sexta-feira, 16 de maio de 2014

Leituras - O rio e o seu segredo

"Caminho pelas ruas de Zhangjiako. Como muitas vezes antes, na minha vida, quis voltar atrás para encontrar a energia para seguir em frente. Zhangjiako, pensava eu, dar-me-ia coragem. Claro que a vida me trouxe muito. Mas também me quebrou, porque me levou a não gostar de mim, a duvidar incessantemente, doentiamente. 

Com o tempo, sinto cada vez mais ao meu lado a presença de Bach e de Lao-Tzu. Ajudaram-me a ultrapassar as provações do passado, e ajudar-me-ão ainda a enfrentar as que me esperam, porque me parece que o mais difícil ainda está por vir: encontrar finalmente a liberdade interior. (...) 


À noite, tenho dúvidas, tenho medo dos outros, de mim, e sinto com violência a minha impotência, a minha incapacidade para atingir a perfeição. Mas de manhã, sei que ele está ali, na sala ao lado, à minha espera. É uma promessa de felicidade sempre constante. O meu piano. Olho o céu de Zhangjiako. E ouço a minha avó contar-me. Foi na noite em que nasceste..."

(Um retrato indescritível de uma jovem que viveu esse pesadelo que foi a Revolução Cultural e nos dá, não só a violência sobre o indivíduo, a morte de qualquer intimidade com a consciência, mas sobretudo a forma corajosa de como com a Arte pôde sobreviver a esse pesadelo. Um relato verídico e fascinante de uma pianista, que com Mozart e Bach venceu os mais baixos princípios de um poder sem alma e virtude).

A "revolução" cultural


«A noite vai bem avançada. Dá-me um fósforo». (1)


Justamente há sessenta anos, iniciava-se uma das mais violentas formas de organização da sociedade no século XX. O Maioísmo, redundância de uma chamada "revolução cultural" aprisionou milhares de pessoas em condições onde a sua dignidade humana não cabia.

Caminho feito onde supostamente os operários e os trabalhadores reconstruiriam uma ordem justa de um novo País, foi uma forma mais que no século XX, se revestiu o autoritarismo desumano perante o indivíduo. Aplicação irracional da vontade um chefe e de uma nomenklatura conduziu milhares a uma vida sem horizonte e sem direito à vida.

Em muitas latitudes se confundiu a dinidade humana com essa palavra mítica, «revolução», onde mais não foi que a exploração mais baixa da humanidade. Não se repetindo a História, ela como memória deve-nos colocar de prudência para todas as formas onde o indivíduo deixa de ser a alma de uma Humanidade consciente da sua dignidade.

Difundiu-se por continentes de amnésia e os seus livrinhos vermelhos de obediência cega chegaram a muitos continentes, aos que sonharam "revoluções" sem saber que isso era iniciar a página em branco com o coração. Chegou longe, formulou o pensamento de muitos que ainda hoje pelos media esclarecem a dignidade do poder financeiro. Chegou ao poder político e aos que de fundamentalismo em fundamentalismo se chegaram ao serviço de qualquer escravatura. Foi uma das vergonhas humanas do século XX e ainda tem os seus fiéis.Os novos modernos do pensamento utilitário.

(1) Lu Yan, Melancolia

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Leituras - Breviário Mediterrânico

A filologia do mar- rico de inteligência e de poesia, no que mistura de rigor e de temeridade, (...) de precisão científica e de epifania do infinito." 

A viagem, a descoberta de novos espaços iniciou a construção do que somos como civilização. A nossa identidade forjou-se nos espaços azuis do céu, nas gotas de sal que emergem das ondas, nos portos e faróis onde nos abrigámos. Nesta iniciação ao mundo onde se erigiram descobertas e saberes, sabores, alimentos e perfumes, a Europa nasceu e por ela expandiu formas culturais ao mundo.

Dos mares, às rotas terrestres, da mareia às fortalezas marítimas, foi a viagem pelo mar que nos fez culturalmente, como civilização. Este mar no qual nascemos para o conhecimento do mundo, por onde contactámos a história romana com a explosão grega, o desafio árabe e a afirmação europeia é o Mediterrâneo.

Predrag Matvejevitch descreveu em Breviário Mediterrânico, a luz solar, o perfume das laranjeiras, o vento silvestre no olival, onde as azeitonas e o sal fermentam os dias. Com ele aprendemos, o que sentimos nas cidades onde o mar fez soprar o seu encanto por onde perdemos a voz com as sereias. Se a viagem nos fez descobrir o que somos,o mar, com os seus rios interiores e exteriores deu-nos a alegria de redescobrir outras paisagens, outras formas de ser.

