quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um bom ano

   Um bom ano de 2015 com as cores possíveis e imaginadas por cada um de nós!


Leituras - A cidade de Ulisses

   "Um motivo, portanto, pessoal. 
  Como sabe, é provavelmente sempre assim que surgem as obras de arte: a partir de motivações pessoais, em geral egoístas, para prazer do criador, para que ele possa exercer o seu domínio sobre o real, forçando-o a moldar-se ao seu desejo.
   Sorrio portanto e vejo-o sorrir também a si, a o escrever estas linhas. As pessoas entram nas salas de exposição e vêem coisas na aparência objectivas. Mas os criadores estão dentro delas, inteiros, vida, corpo, alma, tudo - embora sob camuflagem. Expor-se é também esconder-se. E também no disfarce os criadores são mestres, como é aliás do seu conhecimento. 
   Não irei portanto expor-me. Os artistas expõem, mas não se expõem. Fingem sempre".

Leituras - Stoner

“Na biblioteca da universidade vagueava por entre as estantes, por entre os milhares de livros, inspirando o odor bafiento a couro, tecido e papel ressequidos como se fosse um exótico incenso. Por vezes parava, tirava um volume de uma prateleira e segurava-o um instante com as suas mão grandes, que eram tomadas por um formigueiro perante essa sensação ainda nova da lombada, de capa cartonada e das folhas de papel que se lhe ofereciam sem resistência. Depois, folheava o livro, lendo um parágrafo aqui e ali, os seus dedos hirtos virando as páginas cuidadosamente, com medo de, desajeitadas, rasgarem e destruírem aquilo que tinham descoberto com tanto esforço.” (Pág. 18);

“Por vezes, imerso nos seus livros, tomava consciência de tudo o que não sabia, que não lera, e a serenidade à qual aspirava estilhaçava-se, quando percebia o pouco tempo de que dispunha na vida para ler tanta coisa, para aprender o que queria.” (Pág. 28);

“Esse amor à literatura, à língua, aos mistérios da mente e do coração que se revelavam nas ínfimas, estranhas e inesperadas combinações de letras e palavras, na tinta mais negra e fria… esse amor que escondera como se fosse ilícito e perigoso começou ele então a mostrar, hesitantemente a princípio e depois com ousadia e, por fim, com orgulho.” (Pág. 104).

Publicado em 1964, passou despercebido até uma editora francesa o reeditar nos anos oitenta e termos tido acesso a um grande, imenso livro. Um homem calado, trabalhador agrícola,vivendo no mais passivo dos mundos, entre tarefas rurais programadas, descobre o fascínio pela Filosofia e sobretudo pela Literatura. Na verdade a uNiversidade fez nascer um homem para as palavras, para os seus significados, numa vida familiar vazia e triste. É no estudo dos clássicos, que vê uma oportunidade de ser alguém diferente, um professor de Literatura, um entusiasma pelas palavras, pelo que medem no mundo. No seu gabinete redime-se e encontra a felicidade.

Stoner é sobre o nascimento de um homem, alguém que descobre um sentido humano, mesmo na infelicidade conjugal, e nos livros encontra um refúgio. Magnificamente escrito, de uma certa tristeza pungente alberga as fontes por onde descobre o seu caminho. É um livro fascinante sobre o peso das Palavras, esse universo de mundos distantes e próximos que nos faz renascer em novas possibilidades. Um grande livro.

Leituras - Um dia esta dor vai ser útil

"Sê paciente e resistente; um dia, esta dor ser-te-á-util"
 (Ovídeo)

"Quando se deseja com todo o coração que alguém nos ame, nasce uma loucura tal que deixa as árvores, as águas e a terra desprovidas de sentido. Nada vive excepto nós, excepto aquele longo, profundo e amargo desejo. É isto que toda a gente sente, desde que nasce até que morre".

Denton Welch, Diário, 8 de Maio de 1944, 11h 15 da noite

"Quem me dera que todo o dia fosse como o pequeno-almoço, quando as pessoas ainda estão ligadas aos seus sonhos, concentradas no interior e sem estarem ainda prontas para se relacionarem com o mundo que as rodeia. Apercebi-me de que era assim que eu era durante todo o dia; para mim, ao contrário de outras pessoas, não há um momento a seguir a uma chávena de café, a um duche ou a qualquer outra coisa, no qual me sinta subitamente vivo e um pequeno-almoço, ia dar-me bem." (pag. 116)

