segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Uma carta de cidadania

Os descrentes comentadores que inundam os media, sábios sem conhecimento falam em minutos sucessivos de fundamentalismo da incapacidade das humanidades em servirem para algo mais que desviar o País do seu presente brilhante. Estamos habituados à coerência que figuras brilhantes como os Loureço e os Ferreira deste país exclamem como a História é uma usura de impossibilidades, uma ocupação de inúteis e diletantes. São acompanhados pelos iluminados que do campo partidário apenas vêem números e interesses particulares, os do seu espectro político, raramente a realidade.

O Infante D.Pedro escreveu da cidade de Brugge, em 1427 uma carta em que fazia recomendações sobre a gestão política do Reino. É a famosa carta de Brugge que muitos deviam conhecer, pois os ocupantes de cargos políticos, mesmo os que estão privados de legitimidade de representação jamais compreenderão, acima da realidade que elegeram como o seu único modo de compreender o mundo.

O Infante D. Pedro não é uma figura muito prestigiada, pois a Historiografia do pequeno episódio que tanto sucesso fez pela televisão e em muitas enciclopédias preferiram sempre os contos de fadas dos que ergueram palácios e cortesãos ao serviço da Corte de privilégios. D. Pedro morreu em Alfarrobeira, numa batalha perdida à partida e em que deixou a sua lealdade aos princípios de fazer coexistir uma coerência nacional de ligação entre a nobreza aristocrática e a burguesia urbana. 

Vale a pena ler uma carta em que se recomenda ao rei a aliança entre o poder e a sabedoria, numa única unidade, em que se critica a ignorância da administração do estado. Uma carta que revela o valor da cultura como forma de iluminar as acções do homem. Muitos papagaios do poder oficial ainda ainda aqui não chegaram. São os fantasmas de um presente de medo que importa combater com os exemplos do passado. Eis um que explicita a ideia do Poder como forma de alcançar a felicidade dos homens, e não um fim que se basta a si próprio. Uma carta em que denuncia como os interesses privados anulam o bem geral do Reino. Vale a pena lê-la.

O governo do Estado deve basear-se nas quatro virtudes cardeais e, sob esse ponto de vista, a situação de Portugal não é satisfatória. A força reside em parte na população; é pois preciso evitar o despovoamento, diminuindo os tributos que pesam sobre o povo. Impõem-se medidas que travem a diminuição do número de cavalos e de armas. 
É preciso assegurar um salário fixo e decente aos coudéis, a fim de se evitarem os abusos que eles cometem para assegurar a sua subsistência. 

É necessário igualmente diminuir o número de dias de trabalho gratuito que o povo tem de assegurar, e agir de tal forma que o reino se abasteça suficientemente de víveres e de armas; uma viagem de inspeção, atenta a estes aspectos, deveria na realidade fazer-se de dois em dois anos.

A justiça só parece reinar em Portugal no coração do Rei [D. João I] e de D. Duarte; e dá ideia que de lá não sai, porque se assim não fosse aqueles que têm por encargo administrá-la comportar-se-iam mais honestamente. A justiça deve dar a cada qual aquilo que lhe é devido, e dar-lho sem delonga. É principalmente deste último ponto de vista que as coisas deixam a desejar: o grande mal está na lentidão da justiça. Quanto à temperança, devemos confiar sobretudo na acção do clero, mas ele [o Infante D. Pedro] tem a impressão de que a situação em Portugal é melhor do que a dos países estrangeiros que visitou. (...) 
Enfim, um dos erros que lesam a prudência é o número exagerado das pessoas que fazem parte da casa do Rei e da dos príncipes. 

De onde decorrem as despesas exageradas que recaem sobre o povo, sob a forma de impostos e de requisições de animais. 
Acresce que toda a gente ambiciona viver na Corte, sem outra forma de ofício.

Carta enviada de Brugge, pelo Infante D. Pedro ao irmão D. Duarte, em 1427. Resumo, a partir do estudo de Robert Ricard, «L’Infant D. Pedro de Portugal et “O Livro da Virtuosa Bemfeitoria”», in Bulletin des Études Portugaises, do Institut Français au Portugal, Nova série, tomo XVII, 1953, pp. 10-11.

                       Imagem - Brugge no século XIII - Nieuwsbronnen 

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