terça-feira, 21 de março de 2017

Leituras - A desumanização (II)

Foram-me dizer que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a  chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.
     Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (...)
     E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma árvore rara para o nosso canto abandonado nos fiordes. Podia ser que desse flor. Que desse fruto. (...)
     Achei que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser ao acaso. Pensei que a morte era feita ao acaso. (...)
     Nos meus sonhos imaginava jardins de crianças. As árvores baixas dos corpos, falando, brincando com os braços e os pássaros pousando entre as folhas. Os braços deitavam folhas e seguravam ninhos nas mãos e as crianças eram sempre pequenas, animadas de ingenuidade, gratas pela vida sem saberem outra coisa que não a vida. E sonhava que as pessoas japonesas vinham ao jardim contemplar, e deitavam água de regadores coloridos que lavavam os pés-raízes das crianças-bonsai. 



Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfémia, como qualquer ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza infinita de deus, da Islândia ou da morte. Somos imprudentes ao arriscar conversar acerca destas coisas, confessava eu. Descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém. Deve dar-nos medo a necessidade de o entender. Deve dar-nos medo a necessidade de entender deus. Ele é o desconhecido, se por ventura se der a conhecer então é uma falsidade. (...)
    O meu pai também dizia que a Islândia era deus e era a beleza de deus. (...) Talvez não entendamos o que é belo neste preciso momento. Podemos estar absolutamente enganados acerca de tudo quanto gostamos.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 11, 37 e 41.

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