segunda-feira, 2 de junho de 2014

Leituras - Caderno I

 Ele é uma figura conhecida, o livro iniciou os seus cadernos de registos sobre o que o real lhe fez pensar. Escreveu romances que foram uns muito apreciados e outros mal recebidos em certas geografias mentais. A sua obra é no essencial a sua assinatura sobre o que foi, o que procurou ser e o que nos tentou mostrar como sendo o seu olhar. 

As palavras podem ser belas, interessantes, arrumadas nas narrativas que um escritor pensa nos dar. Como trabalho de ficção é uma atividade interessante, capaz de puxar pela nossa imaginação, dando-nos momentos agradáveis. A escrita em Saramago procura algo mais fundo, que é o que somos como humanidade, o que nos limita, que sonhos temos e que fundo nos modela. 

Acima das palavras, das emoções, do desenho ético e ideológico das ações, de que pedra somos feitos, que substância temos depois de retirada toda a gordura. A sua obra evoluiu entre o edifício das palavras e a arquitectura do cinzel que busca a essência interior do homem. José Saramago foi um escritor invulgar por diferentes motivos.Definiu uma escrita em moldes muito próprios, diversas vezes narrando como se o discurso fosse do nível oral e propusesse uma longa conversa. E denunciou uma crescente falta de humanidade de um mercantilismo destrutivo, cujos contornos se tornaram mais negros. Vale a pena recordar as suas palavras e os seus cadernos.

"(...) amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E porque haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las?

 E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. 
 
Ou talvez não tão ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra resposta". 

(1) - José Saramago, "86 anos", Caderno I

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