quinta-feira, 8 de junho de 2017

O Homem como cinema (II)

É a descrição do substituto quotidiano do paraíso que Edgar Morin nos fala no seu livro, O Cinema: o homem imaginário.  O seu livro não é apenas a meditação sociológica mais subtil sobre "o homem como cinema" que nos foi dado ler, como a primeira grande tentativa de uma ontologia específica do Cinema. (...)
esta meditação vai de resto ao encontro de muitas análises e observações agudíssimas sobre a realidade fílmica levada a cabo por exemplo por José Augusto-França. O seu Charlot (1) é a mais séria e a única profundamente atenta às implicações mitológicas de um universo do cinema que existe em língua portuguesa e indirectamente um escalão no caminho que conduz até à obra de Edgar Morin.

O autor das Stars repensa a realidade humana implicada no factor Cinema, na sua totalidade, tomando-a a sério, não por simples moda nem por desejo de concorrer com esteas universitários célebres, mas por uma meditada vivência das revelações profundas sobre o comportamento de toda uma época e da imaginação humana em geral que o estudo de  homo cinematograficus é capaz de nos fornecer.

Livros como o de Edgar Morin são os únicos que podem acabar com a "doença infantil da reflexão cinematográfica" em que têm nadado nos últimos anos gerações de entusiastas. A discussão de "cienma", mormente a dos "cine-clubes", tornou-se no mundo inteiro o refúgio de um fácil conhecimento verbal, a ocasião única oferecida a falhados de toda a espécie para participar com pouco suor em logomaquias intermináveis.
Como no tonel das Danaides a realidade fílmica  é "dobrada" por um autêntico vazio, o dissolvente supremo que é essa tentativa universal de devorar um texto límpido por uma meditação abusiva e vã, cujo único fim parece ser apenas o de destruir "o filme" para deixar em seu lugar o mútuo fervor daqueles para quem todo o espectáculo é pretexto para se darem em espectáculo.

O cúmulo desse autêntico ritual da impotência é a dissolução praticada pelos "iniciados" em ideologias famosas, a tal ponto drogados que os seus "críticos" mais não são que o resplendor alucinado ou a ressaca triste do olhar pervertido que oferecem a todos a matéria cinematográfica. A bem dizer já não vêm os filmes, sobrepõem à visão o delírio que os distingue do espectador ingénuo e, sem o saber, eles que se dão como os íntimos do novo deus são os seus ateus perfeitos. Esses desmistificadores, ou que como tal se imaginam, são os mistificadores supremos. E sem remédio pois se julgam ao abrigo de toda a mistificação.

A análise de Edgar Morin antepõe aos fáceis juízos abstractos uma adesão à magia original que a realidade fílmica significa. É de dentro de uma fascinação essencial ao Cinema que ele nos fala e, por isso, reconhecemos na sua análise a voz adequada à vivência mas típica do homem contemporâneo. A ideia central de Edgar Morin não consiste em expressar, segundo um método que participa ao mesmo das investigações fenomenológicas e da dialéctica, a aparência banal dessa fascinação cuja existência se confunde com o Cinema mesmo.

A ela dedica Morin, na peugada de outros, excelentes comentários. mas é o mecanismo dessa fascinação que lhe interessa. Uma reflexão sobre os avatares desse fascínio, desde o extáctico da velha fotografia ao dinamismo do cinema, leva-nos à essência desse mecanismo do fascínio. E o paradoxo supremo aparece: a fascinação mesma do Cinema reside no fantástico da realidade quotidiana. O Cinema leva ao paroxismo a fascinação arcaica do duplo, o incrível desdobramento da indesdobrável. Realidade que faz dela, enfim, uma coisa possuída, um sonho acordado.

O "cinema " que desde sempre nós transportámos connosco, a fabulosa fonte de exaltação e terror e deslumbramento que cada qual explora em silêncio, ei-la participada por todos, tornada essa aventura da sala escura, esse êxtase comum. Através dele reencontramos a comunidade há muito fragmentada. Assim, o anel mágico da participação arcaica apagada pela nossa existência civilizada e o anel mágico da participação passa em silêncio de mão em mão. Que maior triunfo que a "sala escura" fascinada pela luz divina da imaginação?

O Cinema é o nosso teatro de sombras chinesas sem verdadeira origem, mais um desses deuses que no século XVIII veio do oriente para encantar a nossa perpétua infância. Um texto de um aficionado barcelonês dos teatrinhos de sombras por certo contaria Edgar Morin. Toda a mitologia que ele...

(1) José Augusto-França, Charlie Chaplin, o 'self-made-myth',1954, Lisboa, edições Inquérito
Eduardo Lourenço, "O Homem como Cinema", in Jornal de Letras, 23.11.2016

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