quarta-feira, 22 de junho de 2016

Leituras - Chá e Amor

   Quente, quente era o dia. Kikuji, uma a uma, foi correndo as portas do pavilhão de chá. Os carvalhos explodiam de verdura para além da janela que enquadrava Fumiko - e a sombra das folhas, ramo após ramo, caía pelos cabelos da jovem...
   Inesquecível: a cabeça e a garganta de Fumiko eram tomadas pela luz da janela - e os braços , surgindo das curtas mangas de um vestido que ela parecia usar pela primeira vez, eram brancos, tão brancos!, com um leve toque de verde. Embora ela não fosse cheia, os ombros eram deliciosamente plenos e redondos, condição essa que  que, em discreta harmonia, lhe descia pelos braços.
   Chikako, entretanto, só tinha olhos para o jarro Shino.
   - Um jarro - disse - só é verdadeiramente um jarro quando utilizado para o chá. É um desperdício, quase uma ofensa, enchê-lo de flores estrangeiras, exóticas, alheias...
    - Pois a minha mãe também o utilizava como floreira - interrompeu-a Fumiko.
   - É como um sonho! Como se estivesse a sonhar... Estarmos aqui sentados com aquela lembrança de sua mãe! Tenho a certeza de que ela se sente feliz por ver esse jarro entre nós.
    Estaria Chikako a ser irónica? Sarcástica...?
    Mas Fumiko fez-se desentendida e disse:
   - Atrevo-me até a pensar que o senhor Mitani se serviu do jarro como se fosse um recipiente para flores. Quanto a mim, sinceramente!, não mais encarei este jarro como um utensílio do ritual do chá. (...)
   - E Chikako passou os olhos por todo o pavilhão. - Unicamente me sentirei em paz quando me for permitido que me assente aqu. Sabido é que frequento todos os pavilhões de chá, sejam eles quais forem, mas... - Só então é que olhou para Kikuji. - No ano que vem passa o quinto ano aniversário da morte de seu pai. Deveríamos evocar essa data através do ritual do chá. (...)
    A taça... Pois nunca me servirei da taça como se ela fosse uma simples chávena de chá. Trata-se de uma preciosidade. - Mas há exemplares de qualidade muito superior... Quando bebe por essa taça, é impossível que não pense nessas outras chávenas de chá. Sinto-me muito infeliz, mesmo muito, por lhe ter oferecido uma coisa tão fraca...
   - Mas tu acreditas realmente que nada mais podes oferecer do que peças de chá de refinado gosto...?
    - Isso depende das pessoas e das circunstâncias.
    As palavras de Fumiko soaram a Kikuji ricas de tonalidades harmoniosas.
  Seria ela tão ingénua que pudesse pensar que a lembrança de sua mãe, ou uma lembrança de si própria (talvez até algo de mais íntimo...), poderia ser inferior à taça de chá mais preciosa de todo o Japão...?
   O desejo e a desculpa (palavras entrançadas uma na outra), de que somente o que fosse belo é que faria com que a senhora Ota fosse recordada, apoquentaram Kikuji por longos momentos. Mas também foi um reencontro com as emoções mais subtis - e, como testemunha de tudo isso, eis que se erguia, na sua mente, o jarro de água Shino.
   O íntimo aspecto desse jarro, incandescente e frio a uma tempo, levava Kikujia pensar na senhora Ota. E como essa peça era de tão fina contextura, tão e tão fina!, sucedia que a lembrança da mãe de Fumiko lhe surgisse isenta dos tons obscuros da fealdade e da culpa.

Yasunari Kawabata. (2003).Chá e Amor. Bibliotex Editor, páginas 95 e 118
(A literatura japonesa do século XX tem algumas referências importantes, sendo Yasunari Kawabata uma das mais relevantes. Prémio Nobel da Literatura em 1968, a sua vida cheia de privações afectivas, de recomeços quase como formas de sobrevivência influenciou uma obra, onde dos títulos com alguma relevância surge este seu livro, Chá e Amor
Primeiro publicado em revistas japonesas foi editado em livro nos anos cinquenta dos século XX. Tal como outros seus livros, em Chá e Amor são ainda as referências de uma sociedade que enfrentava as mudanças vindas do Ocidente que marcam as personagens, numa tentativa de resgatar valores tradicionais do Japão. 
A cerimónia do chá acompanha uma história de diferentes figuras, um triângulo afectivo, por onde se encontra uma narrativa poética, onde a figuração da delicadeza, da serenidade são elementos que procuram conviver com um ambiente de algum drama e ressentimento. 
Utilizando descrições sobre o chá e a louça que o identifica vemos ao mesmo tempo descrições do simbolismo no vestuário sobre os valores da nobreza e da felicidade. Yasunari Kawabata concilia o património de uma cultura ancestral, o valor da sua arte milenar e o confronto no quotidiano com uma cultura social mais moderna, sempre com alguma melancolia, uma doce tristeza vinda também da efemeridade do tempo e da própria natureza do homem e das relações que estabelece com os outros).

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