terça-feira, 13 de maio de 2014

Da cultura...

"Por enquanto, parece-me razoável e prudente limitarmo-mos a falar na cultura "dos portugueses. Quanto a mim, a esmagadora maioria dos portugueses "não tem" aquilo que se designa por cultura. A cultura de um povo não é representada por arquivos que se não desbravam sistematicamente, por pomposas ou arrebicadas edições que ninguém lê, por livros em tiragens irrisórias, por museus que só escasas minorias vão visitando, por jornais que apenas poublicam os quase só publicam grosseiros cozinhados dos comentaristas internacionais. Nada disso é, nem nada disso representa cultura. (...)

A cultura não é ter lido tudo, como nem é não ter lido nada. É sim, "poder" ter lido e "poder" ter discutido, abertamente, quanto é essncial à vida humana e à vida nacional. Tudo o que não for assim concebido e assim não puder ser executado é a própria negação da cultura. Não se trata apenas de fazer participar os portugueses na vida portuguesa, questão fundamental. Trata-se de dar a todos a consciência de que lhes cabe participar nela plenamente. 

De que serve que haja ou se permita que haja ou se favoreça que haja técnicos distintos nos vários ramos, artistas de vaoor, escritores de mérito, se toda essa gente, pelos condicionalismos de intercâmbio nacional e internacional a que a cultura é sujeita, e da concentrada sujeição ao ganhar a vida em segurança, toda essa gente não vê para além da sua brilhantíssima sovela, e raro é o engenheiro, o médico, o jornalista, o escritor, capaz de enquadrar os seus próprios problemas técnicos no âmbito de uma cultura e de uma vida nacionais? 

A independência espiritual do Mundo de hoje cabe àqueles que melhor souberem equilibrar o tecnicismo, que dá os processos de resolver um peculiar problema, e a cultura humanística, que garante a valorização humana e a consciencialização social das soluções que o tecnicismo oferece. (...)

Claro que me dirão que, jogando pelo silêncio e pela concentração homeopática da livre expressão, se poupa tempo, se ganha sossego, se evitam discussões inúteis. Julgaria eu que só as pessoas que não pensam a toda a hora na "eternidade" da história e de determinados valores se deveriam preocupar com o tempo perdido em discussões tidas por estéreis. (...) À luz deste sossego, não há discussões que não sejam inúteis. À luz, porém, da cultura desta candeiazinha antiquada que vamos alimentando a pinguinhos de azeite extraídos do nosso sangue, só são inúteis e estéreis as discussões em que não se discute nada".

Jorge de Sena, "Porque acima de tudo...", in O Reino da Estupidez - 1.

(Foi uma das importantes figuras da 2ª metade do século XX, uma mais que um país de políticos esclarecidos dispensou. De 1956, altura destas palavras a hoje, muitos dirão que a realidade mudou, mas culturalmente somos, temos a possibilidade de intervir de construir? O discurso dos media, os comentadores alinhados ao discurso do poder, os círculos de influência que aí constroem, a incapacidade de pensar, o rótulo concedido entre nós e os outros, o discurso dos "velhos" que são oportunistas, dos que querem uma reforma, os dos que não fazem o favor de emigrar, a apologia do utilitário e a negação do valor das Humanidades são sinais evidentes como somos no âmago muito do mesmo. É contra esta tirania do absurdo que importa lutar, também no modo como votamos ou nos colocamos na indiferença).

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