, pelas influências que se descobrem, como a discussão da ideia de Cosmos e do significado da dor e da felicidade em viajantes como nós à procura de um significado para aquilo que fazemos neste percurso. Livro sobre o amor, sobre o seu significado enquanto forma de encontro e de quimera, quando o abandono nos presenteia com essa companhia de nuvem que era o seu olhar.  Um livro para reler várias vezes e nesse sentido é mais do que uma ficção biográfica sobre um homem e o seu sentido de encontrar na pele e na música um sentido para o próprio Universo.

(1) Versos de work song, cantada por Nina Simone.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A burrice como ciência


As últimas notícias sobre o nosso sistema de ensino ilustram quão certeiro foi o pensamento de António Aleixo, poeta do povo: “Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que às vezes fico pensando que a burrice é uma ciência”.

1. João Costa veio, em artigo de 30 de Maio passado (Observador), defender-se das críticas às suas teorias sobre flexibilidade e inclusão. Abalroada pela demagogia que a domina, a prosa do secretário de Estado assentou num maniqueísmo primário e populista. Segundo ele, uns querem sucesso e inclusão para todos (ele e prosélitos), outros (os que lhe criticam os métodos), preferem reprovar os alunos. Escapou-lhe considerar que o que separa a turma dele (perita em baixar a fasquia dos pobres em vez de lhes conferir os meios para chegarem onde os ricos chegam) da turma dos outros é a recusa, por parte dos segundos, a certificar a ignorância. E que o grande combate a favor da inclusão começa fora da Escola, sob responsabilidade alheia aos professores, colada, outrossim, à pele dos políticos promotores da mediocridade. E continuará na Escola, quando substituirmos proclamações palavrosas, papéis e burocracia por meios, recursos e dignidade para quem ensina.

2. Outro Costa, este António, fez-me recordar a eloquência de Américo Tomás (nos anos 60, disse o então Presidente da República numa inauguração: “É a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive”). Afirmou o nosso primeiro-ministro, coveiro da justiça devida aos professores, numa escola de Arcos de Valdevez: “Uma escola são aqueles que estão na escola, que vivem, trabalham e estudam na escola. No início de final do ano lectivo presto grande tributo pelo trabalho que têm desenvolvido e que, mais uma vez, este ano desenvolveram”. Os professores presentes na sala, apesar de bofeteados pelo seu cinismo, continuaram na sala.

3. Leu-se profusamente na imprensa que o Governo criou um regime especial de avaliação para que professores possam progredir na carreira. Ora o Governo não criou coisa nenhuma. Foi a DGAE que “criou”, com uma simples “nota informativa”, uma brincadeira para remediar a trapalhada que o Governo pariu. Ou seja, o homem demitia-se se a AR fizesse cócegas ao OE, para fazer justiça mínima aos professores. Mas não tugiu nem mugiu quando uma directora-geral resolveu (com impacto orçamental) ao contrário do que continua escrito na lei.

4. Com aulas a funcionar, vigilâncias a promover, conselhos de turma em simultâneo, exames nacionais a preparar e instruções a pingar a toda a hora, a vida das escolas foi nos últimos tempos um inferno logístico, a que se somaram as provas de aferição. Excluindo ministro e secretários de Estado, é difícil encontrar quem defenda provas iguais para curricula diferentes, absolutamente estéreis e sem nexo para concluir sobre a evolução do que se aprende, resistindo à sua óbvia inutilidade.

5. O Parlamento decidiu aumentar o salário dos juízes dos tribunais superiores, os quais, a partir de agora, poderão ganhar mais que o primeiro-ministro. Ao fazê-lo, retirou legitimidade moral e ética à retórica da contenção salarial. Com efeito, é inaceitável, no domínio dos princípios constitucionais, que as carreiras das classes profissionais sejam tratadas em função da expressão numérica que as caracteriza, falemos de professores, militares ou outros portugueses. 

E é revoltante que se diga (deputado Fernando Anastácio, apresentador e defensor na AR da proposta socialista, casado com uma juíza, por coincidência do destino relatora do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu Maria de Lurdes Rodrigues da inicial pena suspensa de três anos e meio de prisão e, por graça de Deus, pai do jovem Pedro Anastácio, membro do secretariado nacional da Juventude Socialista, envolvido, por inveja dos homens, na decantada polémica do familygate do PS), no caso dos juízes, tratar-se tão-só de repor um direito que já existiu, enquanto se ignora, no caso dos professores, o que uma lei em vigor dispõe. Tudo no mesmo Estado, dito de Direito. Aos professores e ao Direito o PS disse não e chantageou com a demissão. Aos juízes e aos costumes de conveniência disse sim e curvou-se servilmente. Pelo menos, ficou ainda mais clara a densidade da ética republicana deste PS.

Santana Castilho, Jornal Público, 11.06.2019
Imagem: Copyright - René Magritte, Ceci nést pas une pipe, 1929, Los Angeles County Museum of Art.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Leituras - A harpa de ervas (I)


É [num] mundo de velas acesas e monstros debaixo da cama que entramos ao começar a ler "A Harpa de Ervas". É um mundo que todos nós conhecemos, que talvez tenhamos esquecido pelo caminho, mas basta a voz do vento num campo de ervas (a voz dos mortos?), uma casa numa árvore, uma criança estranha à entrada de um cinema quando as ruas estão cobertas de neve, uma rapariguinha magra que quer ser uma estrela de cinema, um homem estranho numa carruagem de comboio, durante a noite, para que voltemos a encontrá-lo. 