O Mediterrâneo é esse caminho estrelar por onde o sol e a luz abrem formas particulares de organização social e económica. O Mediterrâneo, tal como a viagem, a navegação constrói-se na lenda, na geografia, no perfume alto dos pinheiros, nas encostas de figueiras onde já prenunciam as areias do deserto e nas cidades que reflectem as suas aventuras. Todas as palavras são instrumento e memória da linguagem precisa e enérgica que é o milagre do mar. Dando consistência ao particular, juntando no quotidiano as formas imaginativas da civilização. É um pequeno grande livro que supera muito o conhecido Mediterrâneo de Fernand Braudel.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Edutopia...

"It’s a place of inspiration and aspiration based on the urgent belief that improving education is the key to the survival of the human race. We call this place Edutopia, and we provide not just the vision for this new world of learning but the real-world information and community connections to make it a reality".

Temos com frequência verdadeiros apaixonados pela educação. Gente política criada nos alforges partidários que nos prometem toda a dedicação a uma questão que trará dias novos à capacidade de as pessoas pensarem e exprimirem as suas ideias, formalizando a sua participação  cívica. Hannah Arendt explicou que a verdade e a política sofrem de uma incompatibilidade insuperável, pois a mentira é um aceitável recurso para o exercício da governação.

Teríamos a sociedade civil, os que generosamente pela sua maior riqueza decidissem participar na construção de valores comunitários, na formulação de associações que se dediacam ao bem comum, fazendo-o com sentido de missão. E aqui a educação poderia mais uma vez ser uma nobre causa. O capitalismo associa-se mal nos espírtos pobres a uma dimensão de consciência social. Os capitalistas em Portugal são só isso, capitalistas. Não se lhes conhece verdadeiros projectos de solidariedade social. Acumulam capital como a praia grãos de areia.

George Lucas é um exemplo de quem investiu uma parte da sua fortuna feita a partir desse sonho planetário de contar aventuras, Star Wars, num projecto de uma dimensão que vale a pena destacar, a Edutopia. Pensado para crianças até aos doze anos, propõe todo um mundo de descobertas e oportunidades no planeta da aprendizagem. É uma plataforma para docentes, pais, gestores darem o seu contributo para uma melhoria significativa na aprendizagem.

Edutopia congrega ideias vindas da investigação em ciências sociais e educação, e onde a aprendizagem com base em projectos, a aprendizagem designada de envolvência emocional e os acessos aos novos suportes digitais são contemplados de forma muito significativa. Edutopia é uma platforma com excelentes recursos para promover a inovação, as competências para uma motivação para a aprendizagem ao longo da vida e como as literacias se podem trabalhar para uma participação e envolvência cívica. Daqui a alguns séculos talvez consigamos que os merceeiros do costume percebam alguma coisa de valores e de cidadania.

Leituras - Les Essais

"Estou convencido de que por vezes me acontece falar de coisas que melhor tratarão as gentes do ofício, e com mais verdade. Trata-se apenas de pôr à prova as minhas faculdades naturais e não as que adquiri. E quem tomar por defeito a minha ignorância de modo algum me ofende, pis dificilmente ousarei responder às minhas afirmações perante ninguém, eu, que nem perante mim próprio respondo por elas e a quem também não satisfazem. (...)

E embora seja eu bastante um homem de leitura, não sou de modo algum um homem de memória. Por isso não garanto certezas: quando muito, posso revelar o grau de conheciemntos que tenho da questão no momento em que escrevo. Atente-se não nas matérias tratadas, mas na maneira como as trato. (...)

Não tenho outro ordenador dos meus pensamentos que não o acaso. À medida que as minhas ideias se apresentam, junto-as. Ora se acotovelam como uma multidão, ora se arrastam em fila. Quero que seja o meu pendor natural e habitual, por mais desregrado que seja. Deixo-me ir tal como sou: tanto mais que os assuntos são dos que é permitido ignorar ou evocar ao acaso temerariamente. (...)

Digo livremente o que penso de todas as coisas, mesmo das que, sendo caso, ultrapassam as minhas capacidades e de que modo algum considero da minha competência. A opinião que formulo serve igualmente para pôr em evidência os limites do meu discernimento e não os limites das coisas".