"A maior parte das pessoas acha que as coisas não são reais a não ser que sejam verbalizadas, que é a pronunciação de alguma coisa, e não o pensamento, que a legitima. Acho que deve ser por isso que as pessoas querem sempre que as outras digam que as amam. Eu penso exactamente o oposto - que os pensamentos são mais reais quando são apenas pensados, que exprimi-los os distorce e os dilui, que é melhor para eles ficarem no compartimento escuro e climatizado da nossa mente, que se forem libertados para o ar e para a luz serão afectados de um modo que os altera, como as películas de filme expostos acidentalmente." (pág. 184)

Os jornais do mundo anglo-saxónico deram-lhe a adjectivação "Um dos melhores romances de sempre" (o que sendo  um exagero) revela de algum modo as questões que o livro do americano Peter Cameron. A ideia base do livro é que existem pessoas que têm pelo seu nascimento e crescimento, pelas suas descobertas, muitas dúvidas, de como se integrar o Mundo. E a decisiva questão se por aqui se coloca, é se demos estar o mais silenciosamente possível neste universo social, feito de normas sociais e de comportamentos pouco éticos. É uma viagem que fazemos com James, pois também nos vemos nós nessa posição, sobretudo, os que por diferentes motivos consideram o Mundo um lugar pouco recomendável.

É um livro também sobre as famílias americanas no pós 11 de Setembro, uma certa disfunção nas emoções, a preocupação pela imagem, a cidade como devoradora dos sonhos iniciais de tantas pessoas que a viram como a construção do seu universo mais sentido. É um livro que nos remete para a dimensão do que pensamos e das oportunidades que temos para as fazer ouvir, num mundo individual, sempre mais verdadeiro que as maiorias de circunstância. Um dia esta dor vai ser útil é uma narrativa sensível e de inteligência sobre as contradições de uma sociedade de massas. É em definitivo um grande livro para nos interrogarmos e darmos alicerces a esse caminho, por onde a solidão nos faz questionar a nossa existência.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Leituras - Uma vida sem princípios

"Se alguém tiver o hábito de passear nos bosques metade dos seus dias, porque gosta deles,  corre logo o risco de ser considerado como um vagabundo; mas, se passar todos os seus dias como especulador, arrasando os bosques e tornando a terra baldia antes do seu tempo, será louvado como um cidadão empreendedor e habilidoso. (...) 

"Que sentido tem o termos nascido livres se não vivermos livres? Qual é o valor de qualquer liberdade política, a não ser o de fazer possível a liberdade moral? Afinal, de que é que nós nos orgulhamos? Será que nos vangloriamos de ter liberdade para sermos escravos, ou de termos liberdade, para sermos livres?" (págs. 30 e 54).

Henry David Thoreau é um dos nomes essenciais da cultura americana dos séculos XIX e XX, o que quer dizer da nossa própria vivência de contemporaneidade. Thoreau conduziu a sua breve vida pela procura no real do que de mais belo ela nos pode fazer descobrir. A beleza das coisas simples. 

Thoreau percebeu antes de todos os movimentos ecologistas que a vida em sociedade, encostada a chavões de economia, sem real valor pelo que mais significado dá ao seu quotidiano, como ser detentor de uma liberdade moral, deveria encontrar no Universo esse diálogo com o mais interior, a beleza suprema. Não é possível falar de qualquer movimento de luta pelos direitos de minorias, ou de direitos civis, sem pensar na obra de Thoreau. Não é possível abordar os fundamentos dos movimentos não violentos, contra as diferentes tiranias do século XX sem pensar em Thoreau.

A palavra como conceito foi arrastada para significados impróprios, mas o que cada um é no seu melhor, em contraposição contra o Estado dominador precisa de cultivar e com isso contribuir para a comunidade, é justamente a ideia de individualidade. É com ela que Thoreau se debruçou sobre a poesia, a escrita científica, cultivando um inconformismo, nem sempre compreendido, mas absolutamente revolucionário. 

Thoreau ensinou-nos, acima das ideologias e das crenças políticas, que esta é uma área onde encontramos o superficial e inumano com relativa frequência, tendo num tempo de jornais e media sem a dimensão actual, percebido que neles pode morar formas ocultas de governo. E por isso também de focos ilegítimos de poderes económicos, sem legitimação democrática. 

Thoreau falou em textos diversos, para os colocados à margem, para os que olhando para os que lutam arduamente em espelhos  ocasionais, puros de enfermidade, onde a rara decência é tão difícil de encontrar. Uma vida sem princípios, é tal como Walden, ou A vida nos bosques, ou A desobediência civil obras de referência absoluta, sobretudo em tempos de decadência moral profunda.

