A pintura holandesa do século XVII concentra em si um enigma que nos chama, como um cenário, uma luz que se suspende num instante. É uma pintura que nos apela, que nos interpela para observar um momento, mas também para deixar nela o nosso próprio olhar. É uma pintura como uma revelação, onde entramos como estrangeiros e onde ficamos a admirar segredos quotidianos. Segredos de uma felicidade, enredos que suspeitamos nascer de uma representação que tenta combinar atmosferas de intimidade.
Nem
sempre olhámos para esta arte do instante com a devida importância, na
proporção que ela merece. Vimos durante muito tempo o domínio de uma
arte pela consistência técnica, pois o objeto da representação parecia
banal, ou pouco interessante. Afinal eram apenas objetos do quotidiano
representados em ambientes caseiros. A vida pode, no entanto, dar-nos,
em pequenos instantes, níveis de significação interior muito
consideráveis.
As
atividades humanas, as suas expressões de vontade, de desejo, de
realização das tarefas podem-nos dar evidências de sentido, traços de
psicologia de uma sociedade. Essa representação da vida humana numa cena
pode constituir uma identificação, a definição de uma identidade, nessa
surpresa de instantes. Os valores iconoclastas do calvinismo retiraram
muitas das imagens tradicionais da mitologia e isso faz-nos compreender
como a luz suspensa, aqui é uma iluminação a um foco mais particular,
mais íntimo com a individualidade humana de uma época.
A
arte, representada na pintura holandesa do século XVII consagrou o
instante, como algo que nos escapa, uma paisagem humana efémera e um
momento que se assinala. A sua representação incide sobre homens e
mulheres em tarefas quotidianas, passageiras, mas ainda assim a fixar um
momento de eternidade, captado por uma luz que nos olha.
Este
olhar que nos interpela como assistentes de um pequeno tempo dá-nos
"uma emoção particular e subtil" (1). A pintura holandesa do século XVII
parece querer construir uma imagem que sendo um instante procura algo
durável, num mundo que foge
todos os dias. Trata-se de uma pintura que nos dá "uma sucessão eterna
de acontecimentos isolados" (2), e que compõe uma obra de arte, como um
universo que tenta reduzir o tempo a uma dimensão que se fixe em algo
permanente.
O
instante, como composição de uma intimidade, de uma alegria e também de
uma eternidade. O que é extraordinário nesta pintura é essa
representação no corpo do silêncio, na funcionalidade dos objectos, na
intimidade dos espaços. Uma pintura que não imagina, não recria mitos,
ou símbolos institucionais, políticos ou religiosos, mas que contempla.
Apenas contempla. Esta arte do instante, do tempo suspenso é uma
representação da contemplação.
(1; 2) - Arthur Shopenhauer. (2005). O mundo como vontade e como representação. Lx: Formalpress.
Imagem - Vermeer, Detalhe da carta interrompida, 1665-1667, National Gallery of Art, Washington.
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