In Memoriam - Saldanha Sanches

A memória dos dias leva-nos a destacar uma figura que respeitávamos pela sua dimensão cívica, pela participação nas ideias que devem servir a acção quotidiana, para que o acto público seja efectivamente nobre.

Fiscalista, professor de direito, resistente no Estado Novo à acção de um País fechado ouvimo-lo muitas vezes denunciar aquilo que tem sido o presente perdido num País adiado na esperança. Ouvimo-lo muitas vezes falar contra a corrupção dos interesses, a falta de rigor financeiro, a desonestidade intelectual de tantas medidas de um Estado tecnocrático.

Se numa vida se perde toda a humanidade, num País em que a acção política não tem ideias, vivendo de um discurso formal sem espírito, a despedida da vida de um homem como Saldanha Sanches é sempre uma imensa perda. A falta de humanismo no espaço público deixa-nos mais sós no difícil real que é o Portugal contemporâneo. Uma lembrança de agradecimento ao seu espírito vivo.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Da cultura...

"Por enquanto, parece-me razoável e prudente limitarmo-mos a falar na cultura "dos portugueses. Quanto a mim, a esmagadora maioria dos portugueses "não tem" aquilo que se designa por cultura. A cultura de um povo não é representada por arquivos que se não desbravam sistematicamente, por pomposas ou arrebicadas edições que ninguém lê, por livros em tiragens irrisórias, por museus que só escasas minorias vão visitando, por jornais que apenas poublicam os quase só publicam grosseiros cozinhados dos comentaristas internacionais. Nada disso é, nem nada disso representa cultura. (...)

A cultura não é ter lido tudo, como nem é não ter lido nada. É sim, "poder" ter lido e "poder" ter discutido, abertamente, quanto é essncial à vida humana e à vida nacional. Tudo o que não for assim concebido e assim não puder ser executado é a própria negação da cultura. Não se trata apenas de fazer participar os portugueses na vida portuguesa, questão fundamental. Trata-se de dar a todos a consciência de que lhes cabe participar nela plenamente. 

De que serve que haja ou se permita que haja ou se favoreça que haja técnicos distintos nos vários ramos, artistas de vaoor, escritores de mérito, se toda essa gente, pelos condicionalismos de intercâmbio nacional e internacional a que a cultura é sujeita, e da concentrada sujeição ao ganhar a vida em segurança, toda essa gente não vê para além da sua brilhantíssima sovela, e raro é o engenheiro, o médico, o jornalista, o escritor, capaz de enquadrar os seus próprios problemas técnicos no âmbito de uma cultura e de uma vida nacionais? 

A independência espiritual do Mundo de hoje cabe àqueles que melhor souberem equilibrar o tecnicismo, que dá os processos de resolver um peculiar problema, e a cultura humanística, que garante a valorização humana e a consciencialização social das soluções que o tecnicismo oferece. (...)

Claro que me dirão que, jogando pelo silêncio e pela concentração homeopática da livre expressão, se poupa tempo, se ganha sossego, se evitam discussões inúteis. Julgaria eu que só as pessoas que não pensam a toda a hora na "eternidade" da história e de determinados valores se deveriam preocupar com o tempo perdido em discussões tidas por estéreis. (...) À luz deste sossego, não há discussões que não sejam inúteis. À luz, porém, da cultura desta candeiazinha antiquada que vamos alimentando a pinguinhos de azeite extraídos do nosso sangue, só são inúteis e estéreis as discussões em que não se discute nada".

Jorge de Sena, "Porque acima de tudo...", in O Reino da Estupidez - 1.

(Foi uma das importantes figuras da 2ª metade do século XX, uma mais que um país de políticos esclarecidos dispensou. De 1956, altura destas palavras a hoje, muitos dirão que a realidade mudou, mas culturalmente somos, temos a possibilidade de intervir de construir? O discurso dos media, os comentadores alinhados ao discurso do poder, os círculos de influência que aí constroem, a incapacidade de pensar, o rótulo concedido entre nós e os outros, o discurso dos "velhos" que são oportunistas, dos que querem uma reforma, os dos que não fazem o favor de emigrar, a apologia do utilitário e a negação do valor das Humanidades são sinais evidentes como somos no âmago muito do mesmo. É contra esta tirania do absurdo que importa lutar, também no modo como votamos ou nos colocamos na indiferença).