sexta-feira, 17 de março de 2017

Na memória de Raul Brandão (IV)

O mar está espelhado e o céu tão espelhado como o mar, com brancuras de algodão, e nuvens meio adormecidas, orladas de cinzento. Tudo tão branco e parado que parece que o tempo suspendeu a sua marcha. Olho o mar, com rastejados de caracol e pedaços brancos iluminados por dentro. Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, São Jorge, estiraçada a todo o comprimento. Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente - o Corvo, as Flores, Faial, o Pico, o Pico, São Jorge, São Jorge, a Terceira e a Graciosa...

Cada vez me seduz mais pela estrada fora um campo de milho sachado e arrendado com as hastes direitas e verdes e o quadrinho vulgar das hortas, pela cor de satisfação dos legumes, pelo fio de água reluzindo em conversa com as couves, como se sentisse o benefício que lhes presta: a água parece inteligente e piedosa, e a vinha e o souto, neste grande deserto, entre a pedra devorada, representam o triunfo do homem sobre as forças brutas da natureza. (...)

Sentei-me num quintalório com japoneiras envernizadas de fresco e do tamanho de árvores, num terraço muito alto sobre o mar, e sobre o mundo. Aí fiquei horas esquecidas, envolto em poeira azul, absorto no mar cheio de reflexos de oiro, em São Jorge estendido ao sol, doirado e longínquo, cheio de crateras inofensivas e roxas, abrindo as bocas diante de mim, com um pouco de azul lá dentro. (...)

Produto de um parto monstruoso, a ilha foi devorada até ao ponto de fundir. É a dor. É a dor do mundo exposta a nossos olhos, imobilizada diante de nossos olhos - a dor descarnada e solitária, muda e trágica, sem um véu, sem um farrapo, sem um grito. Só dor. (...)

Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido. Tudo se despenha em catadupas de pó negro, ou fundido dum só jacto nas pareces lisas e azuladas, negras com arabescos mais escuros que parecem caracteres indecifráveis - petrificadas em cores mais ricas, dum negro cor de sangue, fundidas e entranhando-se umas nas outras até chegarem ao fundo cinzento. Um abismo - um tropel - um campo de destroços. E sobre o caos cinzento.
E isto não nos larga. Chega a impor-se a nossos olhos e fascina-nos a ossatura despida de toda a carne, não pela impressão de monstruoso ou de atormentado, mas pela beleza intelectual, pela beleza superior e grave que é a das almas.

É aqui que a luz dos Açores atinge talvez a perfeição. Nada que a distraia - só mesmo o tom no vasto quadro feito com a mesma cor, variada até ao infinito em nuances delicadas. Sobre o cinzento do mistério paira o cinzento absorto do céu - sobre a pedraria escorre o cinzento das nuvens. Ao longe o paredão imenso realça a severidade do panorama excepcional. (...)
O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais que uma ilha - é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo - é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.
Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim, negro, negro e dramático, roído de cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia...

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 95, 107 e 110; Imagens - Ilha do Pico. Açores; Copyright - Andres Rueda

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