quinta-feira, 16 de março de 2017

Na memória de Raul Brandão (III)

A outra coisa que exerce uma verdadeira fascinação é o Pico - tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada.  Toma todas as cores: agora está violeta logo está rubro. Tarde, e a Lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. 
É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me de vida. 

O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas [hortenses] devia ter uma estátua na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e calor - estão no seu meio. O seu azul é o azul esmaltado dos Açores nos dias límpidos. Nos dias turvos substituem a cor do céu: são o azul desta terra enevoada e uma das suas maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o céu mais escuro, a atmosfera mais húmida, e sob isto ao azul cada vez mais azul, as molhadas de flores duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. 

A volta na luz da tarde é um assombro. Vejo o Salão e Pedro Miguel, todos azuis de hidrângeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge à esquerda formando uma enorme baía. É o horizonte de Nápoles mais escuro, a esta hora iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas - não como as montanhas solenes das Flores em picos aguçados pelo raio, mas arredondados e mansos. Borbotões de azul despenham-se por todos os lados. O faial adormece em azul sob o céu de cinzento e com o Pico todo violeta ao lado. 

À noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu, subiu a Lua numa paz extraordinária, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os últimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no boqueirão todo negro. Mais luar e o silêncio que espera de nós qualquer comunicação sobrenatural. Olho. todas as hortenses se puseram brancas, dum branco perfeito, todas as hortenses não desfitam  os olhos de mim, quietas e brancas, imóveis e brancas.1

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 81, 82, 83 e 90.
Imagens - Na estrada da Horta para Flamengos. Ilha da Horta. Açores; Copyright - Júlio Machado

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