segunda-feira, 10 de junho de 2013

A Casa Desmedida V

"Com o passar dos anos, os nossos serões iam mudando. Na adolescência, passei horas intermináveis na galeria do andar de cima a revistar os armários de livros.Lia de tudo mas sobretudo uns romances ultra-romanescos que tinham pertencido à juventude das minhas tias. Eram em francês, traduzidos do alemão, e passavam-se em castelos da Turíngia ou da Baviera e as heroínas tinham sempre uns cabelos, ora loiros, ora pretos, com maravilhosos penteados entrançados e com pérolas e diamantes, vestidos flutuantes paixões cheias de enredos, segredos e desentendimentos e deslizavam em longínquos espelhos cercados por enormes e profundas florestas sussurrantes.

Do alto da galeria olhávamos cá para baixo, para o grande quadrado do átrio quase sempre vazio todas as mesas e cadeiras e respetivas pessoas estavam distribuídas pelas galerias que o cercavam, cobertas pelo soalho das galerias do primeiro andar - onde eu procurava livros e me debruçava para ver o que se passava em baixo. No quadrado liso do átrio só se viam as longas tábuas e4nceradas do chão, as quatro colunas de mármore que suportavem nos cantos o peso das galerias, e, à frente de cada uma, os grandes pajens de bronze cujo braço direito erguia uma mtocha com campânulas de vidro baço em forma de chamas.

E além do despovoado o átrio não tinha propriamente teto, o seu espaço subia até ao cimo da casa apenas coberto pela enorme clarabóia de vidro do telhado que, durante o dia, derramava cá para baixo uma luz longínqua, espaçosa e pairante. Este quadrado desabitado no meio da casa tinha algo de teatro, de trágico, e terrível. Só às vezes as crianças o atravessavam - mas a correr. No entanto não havia nenhuma proibição explícita, nenhum medo consciente. Só uma espécie de acordo consciente.

Na minha adolescência algumas vezes - raríssimas - a meio da tarde - quando os membros da família saíam ou estavam retirados do seu quarto e o pessoal se entretinha na larga varanda das traseiras ou para os aldos da copa e da cozinha e quando a luz coada e cismadora da clarabóia convidava a todas as divagações - ousei atravessar o vazio e dançar sozinha no meio do átrio.

[Com a recuperação da casa Andersen, integrada no jardim Botânico do Porto, algumas transformações foram realizadas. A decoração na imagem relaciona-se com a exposição em 2010 sobre Darwin]


(Originais integrados na exposição da Biblioteca Nacional e disponíveis a todos a partir de 2016) 

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