quarta-feira, 4 de junho de 2014

Praça Tian'anmen - 25 anos de silêncio

Há 25 anos, Zhang Xianling, na ingenuidade de uma mãe, na crueldade de um regime, onde o silêncio e os bolsos vazios de decência dos que com o grande regime constroem a demência de uma civilização vazia. No silêncio dos novos modernos, dos que dormem convictamente ao som da cor dos seus ideais pré-históricos e dos que se regem pelos princípios do irregovogável, apenas dependente da próxima aquisição, do novo fato em costuras de imbecilidade.

 “Quando eu lhe disse para não sair de casa não fui muito convincente. Não acreditava que eles iam usar balas verdadeiras. Que ingénua”.

O filho ouviu a mãe, mas ignorou-a. Agarrou na máquina fotográfica, montou na bicicleta e pedalou até Tinanamen para tirar fotografias ao que se estava a passar. As tropas já estavam a chegar à praça de Pequim e Wang Nan, que tinha 19 anos, propunha-se registar tudo. “O meu filho tinha este ideal, um ideal nobre, que era preservar a verdade através da lente da sua câmara”. 

Estaria a preparar a objectiva, apontada aos soldados, quando uma bala lhe acertou na cabeça. Zhang diz que o Governo transformou uma mulher ingénua numa activista – ajudou a fundar o grupo Mães de Tiananmen e há 25 anos que a sua missão é responsabilizar o Partido Comunista da China pela morte do seu filho e dos de todas as outras mães, e impedir que o massacre do movimento pró-democracia da Primavera de 1989 caia no esquecimento.

“O que eles querem é que as pessoas não saibam o que se passou, que tudo seja esquecido. Mas nesta era em que a Internet está tão desenvolvida as mentiras não vão conseguir sepultar a verdade”, disse Zhang à AFP numa entrevista telefónica. Zhang já está habituada à rotina do 4 de Junho. Algumas semanas antes da data, polícias fardados e à paisana começam a vigiar-lhes os passos. Houve um ano em que decidiu ir ao lugar onde o filho morreu – ficou ali deitado durante horas, a esvair-se em sangue, porque os soldados não deixaram que fosse levado ao hospital, soube a mãe nas investigações que fez entretanto –, prestar-lhe homenagem. A polícia deteve-a e assegurou-se de que não repetiria a ousadia – há uma câmara em permanência apontada ao lugar, à espera que Zhang regresse ou que outra pessoa tente recordar o que ali aconteceu. 

Wang Nan acabaria confundido com um soldado e sepultado, antes de alguém perceber o engano. Alguns dias depois, Zhang, que quando ouviu os tiros pensou que era fogo-de-artifício – só quando viu gente ensanguentada a fugir debaixo da sua janela e o filho não voltou, no dia 4, se afligiu –, recebeu uma notificação para ir reconhecer o corpo. Na China, é proibido assinalar Tiananmen, seja de que forma for – um grupo de académicos, intelectuais e familiares de vítimas que, há umas semanas, realizou em privado um debate sobre o tema foi detido e interrogado. No final, um dos organizadores ficou preso.
Como outras mães e familiares, Zhang vai ao cemitério onde o filho está sepultado. 

A campa de Wang, como a de todos os que morreram na repressão de 4 de Junho – o número de vítimas nunca foi divulgado, terão sido centenas ou milhares –, tem polícias por perto. E polícias à paisana seguem os familiares das vítimas. Zhang já não se importa porque percebeu que sempre que a seguem, os homens do regime chamam a atenção sobre ela. “Sempre que o Governo segue os meus passos está a lembrar o que aconteceu”.
“Não é espantoso que o Estado se preocupe com uma velhinha como eu? Mostra o poder que nós temos, este grupo de idosos, porque representamos o que está certo e o Governo, sabendo disso, tem medo de nós”, disse Zhang, que tem 76 anos, à NPR, uma organização americana que produz conteúdos de rádio e televisão. Está vigiada de muitas maneiras: “Esta manhã recebi um telefonema da polícia e eles já sabiam que vocês [os jornalistas da NPR] vinham cá”.

O que aconteceu é recordado em privado, na maior parte das cidades da China. Hong Kong – que era um território governado pelo Reino Unido à época do massacre e é agora território chinês com uma administração especial – é a excepção. Na terça-feira, activistas pró-democracia lembraram os mortos, numa vigília. Nesta quarta, lembram as reivindicações do movimento de Tiananmen numa manifestação.

Na China continental, e em especial em Pequim, a segurança foi reforçada. A população já sabe que não deve aproximar-se da praça, os jornalistas estrangeiros receberam comunicados a lembrar que não deveriam ir até lá e os turistas chineses (por esta praça tem-se acesso à Cidade Proibida) foram revistados e os seus documentos inspeccionados.
Uma praça vazia no dia dos 25 anos da violenta repressão militar que acabou com a contestação ao regime.
“Não vás para a praça”, disse Zhang Xianling ao filho na noite terrível de 3 de Junho. “Ele respondeu: ‘Ok’”. E saiu. 

(Jornal Público, via Júlio Machado Vaz FB)

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