domingo, 17 de março de 2013

O construtor do tempo


"Caminho nos caminhos onde o tempo / como um monstro a si próprio se devora". (Sophia)

Já não é um ofício muito requisitado. Está aliás no horizonte do que se pode dispensar. Como não trabalha a matéria-prima do utilitário, vê-se dispensado de contribuir e de participar na ideia que temos e que queremos ter da sociedade. Com o novo século emergiu a dispensabilidade de pensar, de reflectir. A economia, a nova ciência global dispensa o pensador, o criador de interrogações sobre as ideias.

Trazemos aqui a memória desse ofício, que o futuro saberá resgatar, pois nem a História acabou como o proclamavam os idealistas de esquerda, nem a felicidade está garantida nos supermercados da abundância que os magos da gestão e os burocratas das instituições sonhavam. Trazemos pois à memória, o historiador, esse arqueólogo do tempo que recupera no seu tempo, o tempo de outras acções, outros sonhos, outras vontades.

É ele que reconstrói nas páginas que visiona os testemunhos da respiração dos que não chegaram ao presente e que pela sua visibilidade são contemporâneos das nossas vivências. É ele que recupera para o ruído cósmico o silêncio, os desejos dos que ousaram criar um caminho para o futuro. O historiador restaura na escrita toda a humanidade e dá-lhe a voz do que eles próprios não entenderam, não souberam compreender, não souberam recriar. É esta a arte e a sabedoria a que ele aspira, a de contribuir para repensar a construção de uma sociedade, de um território, de uma cultura. Conhecer o mundo, para compreender o homem, não linearmente, mas nos átomos das suas contradições é o desafio que a História coloca ao seu artesão, ao historiador.

Vitorino Magalhães Godinho foi no século XX, em Portugal uma das mais criativas e críticas vozes para fazer do testemunho da vida dos Portugueses, um conhecimento da Humanidade do século XVI, das Descobertas, dos tempos sociais, dos ritmos económicos num discurso que procurou aproximar a História da sua escrita. A sua biografia, a que mais importa realçar é a de historiador e do seu método por onde podemos reconhecer o campo aberto, ousado, e incerto do quotidiano, a construção rigorosa do homem, na memória do passado, mas também na afirmação de ideias e sonhos para os dias à frente.

Vitorino Magalhães Godinho fez do seu método um implicação do historiador e da sociedade nesta construção do homem. O país dispensou-o sucessivas vezes. Sobra o espírito colocado nas suas pesquisas e a ideia de que há mestres que deixam um legado de cidadania. Sobra sobretudo o esclarecimento de uma bibliografia vasta e diversificada, onde podemos continuar a ouvir a voz e o silêncio da História e reler por exemplo Les Sciences Humaines et la Mutation du Monde ou o clássico Os Descobrimentos e a Economia Mundial. As suas palavras são já uma saudade de um tempo em que o esforço, o mérito, a dedicação, a mestria das palavras, o empenho na criação de ideias tinha na Universidade um culto profundo e belo, o conhecimento, o saber.

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