Não é fácil ser um livro. (...)
Poderia dizer, com toda a justificação, que somos uma espécie ameaçada
- à beira da extinção, na verdade. E, se tal acontecesse, seria uma
perda incalculável porque não somos uma espécie comum. A destruição de
um qualquer género e, claro está lamentável, mesmo que não passe de um
raminho absolutamente irrelevante do tronco maciço da evolução um
qualquer beco sem saída. Mas quando uma das únicas formas de vida
inteligente que alguma vez pisaram este mundo se vê confrontada com o
desaparecimento, trata-se de uma verdadeira catástrofe evolutiva.
Ninguém com um mínimo de inteligência pode negar que, além da
humanidade, nós os livros, somos os únicos seres inteligentes à face da
terra. De facto, uma análise imparcial concluiria certamente que, de uma
maneira geral, a nossa reivindicação é a mais correcta. Para começar,
embora estejamos simbioticamente unidos aos humanos, poderíamos, em
última instância, viver sem eles. Para que é precisamos deles,
exactamente?
Para nos lerem? Trata-se de uma atividade recreativa que os beneficia
apenas a eles, não a nós, de todo. Enquanto atividade física só nos
causa danos - vários tipos de danos.
E poderiam eles passar sem nós? Deus nos livre! Sem livros, qual seria
a condição da raça humana? Continuariam a arrastar-se no mesmo estado,
primitivo e miserável, em que os encontrámos quando aparecemos, há cinco
mil anos: uma espécie conhecida pela sua capacidade de esquecer mais
rapidamente as coisas do que as memorizar. Não estivéssemos nós à mão
para oferecer a nossa abnegada ajuda na tarefa de memorização, não
tivéssemos nós memorizado em seu nome, estes pobres seres não teriam
qualquer história.
Teriam
esquecido praticamente tudo. E como poderia alguém apresentar-se como
um indivíduo inteligente, se não recordasse o seu próprio passado,
incluindo o passado recente? Ao contrário dos seres humanos, contudo,
nunca esquecemos nada. Quando aprendemos algo, esse algo permanece
connosco para sempre, inexpugnável. (...) Então quem é superior? O
atirador de paus e pedras, talvez?
Mas isso não é tudo. Os humanos não são apenas esquecidos, são também
pessoas de breve e fraca concentração. Em suma: as suas mentes
dispersam-se. Na maior parte das situações não pensam, de todo; quando o
fazem, teria sido melhor se não o houvessem feito. Para a maioria das
pessoas, a vida passa sem que uma ideia brilhante - ou mesmo inteligente
- lhes atravesse a mente.
No caso dos raros indivíduos que são capazes de encarrilar, mais ou menos, as suas ideias, os seus preciosos pensamentos depressa ganhariam asas e voariam para longe, se não no-los confiassem para que os guardássemos.
No caso dos raros indivíduos que são capazes de encarrilar, mais ou menos, as suas ideias, os seus preciosos pensamentos depressa ganhariam asas e voariam para longe, se não no-los confiassem para que os guardássemos.
Somos, agora, o repositório de que tudo o que o seu circo de cem mil
milhões de palhaços - que é mais ou menos o número que por aqui passou
desde que desceram das árvores - conseguiu alinhavar com grande custo,
tanto em trabalho como em dor. Se alguma vez decidíssemos negar-lhes
acesso a esse armazém de conhecimento, teriam de começar tudo do zero.
(...) Torna-se, assim, claro que é do interesse das pessoas não colocar
os livros em perigo. Pelo contrário, deveriam cuidar de nós; deveriam
proteger-nos e defender-nos, pois nunca lhes fizemos outra coisa a não
ser o bem. Somos o seu parceiro simbiótico: damos prodigamente e quase
nada pedimos em troca.
Mas ninguém é tão engenhoso como os humanos a conceber a sua própria
queda. São tão bons a fazê-lo, de facto, que temos de nos perguntar como
terão sido capazes de sobreviver durante tanto tempo às suas tendências
autodestrutivas. O seu comportamento põe em causa o próprio conceito de
evolução. Em suma: só quando não conseguiram deitar de facto, a mão aos
livros é que não lhes fizeram mal. E, sem ceder à paranóia, não é óbvio
que se trata de uma conspiração - de uma flagrante conspiração, na
verdade - dos humanos contra os livros? Uma conspiração que remonta ao
momento do nosso aparecimento neste planeta.
(O que pensa um livro sobre o que sente um livro na sociedade humana com o modo como é tratado por leitores, livrarias, alfarrabistas, editores e bibliotecas? Zoran Živković dá-nos um livro escrito com grandes doses de humor e sátira, em que o Livro é o principal protagonista da narrativa. Livro e sociedade humana conjugam-se para ler o Homem, a sua vaidade e ambição, a sua cultura e inteligência. Um livro sobre o sentido mais íntimo que este objecto único pode ter na nossa vida).
(O que pensa um livro sobre o que sente um livro na sociedade humana com o modo como é tratado por leitores, livrarias, alfarrabistas, editores e bibliotecas? Zoran Živković dá-nos um livro escrito com grandes doses de humor e sátira, em que o Livro é o principal protagonista da narrativa. Livro e sociedade humana conjugam-se para ler o Homem, a sua vaidade e ambição, a sua cultura e inteligência. Um livro sobre o sentido mais íntimo que este objecto único pode ter na nossa vida).
Zoran Živković. (2016). O Livro. Lisboa: Cavalo de Ferro.
Sem comentários:
Enviar um comentário