sábado, 21 de abril de 2018

Leituras - As mães da Síria


Nenhuma estrela indicou a direcção.” (1)

A terra morre todos os dias. Toda esta terra morre todos os dias. Os anjos já se esqueceram da sua voz e não há pontos luminosos que contenham o corpo no recolhimento da sua materialidade. Não há lugares sagrados, as ruas perderam o seu caminho de rosas e todo espanto são as lágrimas de crianças, ou as asas quebradas de uma águia.

 A claridade abandonou as águas, os cedros são árvores queimadas e nem os peixes sabem como o vento inclina as águas, como os seixos se tornaram apenas pó preto. As avenidas de oliveiras, essa linha que ornamentava o Mediterrâneo de verde e fazia circular as searas, como campos a dobrar encostas. morreram em túmulos de guerra.

A terra morre todos os dias, as palmeiras já não entronizam Césares, o sal são apenas lágrimas em mãos vazias, todos os pássaros caíram em túmulos sem vento. Onde ficaram as mesas iluminadas de azeite, ou a oração do dia que enternecia as crianças e os antigos com as tardes compostas de folhas de laranjeira? Nas cidades das mil e uma noites, das romãs já não sobra nenhuma luz e só num distante além, os planetas ainda poderão ser uma comunhão com o esquecimento, com a morte das mães da Síria.

O que pode a História dizer de uma tragédia, ela que compõe a existência como um âmbar abstracto de esquecimento? A História alimenta-se de discursos, narrativas à beira de um tempo dividido, não tem fundamentos explicativos que separa o todo, o fundo do poder, da transitoridade da vida. A História não sabe explicar as lágrimas suspensas das crianças, como rios a encher asas de anjo, a adoemecê-los de tristeza. “O trágico é um estado preparatório da profecia.“, disse Walter Bemjamim, o que significa que é a alegoria, o poema, a linguagem da desarmonia a construir o sorriso desfeito, ou uma promessa sobre o instante.

O poema e a alegoria são as linhas desfeitas do que a linguagem não sabe explicar nos momentos finais, do corpo sem espaço, das lágrimas, sem vulto. A História faz registos, indica o número de crianças perdidas, fotografa a perda das mães, a ruína das casas, os campos quimados, mas não é capaz de fazer a geografia íntima da dor, do corpo, já sem linguagem, encostada às visões de profetas de esquina.

Apenas a alegoria e o poema permitem chegar ao ponto queimado das árvores, ao reduto da morte individual, como uma palavra do deserto, como um deus que já não é santificado. As mães da Síria é um largo poema sobre uma tragédia humana de um local, mas também de quaqluer local, pois toda a terra se tornou um fim esquecido. “A terra é toda a Síria / A Síria é toda a terra” (1), uma metáfora simbólica a renovar o sentido, a utilidade das palavras na alienada modernidade. 

Numa terra desolada, “onde o tempo terá dispensado todos os pássaros“, que linguagem pode explicar a destruição da vida, a individual perda de rostos a perderem as suas lágrimas em túmulos sem nome. A memória podia ser a conquista de um amor ausente, mas em todos os dias que se perdem estas vozes, apenas sabemos relatar, a historicidade do sofrível, a geografia do reconhecível que não sabemos exprimir e a nossa voz morre em segundos de inexprimível, como heróis irrelevantes.

O poema. É ele que conduz uma alegoria. É ele a esperança de qualquer luz, como aquela que se ateia “no rebordo de uma circunferência de giz”, uma esperança de anjos caídos. O poema desenha um particular e faz dele uma universalidade, ultrapassa a História por dentro, informando esta da substância dos pássaros mortos, em oliveiras incendiadas, da água que fez desaparecer os peixes. É o poema que nos diz que a História é feita de cultura e de barbárie, é essa a singular substância de uma civilização humana.

O poema descreve os sinais da fragilidade humana e sugere a esperança de um sentido. A linguagem surge-nos não como, a forma de nomear as coisas, mas no seu reduto mais ínfimo, o de salvar na memória, o sentido perdido e individual do que se foi, a breve esperança, “da flor de laranjeira”, ou a de “um jarrinho de azeite”, essas linhas e esses perfumes que iluminavam os caminhos do sal, um sentido do saber. É ainda uma esperança, mesmo com a geografia das aves morrendo calcinadas, em lágrimas de pó e sangue.
(1) – Isabel Aguiar. (2017). “VIII”, in As mães da Síria. Lisboa: Licorne.

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