sábado, 19 de abril de 2014

Progoms de Lisboa

"Ontem , por volta do meio-dia, bateram à porta aqui na nossa casa e fui ver quem era. (...). Num tom hesitante,entrecortado, perguntou em português: « Acaso tenho a honra de falar com Mestre Berequias Zarco?»
- Assim é, meu rapaz- respondi-. E tu poderás dizer-me com quem falo?
Curvando-se numa vénia, respondeu: « Lourenço Paiva. Cheguei agora mesmo de Lisboa e vinha com esperança de vos encontrar.» Murmurando aquele nome para mim próprio, recordei-me ser ele o filho mais novo da velha amiga cristã, a lavadeira a quem tínhamos deixado a nossa casa em Lisboa momentos antes de fugirmos daquela cidade tenebrosa, há mais de duas décadas
".

A literatura tem muitas vezes a capacidade de recolocar os acontecimentos da História dando-lhes uma respiração mais humana, mais próxima do que significam vividos pelas pessoas. Richard Zimler tem a grande qualidade de escrever livros com integração da investigação de acontecimentos do passado, mas preocupando-se com que eles significaram para pessoas isoladas, vítimas do sofrimento que a ignorância e o poder político são tão rápidos em construir.

O último cabalista é a reconstrução doa contecimentos vividos em Lisboa no reinado do "venturoso" rei D. Manuel, onde centenas de judeus morreram sugestionados por um poder político que não respeitou o acordado em 1497, aquando da conversão à religião cristã. Expulsos pelos reis católicos acreditaram ter em Portugal uma possibilidade de vida. Forçados à conversão são acusados de serem os responsáveis pela fome, pela peste e pela seca que existia no reino. Instigados por frades dominicanos, uma multidão com a complacência da corte destruiu vidas humanas. Mais uma vez o condicionamento na estrutra do estado e da sociedade, entre as promessas de Castela, a moral de Roma e a inexistente moralidade cristã.

Toda a história do judaísmo e da perseguição que a Inquisição faria mais tarde, noutra assunção de medo e de estratégia política com D. João III, ele revela muito da falta de consistência de valores que uma soberania política não soube compreender pelo valor humano, institucional e cultural que os judeus trouxeram ao Reino. 

A sua perseguição e morte levou à perda de recursos humanos e de ideias que teriam dado outras possibilidades de desenvolvimento. O último calaista de Lisboa retrata um episódio que a História dada nas escolas não integra e que merece ser estudada, de modo a que se perceba que a História de Portugal é muito mais do que a ideia que uma certa historiografia gosta de apresentar, um conto de fadas da memória.

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