O
tempo suspenso, o instante representado, a individualidade nos gestos,
um momento de contemplação e a pintura minuciosa. Uma pintura que alguns
têm chamado pintura de género e que é uma representação descritiva de
algo que se oferece no tempo do instante, mas também a nós. O contorno
destas figuras, a materialidade absorvida na luz dá-nos um modelo
interior que é uma representação particular, mas também uma alusão e
pessoas e de espaços de um tempo.
Figuras
que são uma evocação, mas também definem uma invisibilidade, pois elas
narram emoções vividas no silêncio. Um silêncio que transcende a tela, e
que compõe toda a pintura para um exercício do olhar. Especialmente com
Vermeer, nota-se uma linha que conduz o quadro a quem olha, um
esforço para que cada um de nós entre nesses instantes, rompendo o tempo
suspenso em muitos outros.
Os dois primeiros quadros de Vermeer,
Diana e as suas companheiras, de 1654 e O Cristo com Marta e Maria, de
1655 são dois quadros de abertura da sua obra que não serão
representativos no conjunto da sua produção artística. Os dois dois
quadros apresentam um outro Vermeer, não só pelas temáticas, mas
também pelas cores, dominadas pelos tons quentes. Essa pintura não daria
a relevância que a restante da sua obra lhe daria. Na pintura religiosa
ou mitológica o seu nível de representação parece ficar aquém dos
mestres desse século, Rembrandt, Velásquez ou Rubens. Vermeer descobriu um modo de superar essa dimensão dos mestres.
Vermeer
tornou-se um pintor importante numa representação diferente desses
mestres e que ele ensaiou, desde o seu 3º quadro, A Alcoviteira, de
1656. É a respiração da vida, os quadros de uma vida quotidiana sem
representação teatral, "esse silêncio antes do silêncio" (1) que lhe vai
permitir deixar o seu nome na história da pintura ocidental. Na
composição humana dos seus quadros, o espaço encolhe, não tem as
dimensões simbólicas da iconografia mitológica, aparecendo figuras,
objetos que obtêm uma dimensão de alquimia.
Alquimia
que se constrói de um conjunto de intuições representadas, de uma
dimensão concisa e onde emerge todo o enigma do privado, do instante, da
vida em si mesma. Vermeer dá-nos na sua pintura uma nostalgia e uma
alegria, essa ideia de tempo que poderíamos conciliar na expressão, "os
belos dias". Marcel Proust diria da pintura de Vermeer que ela era o que
ele ambicionava para o seu À procura do tempo perdido, a descrição dos
paraísos que se volatilizam na claridade do dia. A pintura de Vermeer é a
procura pelo registo de uma medição, uma pulsão de vida que emerge
dessa claridade.
Dessa
claridade, onde nascem as histórias, as nossas, ausentes da santidade
dos deuses do Olimpo e que se enebria da vida. Dela, onde descobrimos
uma participação numa descoberta, a dos "bens do mundo" por nós
construído. O grande alcance da pintura de Vermeer é ter feito dos seus
quadros, o registo de uma Holanda do século XVII e lhe ter dotado de uma
transcendência, a que repousa nos instantes e nas coisas nomeadas. A
transfiguração dos episódios mais banais em algo supremo dá-nos o valor
poético e nostálgico de um fazer humano, onde queremos entrar com o
nosso olhar.
(1) - Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017.
Imagem - Vermeer, O soldado e a jovem risonha, 1658, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
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