quarta-feira, 7 de junho de 2017

A melodia das coisas (I)

I
Não estamos mesmo antes no princípio, vê tu.
Como antes de tudo. Com
Mil e um sonhos atrás de nós e 
sem acto

II
Não consigo imaginar conhecimento mais ditoso
do que este:
que temos de tornar-nos iniciadores.
Alguém que escreve a primeira palavra a seguir a um
travessão
secular.

III
Ocorre-me isto: nesta observação: que nós continuamos sempre a pintar as pessoas sobre um fundo dourado, como os Primitivos italianos. Elas erguem-se diante de algo indeterminado. às vezes dourado, às vezes também cinzento. à luz, por vezes, e frequentemente com uma escuridão insondável atrás delas.

IV
Isto compreende-se. para reconhecer as pessoas, foi preciso isolá-las. mas depois de uma longa experiência é sensato pôr de novo em relação as contemplações isoladas e acompanhar os seus gestos mais amplos com um olhar amadurecido.

V
Compara uma pintura sobre fundo dourado do Trecento com uma das inúmeras composições mais tardias dos antigos mestres italianos, onde as figuras se reúnem numa Santa Conversazione diante da paisagem luminosa no ar límpido da Umbria. O fundo dourado isola cada uma dessas figuras, a paisagem resplandece atrás delas, como uma alma comum, da qual extraem o seu sorriso e o seu amor.

Notas sobre a melodia das coisas / Rainer Maria Rilke ; trad. Ana Falcão Bastos. - [Lisboa] : Licorne. 2012. - [22] p. ; 21 cm. - Tít. orig.: Notizen zur Melodie der Dinge. - ISBN 978-972-8661-79-3

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