(João Aguiar deixou de nos encantar há já quatro anos, mais concretamente a três de Junho de 201o, guardando nós dele um discurso narrativo muito imaginativo nas formas e muito ligado à memória histórica. Quando um escritor
parte, a sua obra, as suas ideias, a sua morada eterna são as suas
palavras. Nele transpareceu sempre uma
imagem de príncipe das letras e o seu sucesso como recurso nas aulas de
História foi sempre a confirmação das suas qualidades, junto dos
adolescentes que mergulhavam no imaginário da construção de uma memória que se definiu em espaços e tempos concretos. Um excerto, de um dos seus livros, A Catedral Verde).
«Por estranho que pareça na minha idade, eu ainda tenho, por vezes,
alguns sonhos que não são pesadelos. O facto de os ter quando me encontro em
estado de vigília (refiro-me, evidentemente, aos sonhos bons ou neutros; os pesadelos,
esses, não escolhem estado) não prejudica a sua qualidade onírica nem o seu
absurdo. Por exemplo, sonho muitas vezes com um mundo onde os heróis podem
cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas
tépidas, que antes de caírem não colheram na atmosfera os vómitos gasosos das
chaminés da indústria. Um mundo, por falar em indústria, onde só são possíveis as actividades
económicas que, independentemente dos discursos e da publicidade, sirvam para
manter e fortalecer a vida, não para a destruir.
(Estou a falar de sonhos, insisto. Ainda assim: será grave, na minha
idade?)
Um mundo onde a magia é real e não uma habilidade de palco e repousa
nas mãos de sábios compadecidos. Eu sonho, e julgo que sempre sonhei, com um
mundo, não perfeito, mas onde a perfeição pode ser apercebida. E onde as
orações não se dissolvem no ar como se nada mais fossem que palavras. Eu sonho
como se fosse um rapazinho cuja voz ainda não sofreu a mudança da adolescência.E, quando regresso do sonho, o rapazinho desaparece e a minha voz está
rouca de tabaco. De tabaco e, hoje, de chuva. Chuva. É o dilúvio absoluto,
daqueles que abrem torrentes de lama e fazem cascatas de água suja e enchem a
transbordar as sarjetas entupidas e trazem à rua os bombeiros para agravar os
engarrafamentos.
A cidade jaz abafada em chuva e em cinzento, nem os anúncios luminosos
conseguem dar-lhe (emprestar-lhe, digamos) um pouco de cor. Detesto o tempo de
chuva na cidade.
As cidades deviam ter microclimas secos: choveria o estritamente
necessário para lavar o ar, lubrificar as sarjetas e ajudar a rega das zonas
verdes, nada mais. No campo é muito diferente. Em Vale de Monges, sou capaz de
ficar tempos esquecidos a ver chover. Aí, a chuva oferece-me dias diferentes dos
outros, com uma beleza diferente e muito sua, sons e perfumes muito seus. Por
que raio não estou eu em Vale de Monges, por que raio estou eu aqui? A cidade, repito-me, jaz cinzenta, aos meus pés. Mas isto não quer
dizer que eu a domine; (...)
Suponho que a vista é bonita em dias de sol. Porém, hoje não há nada
que resgate esta imensidão de cinzento e de cimento. E se me debruçasse um
pouco, o que não faço, veria o rio estagnado de carros imobilizados na rua, sem
esperança de libertação próxima. Como não me debruço, porque está a chover mas
também porque não gosto de olhar para baixo, a pique, só ouço a cacofonia
impotente das buzinas, que se junta ao ruído um pouco mais discreto das gotas
de chuva a martelar o vidro. Não é o mesmo som da chuva em Vale de Monges; esse
é fresco e como que rendilhado, enquanto este é furioso e cheira, se é que um
som pode cheirar., a engarrafamento e frustração.(...)
Retomo o lugar que ocupava, em sua frente. - Desculpe. Já não sei o que
estava a dizer. Ela sorri. - Não estava a dizer nada, porque eu ainda não tinha
feito uma nova pergunta, que aliás vai ser a última, já tenho material que chegue.
O que faz, neste momento? Vai sair em breve um novo livro?
A minha cara, sei-o há muito, é o reflexo fiel do meu pensamento, o que
significa: trai-me constantemente. É o que sucede agora, porque a rapariga
acrescenta logo a seguir: - Bem sei, há-de estar farto de ouvir isto, é a
pergunta estafada que toda a gente lhe faz. Mas ao mesmo tempo é inevitável,
não acha? Pelo contrário, é perfeitamente evitável, penso eu, enquanto, com
grande sinceridade, respondo que me encontro parado, à espera de uma ideia. Não
falo, porque não vale a pena, da discreta angústia que essa espera me causa».
João
Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano). Porto: Asa Editores.
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