Leituras - Histórias falsas

Disse-o Santo Agostinho: "O que mais interessa não é o que sofre, mas como o sofre cada um." Dos filósofos, mais do que dos homens comuns, esperamos um sofrimento distinto; sofrer com a calma e intensidade justas e atingir o sublime por essa via, é isto que se exige aos filósofos. Mas de ideias o mundo encheu-se rapidamente; enquanto de santos não. O seu aparecimento é bem mais lento: pedra preciosa.

De Zenão conheciam-se já as ideias: era o Negador das Coisas Evidentes. Dizia e repetia: o espaço não existe, o tempo não existe, o movimento não existe. O mundo inteiro tinha para Zenão o mesmo som: se os nossos ouvidos são incapazes de escutar a unidade não culpemos o Músico, o Grande Músico, não o julguemos inexistente, culpemos, sim, os ouvidos, a degradação terrestre dos órgãos que nos foram oferecidos.

O problema foi então um: negar a realidade é negar também as hierarquias. É negar o escravo e negar o rei. Se com este raciocínio, o primeiro pode entusiasmar-se, o segundo, esse, pode não perdoar. Assim foi: o tirano ouviu e não gostou. Zenão negava o seu poder?

É preciso que admita publicamente o seu erro, ou então que não mais o possa cometer, forma exacta de afirmar: então que morra! Porém como o poeta, Zenão, perante o poder tinha um lema: "Resistir muito, obedecer pouco." Lema tanto audaz quanto perigoso. É que aos tiranos podemos dividi-los em duas espécies: os que admiram mais a audácia do que a temem, e os outros. Em definitivo: o tirano que se cruzou com a vida de Zenão era dos outros. (...)

O que se disse de um povo poderia dizer-se assim de Zenão: o que ele deve ter sofrido para conseguir ser tão sábio. Pelas ideias, durante a vida, tornara-se filósofo. Pela resistência à dor, próximo da morte, tornara-se um quase-deus; um sábio. Antes de terminar uma última nota. Que não se confunda: esta não é a biografia de Zenão, mas sim a biografia do tirano responsável pela sua tortura e, por fim, pela sua morte. O nome? Que importa? Todos os tiranos têm o mesmo nome. (pág. 

Gonçalo M. Tavares, "A  história dos tiranos". Histórias Falsas. Caminho. 2014.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Leituras - Cartas a uma jovem amiga

Somos, a maioria de nós, criaturas inconstantes, de humores opostos. Poucos são os que escapam a isso. Para alguns, a causa é física, para outros, é uma condição mental. Gostamos da instabilidade emocional, pensamos que o movimento dos estados de espírito faz parte da existência; mudamos facilmente de um estado para o outro. Mas há poucos seres que não sejam apanhados nesse movimento, que estejam libertos da luta para "vir a ser"; neles há uma estabilidade interior não gerada pela vontade, uma firmeza que não é cultivada, que não tem a ver com um interesse pessoal nem é produto de nenhuma dessas actividades. Essa liberdade acontece quando a acção da vontade cessa.

O dinheiro destrói as pessoas. Há uma arrogância própria dos ricos. Com poucas excepções, em todos os países os ricos mostram essa peculiar imagem de se sentirem com poder para alterar o que quer que seja, até os deuses, podem até comprar os seus deuses. Riquezas não são apenas as materiais mas também as que vêm da possibilidade de se fazerem coisas. Essa possibilidade dá ao homem um falso sentido de liberdade. Ele sente que está acima dos outros homens, que é diferente. Tudo isso lhe transmite um sentido de superioridade; ele distancia-se e olha de longe o mal-estar dos outros; ele não se apercebe da sua própria ignorância, da escuridão da sua mente.

Dinheiro e possibilidade oferecem um óptimo escape para se fugir dessa escuridão. Afinal, a fuga é uma forma de resistência, que alimenta os seus próprios problemas. A vida é uma coisa estranha. Feliz, o homem que é nada. (págs. 34-35)

(Krishnamurti foi um desses homens raros que os tempos passados deram na Índia a formulação de um misticismo que sempre nos fascina. Companheiro de algumas das iniciativas de Gandhi, formulou para estes tempos de cegueira o essencial, a criação por cada um de nós de uma realidade paralela à que já existe. Num tempo de gestação de pessoas de excelência, de formatação econométrica, em escolas de desigualdade, o velho misticismo indiano ainda nos responde, que o egocentrismo, o consumismo, a procura da glória vã, como um dos pilares da infelicidade humana).