sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Leituras - Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes


“Aparecer, manifestar-se, brilhar.
Constelar, cintilar, extinguir-se." (1)

Existem livros que ficando no domínio da Literatura, no território da ficção se elevam a uma forma de conhecimento com alguma forma de imaginação. A literatura tem nos seus domínios formas de recuperar memórias ou tão só construir biografias imaginadas de tempo e pensadas a partir de um ou mais acontecimentos. A plasticidade de acontecimentos, como forma de um conhecimento.

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes é um desses casos, onde a literatura recupera a memória dos passos de Miguel Ângelo Buonarroti, com destaque para a sua viagem a Constantinpla para o desenho de uma ponte, no chamado corno de ouro. Livro que levanta o conhecimento de figuras do Renascimento italiano, dos modos como os Otomanos administraram esse espaço, a sua civilização de sultões e vizires.

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes  constrói uma narrativa suportada em figuras que viveram no início do século XVI, Miguel Ângelo, Mesilu de Pristina, poeta referenciado na Literatura Otomana, Bayazid, sultão Otomano e Ali Paxá, seu vizir. Faz de igual modo referências à cultura do Renascimento, ao que influenciou, devido a este contacto, a construção em Roma, como a cúpula de São Pedro. Um livro que constrói uma rica espessura psicológica destas figuras neste tempo.

Dos dados documentais nasce uma atmosfera que tenta integrar um homem, o seu trabalho, o seu génio de escultor, a sua infinita curiosidade para concretizar formas materiais de beleza. Imaginação construída dentro dos arquétipos do mundo de Quatrocentos. Um homem entre duas civilizações, os sentidos de um sonho entre uma vida a desgastar-se na sua materialidade, na dependência económica do papa ou de um sultão. Um homem entre duas formas de olhar os outros, esses sonhos migrados no coração de um outro homem, sonhos frágeis a compor desejos de uma luz para a vida, para o amor. Sonhos para a construção de uma "imagem", de "uma verdade" para superar a infantil forma dos ícones dos castelos, dos templos, das lendas que animam multidões, "um véu que esconde a eterna dor da noite."

Fala-lhes de batalhas, de reis e de elefantes  recebeu o Prémio Goncourt de Lycéens (2010) e foi ainda Prémio do Livro em Poitou-Charentes (2011) e é na verdade um excelente livro para melhor entender o homem no interior de um tempo histórico.

Mathias Énard é um grande conhecedor da cultura oriental, nos seus domínios árabe e persa e revela aqui uma capacidade narrativa substantiva, em nos contar numa ficção um quadro civilizacional. Expressão retirada de Kipling, do seu Life's Handicap, a entrada do livro, a sua epígrafe, a que o livro dá uma plasticidade marcante, torna um episódio numa linha contínua da própria vida humana. Vale a pena recordá-la:

"Como são crianças, fala-lhes de batalhas,
e de reis,
de cavalos, de diabos, de elefantes
e de anjos, mas não deixes de lhes falar de
amor e de coisas semelhantes."

Fala-hes de batalhas, de reis e de elefantes / Mathias Énard ; trad. Pedro Tamen. - 6.ª ed. - Alfragide: D. Quixote, 2018. - 159 p. ; 24 cm. - Tit. orig.: Parle-leur de batailles, de rois et d'éléphants. - ISBN 978-972-20-5174-3