É um mundo encantado, onde ainda acreditamos que para cada um de nós existe uma única pessoa, a única pessoa a quem podemos contar tudo, um mundo onde se aprende o amor: "Uma folha, um punhado de sementes... começa por estas coisas, aprende aos poucos o que é amar. Primeiro uma folha, um aguaceiro, depois alguém para receber o que uma folha te ensinou, o que a chuva fez amadurecer em ti. Não é um processo fácil, atenção; pode levar uma vida inteira, como aconteceu comigo, e, mesmo assim, ainda não lhe conheço os meandros; sei apenas que a verdade é essa e só essa: que o amor é uma cadeia de ternura, assim como a natureza é uma cadeia de vida."

Nesse mundo, encontramos pessoas como Dolly: "Mesmo quando chovia, era seu hábito deambular ao longo de um vulgaríssimo carreiro como se estivesse a passear num jardim, de olhos atentos em busca das preciosas plantas medicinais de aroma agradável, um raminho de poejo, de erva-cidreira ou de hortelã, ervas úteis cujas fragrâncias lhe perfumavam as roupas. 
Ela via tudo antes dos outros, e a sua única vaidade era essa, fazer questão que fosse ela, e mais ninguém, a apontar certas descobertas: as pegadas de um pássaro a desenharem no chão um círculo perfeito, o beiral de um telhado repleto de pingentes de gelo - estava sempre a chamar-me para ver uma nuvem em forma de gato, um navio feito de estrelas, um rosto humano na geada." Um mundo que pode ser triste: "Não é preciso estarmos mortos. Lá em casa, na cozinha, há um gerânio que floresce de novo todos os anos. Algumas plantas, porém, dão flor só uma vez, às vezes nem isso, e nada mais lhes acontece. Vivem, mas a sua vida já se completou."

Truman Capote começou a escrever aos oito anos, histórias de aventuras, novelas policiais, contos narrados por antigos escravos. Segundo ele, era divertido até descobrir a diferença entre escrever bem e escrever mal. E mais tarde fez uma descoberta ainda mais terrível: existe uma diferença entre escrever muito bem e a verdadeira arte. Num texto chamado "A Voice from a Cloud", em que fala do seu primeiro romance "Other Voices, Other Rooms", menciona os autores que o influenciaram, entre outros Henry James, Mark Twain, Edgar Poe, Jane Austen, Dickens e Proust. 

Por vezes um escritor sente que não tem de fazer qualquer esforço para escrever uma história, como se estivesse simplesmente a transcrever as palavras de uma voz vinda de uma nuvem. No "Self-Portrait" sugere que a obra de arte é o mistério, a magia extrema; e, embora saiba muito sobre a escrita, quando lê algo de muito bom os seus sentidos navegam num oceano de espanto. Como é que ele fez isto? Como é que é possível? É o que sinto sempre ao ler a "Harpa de Ervas" e alguns contos de "A Árvore da Noite". E neste caso a tradução é excelente, tem o mesmo encanto do original.

Num texto incluído em "Música para Camaleões", Capote diz que gostava de reencarnar como um pássaro, um falcão, porque ninguém gosta dele, é feio, indesejado em toda a parte, e há muito a dizer sobre a liberdade que isso oferece. E também diz que ainda não é santo. Mas quer ser. (Uma frase de Léon Bloy: "Só há uma infelicidade, que é não sermos santos".) E conclui com a sua oração nocturna, se eu morrer antes de acordar, peço a Deus para a minha alma levar. Por vezes acho que ele, que se debateu tantos anos com o seu último livro, que nunca terminou, "Súplicas Atendidas" (um título inspirado por uma frase de Santa Teresa, "Derramaram-se mais lágrimas sobre as orações atendidas que sobre as ignoradas"), teve as suas preces atendidas quando era muito jovem, quando escreveu livros como "Other Voices, Other Rooms", "The Grass Harp" ou "A Tree of Night". Não sei se estava a transcrever as palavras de uma voz nas nuvens, mas é essa a impressão que temos. Um terrível estado de graça. "Quando é que ouvi falar pela primeira vez da harpa de ervas? Muito antes do Outono que passámos na amargoseira; num Outono anterior, portanto; e, como não podia deixar de ser, foi Dolly quem me contou, pois mais ninguém se lembraria de chamar-lhe isso, uma harpa de ervas."

"A Harpa de Ervas" não é exactamente um livro para ler. É muito mais do que isso. É um livro para reler. Como um texto sagrado ou um conto de fadas. Até ao fim da vida.

Ana Teresa Pereira, "A harpa de ervas e outras histórias", in Jornal Público, 01 de Novembro de 2003.
Imagem: Copyright - 白花色。

sexta-feira, 8 de março de 2019

Elas...


“Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para lai uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. 

Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram.

Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar À roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui nos cachopos, senhora, que agente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte da casa fechada. 

Elas estenderam roupas a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”

Maria Velho da Costa. (1976). Cravo. Lisboa: Moraes Editores.
Imagem: Copyright - Alfredo Cunha Official Fujifilm X-Photographer, Vila Verde, 2001