segunda-feira, 4 de julho de 2016

Leituras - Os Transparentes

Acabou o tempo de lembrar
choro no dia seguinte
as coisas que devia chorar hoje
[do bilhete amarrotado de Odonato]

     era um prédio, talvez um mundo,
para haver um mundo basta haver pessoas e emoções. as emoções, chovendo integralmente no corpo das pessoas, desaguam em sonhos. as pessoas talvez não sejam mais do que sonhos ambulantes de emoções derretidas no sangue contido pelos pêlos dos nossos corpos tão humanos. a esse mundo pode chamar-se "vida".

   nós somos a continuidade do que nos cabe ser. a espécie avança, mata, progride, desencanta, permanece. a humanidade está feia - de aspecto sofrido e cheiro fétido, mas permanece porque tem bom fundo.                                                                 [das anotações do autor]
     - mas quem manda em tudo isto?
     - gente muito superior.
     - superior... como Deus?
     - não. superior mesmo! aqui em Angola há 
pessoas que estão a mandar mais que Deus.
[da voz do povo]

(Ondkaki já nos deu em diferentes obras uma narrativa poética capaz de nos devolver os elementos que no quotidiano africano nos permita compreender uma forma única de olhar o mundo, de o compreender, ou tão só de o experimentar. Os Transparentes é um livro sobre Angola, a cidade e o seu imaginário pós-colonial, onde nos é falado sobre a pobreza e corrupção com tons que oscilam entre o sarcasmo e uma abordagem hilariante. O livro centra-se na narrativa de personagens que circulam num prédio de Luanda. As personagens têm nomes invulgares, como "vendedor de conchas", " camarada mudo" ou "joão devagar" e essa própria construção dá o sinal de que a transparência que o livro procura é também alimentada por uma forma particular de ver a realidade. Os Transparentes tenta ler a cidade, através de um colectivo que experimenta uma atmosfera de modernidade e degradação. Os Transparentes é um colectivo feito de uma cultura de corrupção, de um quotidiano de pobreza, um sacrifício diário que não contempla necessidades básicas e a magia de uma cultura popular que se vê a si e às suas capacidades de resistência como a forma de existir. Desta retenhamos um dos excertos de Odonato, quando nos diz: "já não tinha força para desenhar nos lábios um gesto mínimo de espanto ou o que fosse um vulgar sorriso, a temperatura chegava-lhe à alma, os olhos ardiam por dentro chorar afinal não tinha que ver com lágrimas, antes era o metamorfosear de movimentos internos, a alma tinha paredes - texturas porosas que vozes e memórias podiam alterar."
Um livro a que vale a pena descobrir e uma obra literária de grande valor que volta a cimentar o nome de Onjaki na literatura africana de expressão portuguesa.)

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